Ilustração de Isabella Pina
“O ouvido não tem preferência particular por um ‘ponto de vista’. Nós somos envolvidos pelo som. Este forma uma rede sem costuras em torno de nós. Costumamos dizer: ‘A música encherá o ar.’ Nunca dizemos: ‘A música encherá um segmento particular do ar”.
— Marshall McLuhan
No cinema, há uma relação entre som e imagem que é naturalizada. Essa convenção prevê que a coexistência dessas duas linguagens — como elementos que se acompanham — depende da atividade espectatorial. Ou seja, nós, dimensionadas pela própria experiência de visionamento, construímos todas as relações entre som e imagem nos filmes. No entanto, há uma disparidade entre a visão e a Audiovisão1, quando penso na autonomia da espectadora de interceder no embate entre seu próprio corpo e os filmes. Esse quadro envolve ambiguidades e imprecisões que me parecem ter raízes na própria evidência visual na tela do cinema que, inevitavelmente, é mediada pelo olhar de quem assiste.
O visível está sempre em disputa com o invisível, uma vez que podemos fechar os olhos e escolher quais imagens queremos ver. Contudo, o som não pode ser mediado pelos ouvidos de quem escuta, não podemos nos fechar para as sonoridades — tão pouco para os ruídos. Talvez, a desconfiança no ouvido (é bíblico que é preciso “ver para crer”) aconteça em função de não possuirmos pálpebras sonoras2. Então, como suscitar imagens pelo som e reconstruir imageticamente a experiência não mediada das densidades sonoras que não se obstruem entre si, mas que estão em choque constante com o corpo de quem vê e escuta?
Quiçá, a filmografia de Paula Gaitán, uma das cineastas mais originais do nosso tempo, possa ser um caminho possível para responder essas perguntas. Em suas produções mais recentes, Paula assume a impossibilidade da mediação corpórea do som — ou em outras palavras o fato de não termos autonomia sobre o que podemos ou não ouvir — como método. Pela inquietude de seu próprio corpo-câmera, traduz as modulações dos sons, silêncios e ruídos para as texturas da imagem. Em Noite (2015) e Sutis Interferências (2016), a associação livre entre as técnicas do cinema e o caráter inexorável (ou implacável) da música são exemplos de sua artesania. Nesse caso, só ver não é o suficiente, precisamos nos abrir para a escuta.
II.
No silêncio absoluto da imagem (a tela preta), o som se manifesta através de repetições obsessivas e ritmadas. Logo de início, a construção narrativa de Noite (2015) indica o esforço da realizadora em criar cadências, impor ritmos e ressonâncias. Nos primeiros dois minutos e trinta e seis segundos não há experiência visual, apenas sonoridades. Em vista disso, a paisagem sonora é pensada antes da imagem e também é o que vai delimitar, posteriormente, o ritmo visual. Na primeira cena, onde têm-se uma tela exibindo 2001: uma odisséia no espaço (1968), filme dirigido por Stanley Kubrick, percebemos que a câmera estabelece um jogo de relações simultâneas: Paula filma telas que exibem outros filmes, outras cenas, outros shows, outras performances… e constrói texturas que brincam com a qualidade plástica da imagem. Vários elementos visuais coexistem para construir um ritmo, assim como a reverberação sonora que introduz a narrativa fílmica. De certo modo, Paula assume os ruídos das imagens para nos auxiliar a ver o que ouvimos.
Bullerengue, música eletrônica, rock progressivo, jazz e MPB são alguns exemplos dos muitos ritmos articulados no filme. No desenho de som de Noite, a modulação para outros tons se dá pelos ruídos, uma vez que o que liga uma música a outra são barulhos incômodos e desarticulados das frequências convencionais da música. O interessante é que na imagem também é criada uma outra espécie de ruído que serve como fio condutor de uma variedade de texturas visuais e sonoras: a personagem de Clara Choveaux. Na primeira cena em que aparece, Clara está sozinha no plano, iluminada por luzes coloridas de tons quentes. Ela fuma um cigarro e percorre o olhar para o nada que lhe cerca. Por vezes, parece estar ouvindo a voz impotente de Petrona Martinez, numa canção em extracampo. De algum modo, a música opera uma colisão com o corpo da personagem, que sorri como se pudesse ouvir o que estamos ouvindo. Clara se movimenta, é como se quisesse dançar, entretanto, o choque do corpo com aquele som que está aquém da imagem, leva, novamente, à tela preta: uma sobrecarga de frequências sonoro-visuais. Da sobrecarga nasce a desorganização, o ruído.
Essa presença feminina é ruidosa em muitos níveis, imageticamente, por exemplo, esse ruído é trabalhado por texturas; em algumas cenas, Clara é filmada através de um tecido esvoaçante ou está vestida com um figurino que destoa das outras pessoas nas festas. No entanto, no decorrer daqueles recortes da vida noturna carioca, vai deixando de ser esse corpo desarticulado e torna-se parte dos espaços, é como se o nosso corpo, como espectadoras, fosse se acostumando com os ruídos, as vibrações desordenadas. A mesma coisa acontece com o ruído sonoro, no início do filme os ruídos são extremamente desagradáveis aos ouvidos, mas, depois, conforme vamos nos acostumando com essa manifestação sonora, tornam-se apenas sons. Dessa forma, a impossibilidade da mediação corpórea das densidades sonoras é traduzida para a imagem e, assim, é criada uma fruição de visionamento que não se limita às possibilidades da imagem e do som como elemento que existiria para acompanhar essa imagem. Há um choque de frequências polissêmicas entre o ver e o ouvir que não só suscita cenas experimentais, mas também questiona a ideia de ruído visível.
