O sexto dia do Festival de Brasília teve alguns dos filmes mais interessantes da seleção de 2015. O primeiro, A Outra Margem, vencedor do prêmio de Melhor Direção dentre os curta-metragens, deu a oportunidade à Nathália Tereza para apontar a escassez de mulheres realizadoras na seleção do festival deste ano durante seu discurso de premiação. O segundo, História de uma Pena, de Leonardo Mouramateus, marca, mais uma vez, a forte presença do jovem diretor nos festivais do país. A noite foi fechada pelo anticlimático longa-metragem Santoro, filme brasiliense cuja presença na mostra competitiva foi abertamente questionada.
A Outra Margem
O curta de Nathália Tereza acompanha o que é descrito na sinopse como um agroboy, figura conhecida do centro-oeste do país, região em que o filme se origina. O homem é Jean, que dirige pela sua cidade ouvindo a rádio local. Seu ambiente se desenha em meio aos recados de amor de desconhecidos narrados pelo locutor da rádio e visões de jovens dançando em estacionamentos ao som alto que sai do porta-malas dos carros. Nesse contexto, acontece um encontro.
Quando o homem não está mais sozinho no seu carro, podemos viver com ele sua dificuldade em aproximar-se do outro, uma situação que parece se relacionar a parte mais estéril e emocionalmente bloqueada do que chamamos de masculinidade. Carol passa parte da noite ao seu lado e o convida para dançar, ao que ele responde que não dança, não sabe dançar, não. Quase que à força, ela o guia e aos poucos a tensão anterior parece se esvair.
A vida do filme é sua capacidade de transmitir sensações, particularmente a solidão do homem que vaga noite adentro e que aparenta estar preso em sua própria incapacidade de se comunicar e conectar. Talvez seja essa a margem que é cruzada no filme e a delicada mudança de perspectiva que atinge o personagem principal permeia a última cena, na qual ouvimos a música de Guilherme Arantes sendo cantada no karaokê em talvez um dos momentos mais bonitos dessa edição do festival.
História de uma Pena
Leonardo Mouramateus volta ao Festival de Brasília dois anos após Lição de Esqui, filme que lhe rendeu o prêmio de Melhor Curta-Metragem de Ficção na 46a edição do festival, com História de uma Pena. Ele demonstra, mais uma vez, sua habilidade em fazer recortes sobre a juventude.
O filme é particularmente notável por utilizar a estrutura de curta-metragem de forma perspicaz, trabalhando com a falta de uma causalidade fechada ao não nos explicar motivações, e, consequentemente, externando também a real falta de motivação para as atitudes dos seus personagens. São jovens alunos desinteressados, vivendo seus dramas, suas breves paixões, ocupados demais com a fricção entre eles para se importar com o professor, também jovem, cansado e frustrado.
Essa falta de um estímulo contínuo perpassa todo o filme até a guinada final. Não sabemos por que um casal acorda no meio do mato, o que o professor forasteiro está fazendo ali ou qual é a causa da grande comoção central ao filme. Estamos interessados em entender as relações e o contexto mostrados na tela no momento, a dinâmica entre alunos e professor, a tensão que existe entre eles e se ela vai explodir em algum momento.
O filme é construído de forma a permitir diversas possíveis perspectivas, o que agrega complexidade ao recorte. Com atuações precisas que conferem um realismo revigorante ao filme e com um final que satisfaz as expectativas do público, é uma escolha acertada do festival; mais uma boa obra de Mouramateus.
A crítica de A Outra Margem foi escrita pela colaboradora Amanda.
O quinto dia do Festival de Brasília merece um destaque especial, não apenas pelos filmes exibidos na noite de sexta-feira, mas também pela manifestação política que se deu durante a fala do diretor pernambucano Cláudio Assis. Depois do seu papel no episódio lamentável envolvendo a diretora Anna Muylaert no cinema da Fundação em Recife, o público brasiliense demonstrou sua revolta contra a misoginia do diretor com vaias e gritos de “machista”. Ficou claro, entretanto, que o público separou o diretor da obra ao aplaudir entusiasticamente o ator Matheus Nachtergaele quando este tomou a palavra.
Dos filmes exibidos no dia 19 de setembro escolhemos focar especialmente nos curta-metragens (considerados média-metragens pelo Festival de Brasília) Quintal, do mineiro André Novais, e Afonso é uma Brazza, produção brasiliense dirigida por Naji Sidki e James Gama.
Quintal
O filme Quintal de André Novais conta a história de um dia comum na vida de um casal de idosos que vive na periferia de Belo Horizonte. O filme é estrelado pelos pais do diretor, os carismáticos Maria José e Norberto Novais, que também protagonizaram o longa do filho, Ela Volta na Quinta. A Filmes de Plástico, produtora de Novais, também produziu outro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília, o Rapsódia para o Homem Negro de Gabriel Martins.
