Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

HERANÇA DA MASCULINIDADE: UM LIMITE ENTRE NÓS

Um Limite Entre Nós é uma adaptação fílmica da peça teatral Fences, escrita por August Wilson, que conta a história de Troy Maxson, um coletor de lixo que mora em Pittsburgh com sua família nos anos 1950. Denzel Washington assume a direção e reprisa seu papel como o protagonista, que o mesmo interpretou no revival da peça na Broadway em 2010. Ele traz consigo para a tela boa parte desse elenco, incluindo Viola Davis no papel de sua esposa Rose.

Denzel optou por ser fiel a algumas qualidades teatrais da obra: a maior parte das cenas do filme se passa em uma única locação, onde eles conversam, discutem, resolvem seus problemas e também celebram alegrias. Ao mesmo tempo, há um incômodo por não vermos nunca vizinhos nem figurantes nos quintais ao redor, sempre vazios, o que desperta uma sensação de artificialidade análoga ao que encontraríamos no teatro. Os diálogos longos talvez possam ser estranhos para um público acostumado a um cinema mainstream que privilegia a ação, mas Denzel foi hábil em equilibrar essas características teatrais com uma linguagem cinematográfica. Além disso, as ótimas interpretações e uma mise-en-scène harmoniosa garantem nosso engajamento na trama.

A diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen emprega movimentos de câmera tradicionais, evitando extravagâncias estéticas e concentrando a atenção na performance dos atores. Em alguns momentos mais emotivos, entra a singela trilha sonora que ajuda a embalar uma atmosfera sentimental, acompanhada de uma aproximação leve nos rostos dos atores. Esses elementos, tão comumente usados no cinema para indicar ao espectador como se sentir, são bastante discretos no filme de Denzel. Essa estética sóbria ajuda a balancear os momentos mais dramáticos, em que a encenação poderia se tornar exagerada. Embora o trailer possa sugerir o contrário, esse excesso não acontece no filme.

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A história de Troy traz um ponto de vista bastante masculino. Rose é a única mulher do filme por quase toda sua duração. Outras mulheres são apenas mencionadas, mas nunca aparecem, com apenas uma exceção perto do final. Já homens existem em abundância: os filhos de Troy, Lyons e Cory, o amigo Bono, o irmão Gabriel. Rose também não tem uma trama própria, e todas as suas ações, vontades e desejos no filme estão relacionados ao marido. O que esclarece a indicação de Viola Davis a melhor atriz coadjuvante nessa temporada de premiações, ao invés de melhor atriz.

O filme gira em torno da insatisfação de Troy com o rumo de sua vida, frustrado pela discriminação racial e falta de oportunidades que lhe negaram o sucesso que almejava. Ele ainda mantém seu espírito rebelde e insubordinado, como quando luta para conseguir mudar para uma função melhor no emprego, que não era comum darem a pessoas da sua cor. Porém, o filme traz o tema da perpetuação da violência masculina que é passada de geração em geração: Troy impõe a seus filhos a mesma brutalidade que sofreu de seu pai. 

Ele não está imune às consequências de seus atos. Por vezes sente culpa e tenta reparar alguns de seus feitos, mas seus familiares estão sempre tendo que lidar com sua teimosia. É custoso ver como esses personagens são reféns dessa figura de autoridade patriarcal, o homem de família provedor que usa da violência para submeter os outros ao seu domínio. Há outros personagens que contrastam com essa figura, como o irmão Gabriel e o amigo Bono. Este último inclusive avisa Troy das ciladas em que pode se meter caso não mude seu comportamento. O próprio título original Fences se refere à cerca que Troy está construindo em seu quintal, que funciona como metáfora para essas relações conturbadas vividas pela família. Nesse caso, as entrelinhas poderiam ter conservado a força da analogia, que é excessivamente expressada por meio de diálogos no filme: “Algumas pessoas constroem cercas para manter os outros fora, e outras o fazem para manter os outros dentro”.