“músicas melancólicas começam a tocar, as bordas começam a desafiar o centro do pensamento, isso significa medo?”
Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi 3
III.
Em Sutis Interferências, a dissonância rítmica é construída a partir de justaposições; entre a cineasta e o músico; entre a câmera e a guitarra; entre o som e o que se diz sobre o som. Sinto que o ruído é algo a ser decifrado na imagem. Uma tensão entre dois ritmos distintos, dois modos de produção. A relação entre Arto Lindsay e Paula Gaitán se dá pela impossibilidade do diálogo. “Não entendi muito bem”, responde Arto em uma conversa com a realizadora. Nesse sentido, a obra se diferencia, por exemplo, de É Rocha e Rio, Negro Léo (2020), em que a voz é o som principal — como um instrumento solista — e as ideias faladas estabelecem a lógica de encadeamento da narrativa.
Já em Sutis Interferências, Paula abre mão do verbocentrismo4 e assume o ruído como som fundamental, diferente de como acontece majoritariamente no cinema em que o ruído é apenas um acompanhamento. São múltiplos ruídos: o ruído sonoro, o da iluminação que intervém nas cenas — e que ora produz sombra, ora embeleza os instrumentos — e as interferências de montagem que sobrepõem uma fala à outra. Materializando, assim, a desorganização do ruído na imagem. Relações simultâneas que convocam a atenção da espectadora e que conectam os dois processos de criação: o do músico e o da cineasta.
Assim como em Noite, o começo do filme é o som se materializando no silêncio absoluto da imagem. São conversas fugazes sobre o processo do documentário, desde a provocação de Paula de não pretender fazer perguntas convencionais ao músico ou o diálogo sobre o ar condicionado que precisa ser desligado para que não haja ruídos na captação sonora. De certo modo, há uma preocupação em evidenciar os processos, as modulações dos sons acidentais. Apesar dessa primeira cena do filme ser uma conversa clássica motivada pela voz, o restante dos diálogos presentes no filme foram materializados formalmente nas técnicas do cinema e da música. O método retratista de Gaitán trabalha as intensidades e rejeita a transparência, escolhe vibrações como instrumento de visionamento. Paula filma através de recortes: meia face, um par de óculos, uma mão que entra em atrito com a guitarra e também assume o assincronismo da imagem e do som como método. Em algumas cenas, na imagem compreendemos que Arto está falando, mas o som que aparece em off não é o da voz e sim de alguma música. O que se ouve está em conflito com o que se vê.
Diferentes ambiências localizam o processo criativo de Arto — e o de Paula. Nas filmagens dos concertos, sons e imagens oscilam no plano e podemos perceber que os ruídos são proposições nas duas criações. Trata-se de um trabalho manual de busca incessante por frequências, para depois articulá-las em energia. Em uma das cenas finais do filme, Paula interpela o método tradicional de entrevista no cinema e evoca sua radicalidade nas sonoridades. Enquanto ela, em extracampo, e Arto no centro do plano conversam, a montagem sobrepõe as falas do músico e cria uma combinação sonora que remete às operações simultâneas da música. No entanto, quando Arto fala sobre o ruído, volta a sincronia de seu corpo com a voz. Em outras cenas, ao mesmo tempo em que a voz de Arto opera em off, seu rosto está em silêncio. É um jogo que também interfere nas relações do corpo com o som, uma vez que exige certa autonomia de quem escuta em perceber as múltiplas camadas sonoras. Esse gesto evidencia a preocupação em retratar o choque do som com os corpos por construções estéticas ásperas, perceptíveis.
IV.
A radicalidade do cinema de Paula Gaitán se dá pela manipulação do som como modulação que evoca imagens. A inventividade própria e a busca pelo inexplorável se materializa em um groove. É possível pensar o que se vê a partir do que se escuta. E sentir o ímpeto que nasce dessa relação. O cinema de Gaitán não se encaixa em um imaginário em que as mulheres se relacionam com a música de forma apaziguada, é justamente na recusa pelo apaziguamento que encontra saída no experimental. De certa maneira, Paula rejeita a construção narrativa canônica do cinema para evidenciar que tudo é construído mediante um acordo — do visível, mas, principalmente, do audível — entre obra e a espectadora. É bruta, impiedosa e exorbitante a cada timbre, cada frame, cada movimento de câmera.
A sensibilidade em Noite e Sutis Interferências não parte de uma colocação pessoal, do valor coletivo que a vivência individual feminina poderia ter, na realidade, também rejeita esses rótulos e escolhe narrar pelo que ainda não foi assimilado a ponto de se tornar outro tipo de ordem, são os ruídos: uma personagem que é mais presença que personagem, os corpos em contraste com as luzes artificiais, a montagem guiada pelos frenesis das batidas sonoras e o cansaço do corpo como proposição. Quando as operações sonoras suscitam imagens, são criadas múltiplas cadências capazes de construir uma polissemia visual e outros sons que são construídos como fruto dessa associação. Texturas, jogos de luz e sombra e personagens desarticulados do próprio tempo também são ritmos construídos. Paula se afasta da narrativa clássica para fabular pelos ruídos, nos convidando a ouvir os seus filmes e a vibrar com eles. São obras atmosféricas que lançam uma proposição para a própria lógica da espectatorialidade: a brutalidade sonora nos instiga a manter as pálpebras bem abertas.
referências bibliográficas
CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
MCLUHAN, Marshall, FIORE, Quentin. O meio são as massagens. São Paulo: UBU Editora, 1967.
SILVA, D. F. A dívida impagável. São Paulo: Casa do povo, 2019.