Entre ventanias inexplicáveis e telefonemas misteriosos de políticos envolvidos em escândalos, é impossível não se afeiçoar ao adorável par de velhinhos que levam todas as situações absurdas como parte do seu cotidiano. O nonsense e a fantasia se misturam no média-metragem de Novais, demonstrando uma aguçada habilidade para o humor comprovada pelas risadas e palmas do público. É intrigante, entretanto, pensar de onde vem esse riso. Viria ele das situações inusitadas ou do fato de quem as vivem serem uma senhora negra e seu marido? E se esse for o caso, o que isso diz sobre o público do filme e das nossas expectativas?
Além do Festival de Brasília, o Quintal fez parte também da seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e não é muito difícil de entender por quê.
Afonso é uma Brazza
Afonso Brazza é, sem sombra de dúvidas, um mito do cinema brasiliense. Com oito longa-metragens realizados antes de sua morte aos 48 anos, nada mais justo que ele fosse homenageado pela arte que ele tanto amava.
A maior ironia de assistir Afonso é uma Brazza ser ovacionado no Cine Brasília durante o Festival de Brasília do cinema brasileiro é que nenhum dos filmes dessa figura mítica jamais foi selecionado para o festival quando ele era vivo. O documentário, que mistura imagens retiradas diretamente de seu penúltimo longa-metragem, Tortura Selvagem – A grade, making of do mesmo e entrevistas, possui uma leveza e humor tornam o filme uma experiência divertida, mas que é assombrada por essa consciência.
Os filmes de Afonso Brazza, com seu sangue falso, suas dublagens e histórias mirabolantes nunca foram levados a sério pelo Festival, mas o que alicerça todas as produções era coisa séria, sim: um profundo e genuíno amor pelo cinema. Amor este que levava Brazza a atuar, dirigir, montar, produzir, usar película vencida para filmar, fazer sangue falso a base de cola, corante e café. O filme podia muito bem cair na armadilha de explorar risada às custas de Brazza, ridicularizando sua ingenuidade, mas não é isso que acontece e assim que o filme ganha em profundidade.
O filme faz jus ao seu protagonista, trata-o com o respeito e não como um excêntrico, e, 12 anos após sua morte, conquista o reconhecimento que nunca lhe foi dado pelo Festival de Brasília.
O terceiro dia da mostra competitiva Festival de Brasília contou com um curta-metragem produzido pela Filmes de Plástico, produtora mineira responsável por curtas premiados como Quinze, Quintal e pelo aclamado longa Ela volta na quinta, seguido de um curta-metragem co-dirigido por uma das únicas diretoras mulheres da seleção e feito pelo mesmo grupo que organiza o Olhar de Cinema, um dos mais interessantes festivais internacionais atualmente no Brasil. O longa da noite, Fome, de baixíssimo orçamento e feito em São Paulo, contava com a participação de Jean-Claude Bernardet, que, na apresentação, declarou fazer parte agora da tradição cinema de deambulação, antecipando a temática do filme.
Nesse texto vamos focar nos dois primeiros filmes da noite; Tarântula, de Aly Muritiba e Marja Calafange e Rapsódia para um homem negro, de Gabriel Martins.
Tarântula
O curta dos paraenses Aly Muritiba e Marja Calafange apresenta uma família que vive em um casarão. A mãe e as duas filhas parecem viver imersas em uma vivência religiosa que mistura o temor a Deus com o medo do que há “lá fora”. Como uma metáfora do que algumas expressões da religiosidade pode realmente trazer a algumas pessoas. A presença de um homem na casa, no entanto, parece quebrar certo equilíbrio na vivência familiar.
O envolvimento amoroso (não se sabe desde quando, no filme) deste homem com a mãe provoca sentimentos diferentes na criança e na adolescente. Enquanto a mais nova experimenta identificação (pois o homem não tem uma perna, ao passo que a garota não tem um dos braços), a mais velha se mostra avessa à nova presença e atua como agente do terror, na tentativa de expulsa-lo (ou exorcizá-lo). A motivação por trás dessas tentativas é envolta em mistério. Alguns colegas me disseram que viram ali fortes indícios de abuso sexual do homem com a filha mais velha, que levariam a moça a usar de todos os recursos para afastar a irmãzinha do mesmo mal. A vaguidão das motivações e intenções do curta é um dos elementos que tornam o filme pouco palpável.