O filme mostra como o machismo de Troy prejudica sua vida, mas ainda assim lhe traz vantagens. Ele reconhece que as melhores coisas que viveu foram possibilitadas por Rose, que sempre esteve ali por ele. Mas esse reconhecimento se mostra apenas retórico em diversos momentos em que ele não só demonstra colocar suas próprias prioridades acima da dignidade dela, como espera que ela arque com as consequências das irresponsabilidades dele. Além disso, os outros ao seu redor acabam sendo condescendentes com suas loucuras e até o tratando com uma certa veneração. Isso demonstra o motivo pelo qual a agressividade masculina é passada de geração em geração, e como os que se opõem a ela encontram tantas barreiras para estabelecer uma mudança sistêmica na sociedade.

Como Rose diz em um momento, o mundo mudou em vários aspectos, só que Troy não percebeu. Cory, herdeiro do espírito rebelde de seu pai, promete jamais compactuar com ele novamente. O filme sugere, porém, a possiblidade de que justamente o perdão seja uma saída para quebrar o ciclo dessa violência masculina e seguir em frente, coisa que Troy jamais conseguiu fazer por seu próprio pai.

A BUROCRACIA, A VELHICE, A SOLIDÃO: TODO O RESTO

Há uma sequência marcante em Todo o Resto (2016), da diretora mexicana Natalia Almada, que sublinha bem o tom do filme. Sentada diante de uma mesa de escritório cheia de arquivos e pilhas de ficheiros atrás de si, uma mulher de meia-idade checa atentamente uma carteira de identidade. Em seguida, ela olha para frente e faz uma série de perguntas objetivas: nome, data de nascimento, endereço. Do outro lado da mesa, outra mulher – mais jovem – responde às questões, mas, sem querer, interrompe várias vezes o pacto protocolar da situação: deixa o guarda-chuva cair e atende o celular que insiste em tocar. Por fim, a mulher mais velha avisa à outra que não é possível continuar, porque não há documentação suficiente para dar entrada no procedimento.

Esta cena comum poderia acontecer conosco diariamente, em qualquer repartição pública. Almada chama a atenção para a ineficiência da burocracia nos serviços públicos, mas escolhe um ponto de vista pouco explorado no cinema: não de quem é vítima da burocracia, mas de quem a reproduz.

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Pensando que o filme assume tal ponto de vista, imediatamente fiz uma comparação com outro filme que foi exibido também no Festival do Rio 2016: Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach – considerado um dos principais “highlights” do festival, ou seja, um dos filmes de maior expectativa do público, devido à Palma de Ouro conquistada em Cannes. Diferente do filme de Almada, o longa de Ken Loach está ao lado de quem sofre as consequências do descaso estatal: um senhor de meia-idade enfrenta sucessivos entraves burocráticos das repartições públicas para obter um benefício de afastamento do trabalho. Poderia ser um filme bem interessante, mas o problema é que Loach sobrepõe o tom humanista ao que deseja obter como cinema.

Preocupado em dar grandiosidade e urgência ao tema tratado – a luta de um cidadão comum contra a negligência do sistema -, Loach constrói as cenas de Eu, Daniel Blake no limite do risível, na medida em que o substrato emotivo é extraído a fórceps das situações dramáticas. Tudo parece ser didático e excessivamente explicado – um exemplo é a sequência em que o protagonista esbarra nos inúmeros e previsíveis erros ao preencher o formulário no computador. Não há qualquer profundidade no desenvolvimento dos personagens e de suas relações. O desfecho desemboca em fatalismo previsível. Parece seguir cartilha de cinema social bem comportado para burguês compreender e apreciar.

Já o longa-metragem de Almada procura seguir um caminho mais tortuoso. Ao explicitar as nuances singulares que levam uma funcionária pública a dificultar os processos de pessoas comuns, a diretora está mais interessada em compreender quais as distâncias existem entre quem precisa de um serviço público e quem é capaz de oferecê-lo. De que maneira acontecem os ruídos de comunicação neste jogo social? Por quais motivos eles são tão suscetíveis ao desgaste dos modos de vida? O que há de didático e piegas em Eu, Daniel Blake simplesmente desaparece em Todo o Resto, muito por conta da direção habilidosa de Natalia Almada, que se preocupa com uma ótica micro das relações sociais e, por isto, menos esquemática.