O casarão representa sempre aquele lugar de onde é quase impossível sair. Os sonhos da menina mais nova encontram-se todos dominados pelos signos que ela conhece, e o homem é como uma porta que se abre para outras possibilidades. Fica a dúvida, então, se a jovem é apenas um espírito atormentado tentando se defender do mal (o homem), ou se é dominada por ciúme ou medo do desconhecido. Ambas as interpretações se encaixam bem na lógica dos filmes de terror. No entanto, a paralisia dos enquadramentos e da mise-en-scéne excedem a história do curta, e por fim temos uma obra que não entrega o que promete, demorando-se tanto em criar a tensão que, quando alcança o clímax, parece uma pequena surpresa.
Rapsódia para um homem negro
Mais um homem negro foi morto pela polícia. Em um dia comum, tudo o que veríamos seria uma família desolada por alguns segundos na rede local, algumas pessoas tentando se fazer ouvir, e a sociedade seguindo em frente, porque o mundo não espera, e a vida do preto vale pouco, bem pouco.
Nesse curta-metragem dirigido por Gabriel Martins, a dor se faz ouvir de maneira dilacerante em todo a primeira parte do filme, em que vemos Odé sentindo, através de sonhos e lembranças, todo o impacto da perda do irmão. A formalidade do lamento não tira sua profundidade, embora possa levar a certo distanciamento, num momento inicial. Não se sabe exatamente o que aconteceu, para além do espancamento, da brutalidade. Nem é necessário sabe-lo: o curta tenta nos levar para dentro da tragédia, dos poemas e alegorias, que falam de Oxóssi e Ogum, do caçador e de sua missão, e do que Odé precisa lembrar para trazer sentido ao que aconteceu em sua vida e ao que acontece na periferia, em Minas Gerais, no Brasil.
A sequência final do filme, em que a missão do caçador se revela, é de tirar o fôlego. A vingança através do arco e flecha de Odé, com os homens brancos e engravatados caindo como bonecos no chão, poderá tocar a ferida de muitos. A aproximação com os sentimentos do vingador quem assiste ao filme que aquele não era só mais um homem preto morto. Era o irmão, o pai, o filho, o amor de alguém. Um guerreiro, um caçador, de valor intrínseco, com sangue correndo pelo corpo. E que os Odés do mundo continuarão clamando por justiça.
O novo filme de Anna Muylaert chegou finalmente aos cinemas brasileiros depois de uma temporada de enorme sucesso em diversos festivais pelo mundo, ganhando prêmios em Sundance para as atrizes Regina Casé e Camila Márdila, e também o prêmio do público em Berlim, onde o filme foi ovacionado em sua sessão de abertura.
Acompanhamos a história de Val, que trabalha como empregada doméstica na casa de uma família rica no Morumbi, em São Paulo. Interpretada magnificamente por Regina Casé, Val saiu de Pernambuco em busca de emprego e lá deixou sua filha Jéssica, que não vê há 10 anos, mas que sustenta mandando dinheiro regularmente. Um belo dia Jéssica liga para a mãe dizendo que se inscreveu no vestibular da USP, e pede para ficar com ela por um tempo para fazer a prova. Mas se surpreende ao chegar e descobrir que Val mora com os patrões – no quartinho dos fundos. Não disposta a se submeter ao tratamento subalterno que dispensam a Val, Jéssica consegue se instalar no quarto de hóspedes, apoiada pelo patrão Zé Carlos, que já coloca logo um olho na menina (eca!). A patroa, Bárbara, aceita a menina por educação, mas logo fica incomodada. Val, que se acostumou a uma vida inteira abaixando a cabeça para os outros, fica doida com o comportamento destemido da filha, temendo inclusive perder o emprego de anos a fio.
O filme começa mostrando como é a relação de Val com Fabinho, o filho dos patrões. O tema do filme é claramente a ausência materna. O título evidencia essa questão logo na primeira cena, em que o pequeno Fabinho, sendo cuidado por Val, pergunta por sua mãe que saiu para trabalhar: “que horas ela volta?”. (Simplesmente amo quando o título do filme sai da boca dos personagens, e essa primeira cena é fantástica). Ao mesmo tempo, Val deixou sua própria filha em Pernambuco se perguntando o mesmo, enquanto foi ser uma “segunda mãe” para o filho dos patrões. Engraçado que o título em inglês “The Second Mother” evidencia esse lado afetivo entre Val e Fabinho, ao contrário do título original mais crítico.
E a grande força do filme é claramente Regina Casé. Ela interpreta Val com uma vitalidade e carisma incríveis, engraçada e bem humorada. É quase impossível não se apaixonar pela personagem e suas peculiaridades. E achei o sotaque pernambucano dela muito bom, não é todo ator que consegue fazer sotaques com maestria. Me surpreendeu inclusive porque todos sabem o quanto Regina Casé é carioquíssima. Por outro lado, Jéssica, interpretada também excelentemente por Camila Márdila (e também com um sotaque muito bom, visto que ela é de Brasília) faz uma personagem bem mais sóbria e madura, que constrasta com todos naquela casa. Quando Jéssica chega, todos tentam manter as aparências e recebê-la bem, porém Fabinho solta um “ela fala igual à Val”, como se elas fossem de outro planeta (momento super afiado e certeiro do roteiro, por sinal). Provavelmente o menino “não fez por mal”, mas essa fala evidencia claramente como ele foi educado a pensar.
Fabinho, aliás, é o típico garoto mimado de classe média alta. Na verdade, a família dos patrões é toda meio baseada em estereótipos, que são mesmo difíceis de fugir numa história como essa. Principalmente porque são personagens bem reais, e que precisam ser criticados. No entanto, me incomoda um pouco a falta de “personalização” deles, porque aí se lida mais com arquétipos do que com personagens tridimensionais. Por exemplo, a patroa Bárbara é a típica madame rica, fútil, que só anda bem vestida e maquiada, e só faz dar ordem aos empregados, além de brigar com eles. Essa personagem já apareceu inúmeras vezes no cinema para ser criticada, me lembro bastante de Miranda Priestly em O Diabo Veste Prada, até àquele filme O Diário de Uma Babá, onde Scarlett Johanson faz a babá do filho da Laura Linney. Todas essas mulheres são madames fúteis, um tanto malvadas, e que no fundo tem uma vida infeliz, os maridos querem deixá-las, tudo não passa de uma vida de aparências, e ainda por cima nem os filhos gostam delas, pois foram criados por babás. Aqui neste filme temos novamente um pouco de tudo isso, inclusive na cena em que Bárbara chama Fabinho e o acusa de não ligar para ela, mesmo ela tendo sofrido um acidente. A cena parece feita para julgarmos Bárbara, por estar fazendo drama, querendo atenção, ou ainda para inferirmos que isso é tudo culpa dela mesma por ter criado o filho assim, sem se importar com ninguém. Ao se criar uma personagem dessa forma, acho que até diminuem as chances de se criticar os sistemas de opressão como sistemas em si, pois se coloca toda a culpa nos indivíduos, nos vilões do filme. E se Val tivesse uma patroa boazinha, a vida estaria mais fácil para ela e outras milhões de domésticas? É muito fácil detestar Bárbara pelo jeito que a personagem foi construída, e perder de vista que essa é uma relação sistêmica generalizada no Brasil. Um filme que mostra isso por um viés interessante, por exemplo, é o filme de Juliana Rojas de 2011, Trabalhar Cansa. Nele a patroa não é madame fútil, porém mantém o mesmo tipo de serviço que Bárbara tem com Val, tendo uma empregada que dorme em casa e tudo. E a relação é acidamente criticada no filme.
O patrão Zé Carlos acaba entrando também num certo clichê do marido ausente que já não tem atração pela própria esposa e vai atrás de uma mulher mais jovem (toda vez que ele chegava perto de Jéssica eu me arrepiava na cadeira do cinema, cruzes!). Porém, a ele o filme concede uma personalidade um pouco mais particular, até porque mostra um pouco mais o que ele faz da vida, pinta quadros, é meio vagabundo aparentemente (mas diz que é herdeiro), e é bastante, bastaaaante maluco, como uma cena desconcertante na cozinha mostra depois. O filho Fabinho, porém, não é muito desenvolvido (até porque nem precisa ser). Ele serve mais como um modelo de comparação para Jéssica. Um teve tudo do bom e do melhor, foi mimado e até hoje não possui muita maturidade. A outra, certamente nunca teve nada fácil, tampouco a mãe ali para apoiá-la. Já Fabinho teve duas mães a seu dispor, a dele e a de Jéssica.
E é justamente Jéssica que traz frescor ao filme, tanto pela atuação certeira, como pela personagem ser uma força desestabilizadora na estória. Até mesmo Val poderia cair numa caricatura, caso tivesse outra atriz menos talentosa no papel, pois nada na história dela foge tanto assim aos arquétipos desse tipo de personagem. Mas Jéssica, essa sim é a personagem chave do filme, contesta tudo o que vê, se recusa a participar do jogo de poderes, e ainda assim não é uma menina prepotente, como Val acusa, mas sim alguém que não aceitou o lugar inferior na vida que reservaram para ela. Anna Muylaert diz que a princípio o roteiro terminava com Jéssica seguindo inevitavelmente os passos de Val, mas esse destino a incomodava demais, e, depois de várias reescritas, encontrou a solução: Jéssica já chega contestadora, disposta a mudar e quebrar o ciclo, apresentando um choque de gerações (e de contextos políticos, pois Anna começou a ter a ideia do filme 20 anos atrás, e hoje o cenário do país já é felizmente outro).