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A protagonista (encarnada pela excepcional atriz Adriana Barraza) compõe um gestual minimalista, que consegue tornar evidente o automatismo de sua própria rotina de trabalho como funcionária pública, atrelada a uma espécie de invisibilidade social. É desolador acompanhar a protagonista no ato de acordar todos os dias, olhando fixamente para o teto, junto com o tique-taque do relógio e o miado do gato como sons de fundo. Para amplificar a solidão da personagem, a atmosfera do filme alterna o silêncio dos espaços vazios da casa aos claustrofóbicos espaços urbanos. As sequências das viagens de trem entre os corredores repletos de gente e os vagões lotados aprofundam o clima de impessoalidade do cotidiano na cidade.

Almada também faz de seu filme uma crônica da velhice a partir da atenção minuciosa aos detalhes: o constante retoque da maquiagem; a forma meticulosa de colocar os óculos; o olhar para si através dos espelhos, que estão sempre opacos nas cenas; o medo de entrar na piscina. Outro detalhe curioso é a decisão de escolher vários planos médios das pernas da protagonista, colocadas no centro do quadro e filmadas de forma frontal para a câmera. Em ato de colocar ou retirar as meias-calças, as pernas aparecem descobertas, mas não há qualquer interesse tátil e/ou ótico de sensualizar o corpo da protagonista. Almada não quer esconder as marcas do tempo na pele da personagem: é uma pele com rugas, varizes. Ao filmar os corpos de mulheres idosas, a direção de Almada tem o cuidado de negar o padrão habitual de representação do corpo feminino, que infelizmente ainda está atrelado a um ideal de lucro por meio da fruição do espectador. Todo o Resto produz uma imagem da mulher que é bem rara dentro do cinema contemporâneo e que cria algo diferente diante de tantos “highlights” que a programação de um festival de cinema possa sustentar.

O ESPETÁCULO DAS APARÊNCIAS: BLING RING

Parece que Sofia Coppola tem predileção pela temática das aparências. Em seus filmes, as personagens estão sempre presos em redomas das superficialidades. Tanto em Maria Antonieta (2006) como em Um lugar qualquer (2010) os protagonistas são como prisioneiros sem se dar conta de um “mundo das aparências”. O último longa-metragem da diretora aborda o mesmo tema, no entanto, faz o caminho inverso: em Bling Ring – A gangue de Hollywood, Nick, Rebecca, Nick, Marc, Chloe e Sam fazem de tudo para entrar no universo das celebridades.

Com o roteiro inspirado em um artigo publicado na Vanity Fair, intitulado “Os suspeitos usavam Laboutin”, Bling Ring conta uma história verídica: uma gangue de adolescentes que roubava casas de grandes celebridades em Los Angeles. O roubo, no entanto, estava longe de ser justificado por necessidades econômicas, já que a todos os integrantes da gangue possuíam boas condições financeiras. Eles foram descobertos após publicarem fotos dos objetos roubados nas redes sociais. Nessa instigante história Sofia Coppola enxergou um ótimo argumento para um longa.

O filme de Coppola traz vários questionamentos ao espectador. Em termos de linguagem, Bling Ring seria uma espécie de videoclipe misturado a um reality show, o que caracteriza bem o modo de vida em Hollywood: fragmentado, vigiado e sempre acompanhado de uma trilha sonora. Em vários trechos do longa, os personagens estão dirigindo e cantando alguma música de um rapper famoso. O clima de ostentação é reiterado ao longo de toda a narrativa – chega a ser massivo e desconfortável. Talvez a intenção da diretora tenha sido a do incômodo, mas ela utiliza sempre a mesma forma (trechos de programas de tv, imagens no facebook) para contar a história e isto torna o filme um tanto repetitivo.

O narcisismo e a preocupação com a imagem são motes para o desenvolvimento do filme. Enquanto Nick e Rebecca tiram várias selfies na balada, Paris Hilton decora sua casa com almofadas estampadas com o próprio rosto. As selfies são destinadas ao Facebook dos integrantes que não temem em ser pegos. Aliás, que se vangloriam dos seus feitos, afinal, é desta forma que se tornam também celebridades.

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A lógica da ostentação poderia ser entendida segundo o termo “sociedade do espetáculo” do pensador francês Guy Debord. Apesar de estarmos em uma época diferente daquela na qual Debord cunhou o termo, ele pode ser facilmente aplicado diante dos contextos fetichistas que impregnam a sociedade do fluxo de informação e de imagens. O espetáculo é caracterizado não pela soma das imagens, mas pela relação social entre pessoas, mediada por estas imagens. Neste sentido, a noção de aparência se torna verdade para os personagens de Coppola. “O que aparece é bom; o que é bom aparece”. O espetáculo é o objetivo, e por isso é a projeção dos desejos mais absurdos destes personagens, que perdem a noção de ética, coletividade e, por que não?, da própria individualidade. Um verdadeiro paradoxo: um mundo egoico porém banal.