Jéssica fica na casa dos patrões apenas uns dias, mas às vezes parecia que foram meses, devido ao modo contemplativo com que Anna Muylaert filma. Por um lado, eu amo demais os planos em que os personagens agem fora de quadro, ou quando a ação se passa em outro cômodo, e podemos ver apenas parte dela através da porta. Simplesmente sensacionais esses planos, em que o som continua contando mais do que apenas a imagem enquadrada. Por fim, a cena da piscina é extremamente emocionante, embalada por uma bela trilha sonora. Por mim o filme poderia ter acabado ali mesmo, no ápice. É legal ver mais sobre mãe e filha logo após, e o epílogo acaba sendo muito importante. Porém, aquela cena ali resume a força do filme inteiro, é de uma intensidade incrível. O roteiro de Anna funciona também pelas pistas e recompensas bem amarradinhas. É um roteiro muito bom, aliás, dá pra ver que algumas cenas foram muito bem pensadas. É maravilhoso mergulhar com Val num filme tão bem feito sobre mulheres, feito por uma diretora mulher, e que esteja fazendo tanto sucesso, inclusive internacionalmente.
E é muito triste ver também que Anna Muylaert vem sofrendo muita retaliação pelo sucesso do filme. Ela tem se queixado bastante do tratamento que vem recebendo, até chegar inclusive a um evento lamentável numa recente exibição em Recife, onde dois cineastas locais a interromperam várias vezes no debate e proferiram ofensas machistas. Em uma entrevista ao IndieWire, Anna disse que se for fazer um próximo filme, será sobre machismo, porque chegou a um nível intolerável. E é realmente intolerável que uma cineasta mulher não possa fazer um filme de sucesso em paz, em pleno 2015. Agradeço imensamente à Anna por estar brilhando e abrindo portas para futuras cineastas como nós, e provando que mulheres podem sim fazer filmes sobre mulheres, e ainda fazer muito sucesso!
O primeiro longa-metragem de Iberê Carvalho foi exibido em sua pré-estreia no próprio cine drive-in do título do filme, o que deve ter sido uma experiência metalinguística incrível. Perdi esse momento, mas assisti no Cine Brasília, outro patrimônio da capital. E é muito bom ver filmes da cidade ganhando espaço e reconhecimento nacionais.
O filme conta a história de Marlombrando, que volta de Anápolis para Brasília, para internar sua mãe doente. Sem ter onde ficar, acaba indo atrás do pai ausente, Almeida, dono do quase falido (e real) cinema drive-in da cidade. Almeida é um apaixonado por cinema, como o nome do filho e os muitos pôsteres de filmes na parede evidenciam. Porém, Marlombrando não tem muitos afetos por Almeida, inclusive o chama pelo nome em vez de “pai”. Fugindo do melodrama ao qual a narrativa parece se direcionar, os conflitos nunca ficam totalmente explícitos, nunca sabemos exatamente os fatos que aconteceram no passado dos dois, o que é uma decisão acertada. Ficamos sabendo apenas de alguns detalhes mostrados através dos diálogos.
A mãe doente, Fátima, está internada com um tumor no cérebro, e infelizmente não tem participação maior além de servir como mote para a ação do protagonista. As poucas cenas em que ela aparece são momentos entre ela e o filho, onde ela conta histórias nostálgicas sobre a infância dele. Sim, há vídeos de infância em sépia, que Almeida fica assistindo em seu projetor, há historias contadas pela mãe para adocicar o coração dos espectadores, há um certo esforço de trazer uma atmosfera afetiva e nostalgica, no estilo Cinema Paradiso, que aliás fica mais do que evidente pelo pôster do filme que aparece em close atrás dos personagens em algumas cenas. Aliás, talvez os pôsteres de Cinema Paradiso e de O Poderoso Chefão na parede de Almeida tenham ficado um pouco redundantes. Apesar de fazerem sentido dentro da estória, as referências a eles já estão mais do que claras no filme. Esses elementos mais clichês, porém, são balanceados pela montagem um tanto seca, que em certas horas agrega ao filme, mas outras horas nem tanto.
Quanto à estória, ela possui um potencial de dramalhão do qual o filme felizmente foge: reconciliação de pai e filho, doença terminal, ressureição do cine drive-in. Porém, talvez o filme tenha fugido tanto em busca de amenizar os clichês da narrativa, que algumas coisas tenham ficado secas demais. A história tem pano pra manga, mas, mesmo com a duração já sendo bem pequena – 98 minutos – o filme tem várias cenas em que nada acontece, como quando Marlombrando volta para Anápolis, só para retornar logo em seguida. Há muitas escolhas estranhas de montagem também, como alguns planos de Fátima moribunda no hospital, que não casam com as sequências anteriores nem seguintes, parecem planos jogados ali no meio sem saber direito a que vieram. Marlombrando também parece um personagem meio inócuo, que não evolui muito ao longo do filme, mesmo sua estória tendo um arco claro no roteiro. Não sei se isso se deve à atuação de Breno Nina ou a escolhas de direção, mas o protagonista permanece emburrado durante o filme inteiro, e brilha somente em alguns momentos pontuais, como na briga com o pai dentro do carro. Já Othon Bastos como Almeida, e Chico Santana como Zé (o bilheteiro do cine drive-in) estão excelentes, atuam com uma naturalidade incrível. Há grande potencial para o público empatizar com Almeida, sendo o cara excêntrico que é, em busca de reconciliação com o filho, e a atuação de Othon Bastos lhe confere muita humanidade. Porém, ele também termina o filme passando uma sensação de que poderia ter ido mais além, faz falta alguma cena em que possamos ver mais de suas emoções. Não que uma cena de reconciliação entre pai e filho fosse necessária, acho até que iria cair nos velhos clichês de sempre, mas algumas cenas a mais em que pudéssemos entrar mais fundo nos sentimentos de Almeida e Marlombrando seriam bem-vindas.
Uma personagem interessante do filme é Paula, interpretada por Fernanda Rocha. Ela é uma espécie de faz-tudo no drive-in, dando conta desde a projeção dos filmes até os lanches servidos, e tem uma personalidade forte, responde as pessoas na lata e não mede palavras. Porém, o tratamento dado a ela me incomodou várias vezes. Quando Marlombrando chega e não aceita dormir no quarto do pai, Almeida expulsa Paula de seu próprio quarto para dar lugar a ele. Ao longo do filme vemos repetidamente Almeida e Marlombrando destratarem Paula, como quando ela dá opinião sobre a situação que Marlombrando causou depois de chegar, e é recebida com um ríspido “da minha família cuido eu!” vindo de Almeida. Marlombrando desdenha de Paula várias vezes também, inclusive na cena ápice do desrespeito, quando encontra Paula numa rua, indo embora, e a impede de prosseguir. Ele a puxa pelo braço, grita com ela, e apela para o plano deles de reviver o cine drive-in, como se a vontade dela de ir embora não passasse de birra, e ainda por cima fosse alguma forma de traição por abandonar o plano. Paula finalmente cede e resolve voltar, e mais tarde é recebida por Almeida com um “você ia embora sem me dizer, sua pilantra?” de brincadeira, ao que ela responde “se me maltratarem vou embora”. Claro que isso é tratado como um momento engraçadinho pelo filme, pois acabamos de ver que Paula não vai embora coisa nenhuma, então a ameaça dela não é realmente levada a sério por ninguém, nem por eles nem pelo público. A intenção do filme é romantizar essas relações hostis “de família”, de destrato com viés cômico, que entretanto acontecem assimetricamente, tendo como Paula o saco de pancada do filme. Uma coisa legal é que ela está grávida, e isso é tratado com naturalidade, sem ninguém chamando atenção para isso todo o tempo, salvo uma hora em que Marlombrando pergunta a Zé se o filho dela é de Almeida (a coitada não é respeitada hora nenhuma e ainda acham que ela está dormindo com o velho!).
A cena final é legal – alguns spoilers a seguir! – onde sequestram a mãe do hospital para que ela possa ver a renovação do cine drive-in. Porém, também é montada de um jeito um tanto estranho. A trilha sonora indica que a cena deve ser engraçada, mas ela é extremamente longa, sem ritmo, e com pouca tensão. Já o momento em que eles chegam no drive-in e abrem a porta da ambulância para Fátima (melhor parte do filme), é rápido demais, e logo termina, encerrando o filme. É verdade que ao se demorar demais nesse final, a cena poderia ficar um tanto melosa. Mas isso é algo que vem da própria narrativa, e principalmente da trilha sonora, que não é lá muito boa.
No geral, O Último Cine Drive-in é um bom filme, com duas ótimas atuações, e com uma narrativa clichê, mas que acerta em muitos pontos por não cair no dramalhão. Só peço aos cineastas que comecem a pensar melhor no tratamento dado a suas personagens femininas, e como seus filmes se posicionam a respeito disso.
Da porta da cozinha, a sala de jantar não é mais que uma fresta. Ouvimos atentamente os sons que vêm de lá, esperando escutar uma ordem ou pedaços de uma conversa para a qual não fomos convidados. Os desavisados podem até pensar que o filme de Anna Muylaert é emoldurado por uma cozinha, por portas entrefechadas e janelas que dão pro lado de dentro, ignorando que na verdade a nossa protagonista está ali no que nós achávamos que era moldura. Ela mesma se confunde, achando que é parte do plano de fundo, sem perceber que estamos ali para conhecer a história dela.