Personagens tão pouco desenvolvidas quanto a própria vida vazia à qual estão submersos. O longa tem um aspecto documental em que não sentimos de fato qual é a posição da diretora. Claro, existe um olhar. Talvez um olhar existencialista. É um olhar sobre vazio. Coppola optou então por falar sobre o vazio através de vários vazios. Rebecca, a líder da gangue, é um mistério – só aparece durante os roubos ou nas baladas. As meias-irmãs Nick e Sam se preparam para a filmagem de um reality show enquanto sua mãe despeja discursos sobre a filosofia de O segredo. Chloe tem relações com o corrupto dono da boate mais “bem frequentada” de Hollywood e Marc – o único personagem esférico da trama – é um amigo homossexual que encontrou nas meninas a possibilidade de ser aceito. Diante do ambiente esquizofrênico apontado por Sofia, a complexidade fica por conta do espectador, que deve tirar suas próprias conclusões.

A CULPA E O SILÊNCIO COMO HERANÇA DAS MULHERES: JULIETA

Pedro Almodóvar volta ao melodrama em sua melhor forma em Julieta, filme aparentemente contido, em que uma mulher de meia-idade busca acertar as contas com o passado. Essa aparência pode explicar o pouco sucesso que o filme vem angariando entre os críticos apaixonados pelo deslumbramento e exagero que marcam a obra do diretor espanhol.

Quem não se deixar abalar pelo ritmo mais lento e o tom reservado do filme encontrará vários elementos que nos remetem aos trabalhos anteriores de Almodóvar. Ainda que de maneira elegante e menos febril, estão ali o suspense, acentuado pela trilha e pelos flashbacks e as cores fortes dos cenários, que se confundem com os sentimentos das personagens. Isso além de fortes mulheres, entre o desejo e a culpa, em um conflito que se arrasta pelos anos e deforma vidas.

Julieta é uma mulher aparentemente bem-sucedida financeiramente, casada e independente que está de mudança para Portugal, para não mais voltar. Logo no início do filme há uma conversa com Bea, antiga amiga de sua filha Antía, que Julieta não vê há treze anos, por motivos até então desconhecidos. A partir daí, torna-se imperioso para a personagem escrever uma carta, um relato frágil que estivera estancado pelo tempo, desde quando era apenas uma jovem que não sabia o que esperar da maternidade e da vida a dois.

É revivida então uma história que parece muito particular e misteriosa, graças à personalidade esquiva e ao mesmo tempo encantadora de Julieta na juventude, e ao relacionamento intenso e cheio de mágoas com o pescador Xoan, uma espécie homem símbolo de uma liberdade mental e sexual que atrai e machuca as mulheres que tentam se aproximar.

Atenção: a partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.

Antía (Blanca Parés) e Julieta (Emma Suaréz).

Antía (Blanca Parés) e Julieta (Emma Suaréz).

É uma história intimista, que se desenvolve também em tudo o que não é mostrado em tela: através da carta, estamos com Julieta em um momento em que ela fala com sinceridade sobre sua vida pela primeira vez. Não podemos esquecer que todo o mistério em torno dos acontecimentos de sua vida parte de seu olhar exclusivo e limitado, desde a viagem de trem com seus prenúncios de morte até a revelação de sua depressão durante o crescimento de Antía.

O universo de esquecimento que Julieta construiu para se proteger se desconstrói quando ela conversa com a amiga de Antía. Ela percebe que não sabe todos os pedaços da própria história. Ao saber que Antía vive na Suíça e tem seus próprios filhos, Julieta se permite buscar uma chance de redenção.

A revelação pessoal de Julieta através da carta não explica precisamente de onde vem toda a mágoa, culpa e revolta que a afastaram da filha. E nem poderia: ao optar por se calar a vida inteira, Julieta tinha pouco ou nenhum acesso à intimidade dos outros, e com isso limita nosso olhar para dentro do filme e para a vida das personagens.