Val (Regina Casé) é assim mesmo, uma figura cheia de luz própria e carisma que acha que nasceu para viver às sombras, que conhece o “seu devido lugar” e que entende que quando a patroa (Karia Teles) diz que ela é “como se fosse da família”, assim como quando um sorvete caro é oferecido pelos donos da casa, essa é uma honra que eles oferecem sem esperar que ela aceite.
Até que, um dia, ela aceita. O constrangimento é palpável, expondo, aos poucos, uma relação delicada que começa a ruir a partir do momento em que se aceita algo que só foi oferecido por educação. Val não o faz por si mesma, e sim pela filha, que não vê há dez anos. O que não se espera é que Jéssica (Camila Márdila), articulada e inteligente, compreenda logo de cara as relações de poder da casa e exponha a hipocrisia da situação.
A diferença de tratamento que Val dá para a própria filha e Fabinho (Michel Joelsas) é tão clara quanto o enorme abismo na maturidade dos dois. Seu Carlos (Lourenço Mutarelli), um homem melancólico e calado, não perde tempo em assegurá-la que o dinheiro de verdade é dele, como se isso o tornasse mais másculo e atraente pra adolescente que acabou de chegar na sua casa. Dona Bárbara é um ideal feminista para muitos. Uma mulher poderosa, dona do seu próprio negócio, que alcança o lugar que os homens sempre ocuparam na sociedade. Um feminismo branco, elitista e superficial em que se procura ocupar um lugar mais elevado em uma estrutura opressora, sem nenhuma intenção de desmantelá-la. Quando confrontado com questões mais profundas, entretanto, se revolta. Como se atreve, essa menina, nordestina, querer passar em uma das melhoras faculdades do país? Como se atreve, a filha da empregada, querer um lugar ao sol?
Que Horas Ela Volta? é um filme sobre muitas coisas. É sobre mães que deixam filhos para dar um futuro para eles que, por sua vez, deixam seus filhos para dar um futuro para eles. É um filme sobre o fim de uma maldição de família. É um filme sobre relações de gênero, sobre relações de classe. É um filme sobre pessoas que tentam resguardar seus privilégios, e também sobre as que desafiam o status quo. É um filme sobre um país que está mudando, reconhecendo padrões de comportamento e dizendo “eu mereço mais do que isso”.
“Quero, quero muito, quero agora, sem demora.”
Enquanto acompanhamos Jéssica pedalando pela favela onde vive, no início de “Sonhos Roubados” (2009), a música de Maria Gadú denuncia previamente o que passa pela cabeça e pelos corpos das três jovens protagonistas: desejos e, em suma, sonhos, tão grandes e intensos quanto distantes da realização.
Lançado no mesmo ano que o badalado “As Melhores Coisas do Mundo” (2009), de Laís Bodansky, o longa de Sandra Werneck escolheu outra face da juventude para retratar. Diferente dos jovens ricos do primeiro filme, que se desdobram sobre a sexualidade com leveza, as meninas de “Sonhos Roubados” já conhecem o sexo desde cedo e, na falta de outros espaços de empoderamento, usam a sensualidade e a sexualidade para se afirmar e se sustentar.
A pobreza, a fragilidade da estrutura familiar e a falta de perspectivas atingem Jéssica (Nanda Costa), Sabrina (Kika Farias) e Daiane (Amanda Diniz) de diferentes maneiras, todas elas perpassando o desconforto em não ter autonomia, ou poder de decisão real sobre suas vidas. Cada uma delas tenta reagir como pode: Jéssica tenta ser durona e obter poder através de sua sensualidade, mas não tem um bom plano para salvar o avô ou manter a filha; Sabrina, no início a que mais acredita na escola, se vê sabotada pela falta de aulas e logo cai no conto do príncipe encantado, indo morar com um traficante de drogas; e Daiane, a mais nova, faz de tudo para tornar reais seus rituais de passagem para a vida adulta, negando a própria infância, que ela associa com a fragilidade.
Filmado de maneira dinâmica e sem sentimentalismos por Walter Carvalho, o filme acerta nas cenas em que deixa que as personagens falem um pouco sobre como se sentem naquele universo caótico, de maneira quase documental, como quando Jéssica vai ao cemitério ver o túmulo da mãe. É uma pena que tais cenas aconteçam com pouca frequência no filme, dando lugar a outros momentos frágeis dramaticamente, em que frases de efeito e lições de moral preenchem a tela, como quando o avô de Jéssica reflete: “a gente passa pela vida que nem fantasma”. A frase soa como uma ideia exterior ao filme, plantada de fora para dentro, que empurra uma definição fechada sobre o que é a história.
As personagens, em geral, são bem construídas, graças ao bom trabalho do trio principal e de Marieta Severo, como Dolores, a dona do salão de beleza que acolhe Daiane. O longo período em que a narrativa se desenvolve, de mais de um ano, passa pelos rituais de passagem da adolescência para o mundo adulto que são comuns em filmes sobre juventude. Aqui, no entanto, o amadurecimento não chega com a entrada na universidade, com o início de um namoro ou uma oportunidade de intercâmbio, como no simpático filme “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014).
Diferente dos jovens mais privilegiados do “asfalto”, as meninas não tem escola qualidade (quando não faltam professores, há greve), não tem dinheiro e não foram treinadas ou educadas para um trabalho que as tire de dentro da favela. São ignorantes sobre suas opções e acabam escolhendo o que mais parece promissor naquele mundo. Ser objeto do desejo de homens poderosos, poder comprar roupas bonitas, ter um celular, pintar os cabelos e frequentar o baile: eis as formas de empoderamento disponíveis para as jovens.
A rua e seus perigos surgem, na falta da escola e de um lar estruturado, como ambiente de construção de identidade. Nesse aspecto, o filme dialoga com “Garotas” (2015), de Céline Sciamma, ainda que não tenha o mesmo sucesso deste em mostrar como meninas podem se tornar a referência máxima umas das outras, na falta de exemplos de mulheres que possam se destacar por quaisquer meios que não sejam os “das ruas”: formação de gangues, prostituição e venda de drogas e armas.
Daiane é a única que conhece uma mulher adulta em que pode se inspirar (já que sua tia não faz mais que exercer o covarde papel de acobertar o marido pedófilo) e a quem pode pedir ajuda, e não à toa, é quem consegue realmente mudar a situação de sua vida e vislumbrar um novo futuro, como cabeleireira. Jéssica alcança certo amadurecimento quando aceita a realidade: não quer ter o mesmo destino de sua mãe, e se ajusta ao emprego que não desejava, para ter a filha de volta. Sabrina, no entanto, se deixa levar pelo encanto do príncipe encantado e pela sexualidade juvenil nas alturas, que a diretora acerta ao tratar sem julgamentos. No entanto, engravida e enfrenta o que muitas jovens conhecem muito bem: poucos príncipes resistem a uma prova de responsabilidade, e as mães brasileiras sabem bem como é criar um filho sem pai.
Para não deixar passar batido, já que mencionei o filme “Garotas”, surpreendeu-me o fato de que até mesmo um filme com essa temática não tenha, entre três protagonistas, nenhuma personagem assumidamente negra. Digo “assumidamente” pois é clara a tentativa de incorporar traços afro às personagens Daiane e principalmente Jéssica, através de pesado bronzeamento e, no caso de Nanda Costa, uso de aplique de tranças conhecidas como rastafári. A personagem Sabrina incorpora a origem da atriz Kika Farias, com seu sotaque pernambucano, o que não compensa, a meu ver, a não escolha de uma atriz negra em um filme com histórias próximas ao cotidiano das meninas negras nas favelas brasileiras (e se não soubessem disso, não teriam se importado tanto em alterar a aparência das atrizes). Seria medo de colocar uma menina negra e ser justamente taxado de ser mais um filme com uma negra como favelada? Ou seria mais um caso de “as atrizes foram escolhidas pelo talento”, resposta tão utilizada da boca pra fora?
Como disse Tânia Montoro (1): “Interessa-me observar como o(s) significado(s) do filme não se reduz(em) aos elementos que compõem sua linguagem, uma vez que os filmes estão inseridos em outras práticas culturais e revelam experiências em perpassam a cotidianidade. Os filmes, dessa forma, não são eventos culturais autônomos, encontram-se inseridos em outras práticas sociais que conotam um leque de sentidos.” A partir desse entendimento é que defendo que cabe fazer este questionamento a respeito de “Sonhos Roubados”. Não cabe dizer que “é só ficção” quando o filme tem uma proposta clara de retratar uma suposta realidade das jovens brasileiras (usando em algumas cenas linguagem de clara inspiração documental). Não questiono o trabalho das atrizes do filme, certamente bom, na medida do texto que tinham à mão. Mas me pergunto, hoje e sempre: não existem boas atrizes negras no cinema nacional, que poderiam dar cara, com igual ou maior fidelidade, às angústias juvenis presentes na história? Como um filme que conta uma história na favela só tem um ator negro (MV Bill) em seu elenco de destaque, e vários atores brancos? Ficam minhas perguntas.
“Sonhos Roubados” (2009), com direção de Sandra Werneck.
Com Nanda Costa, Amanda Diniz, Kika Farias, Marieta Severo, Daniel Dantas e MV Bill.
Disponível no Netflix.
(1) Tânia Montoro:”A construção do imaginário feminino no cinema espanhol contemporâneo”. In: De olho na imagem, de Tânia Montoro e Ricardo Caldas. Página 17. 2006.