Julieta descreve Antía como uma jovem forte e independente, que cuidou dela durante um período de profunda depressão, mas as revelações posteriores entregam pistas de que a jovem não é quem a mãe descreveu.

Por trás desse retorno à juventude, há um enredo muito sensível às mulheres de meia-idade e com filhos, quando afinal se veem sozinhas: o de uma vida cimentada sob a culpa, e a transferência desse sentimento para os filhos, como uma herança amarga que nunca se rompe, graças ao silêncio.

Ava e Julieta: curiosamente, as duas eram capazes de manter um relacionamento de amizade, embora a culpa que perpassa as duas tenha origem no mesmo homem.

Ava (Inma Cuesta) e Julieta quando jovem (Adriana Ugarte).

Há um tratamento de gênero interessante em torno dessa culpa. Os homens do filme realizam seus desejos, independentemente das críticas que recebem: Xoan era um pescador libertário, sexualmente resolvido, e o pai de Julieta logo se casou com uma moça mais jovem, quando a esposa começou a perecer. Às mulheres do filme resta, como uma herança feminina, a culpa e o inconformismo por ter que ver suas vidas esfacelando em função dos homens e dos filhos. Até mesmo Ava, amiga de Julieta, perece sob a culpa que lhe cai por ter sido amante de Xoan, ainda que simbolicamente, através de sua doença. As mortes e desaparecimentos no meio do caminho são como avisos para que Julieta tome conta da própria vida: ela, no entanto, as compreende como castigo e impedimento para que viva plenamente.

Parte do estranhamento da crítica e do público talvez se dê pela economia de sentimentos expostos das personagens, a exemplo do belo Volver (2006), que trata de temas semelhantes e expõe as feridas que atravessam gerações de mulheres. Em Julieta, esses sentimentos muitas vezes se encontram apenas numa simples troca de informação: que deverá ter sentido Julieta quando Bea conta a ela que tivera um relacionamento amoroso com Antía? Que reação será possível para uma mãe que ignorou a vida inteira o que a filha vivia e sentia bem debaixo de seu nariz? Aos mais sensíveis só resta pensar no quanto disso pode existir em suas próprias vidas.

No fim, Julieta é mesmo um filme que opta por evitar picos emocionais, o que se demonstra pelo seu final aparentemente aberto, no qual só vislumbramos a esperança da reconciliação entre as duas, que só será possível a partir do rompimento do silêncio. Não conheceremos mais de Antía do que a mãe nos permitiu ver durante a história, o que considero uma decisão que demonstra maturidade criativa e emocional por parte de Almodóvar. Julieta está a caminho de se livrar da própria culpa após anos de sofrimento, e nós voltaremos para casa para nos confrontar com o peso de nosso próprio silêncio.

MULHERES SILENCIOSAS: BRILHO DE UMA PAIXÃO

Ainda, ouvir ainda a sua terna respiração,

e assim viver sempre – ou decair à morte.

  • John Keats

Foi apenas em 1878, mais de meio século depois da morte de John Keats, que o público descobriu enfim quem era a misteriosa noiva do poeta e a inspiração para seu famoso poema Bright Star. Frances Lindon casou-se, teve três filhos e morreu aos 65 anos, mas, em 1819 ela ainda era Fanny Brawne ou apenas “my dearest girl” nas cartas de Keats.

Reveladas anos após as mortes de Frances e de seu marido Louis Lindon, as cartas do poeta são consideradas algumas das mais belas escritas na língua inglesa, mas na época em que foram descobertas causaram grande indignação. Keats mostrava faces da sua personalidade que o público não estava preparado para conhecer, sua vulnerabilidade e ciúmes tornavam o idolatrado poeta em um ser humano comum. Essa indignação logo tomou a forma de ódio pelo objeto de afeto de Keats, Fanny Brawne, vista como indigna do seu amor.

As cartas de Brawne para Keats nunca foram encontradas e sabia-se muito pouco sobre como ela correspondia àquela paixão desenfreada, a ideia de que ela era paqueradora e brincava com os sentimentos de Keats foi muito disseminada. É um tanto quanto irônico perceber que as musas dos poetas, aos olhos do público, só possuem valor dentro do poema, no sentido figurado. Uma mulher real, amada profundamente por aquele que é tido como ídolo, nunca seria capaz de chegar aos pés da mulher idealizada do poema. Pois bem. Fanny era real, possuía falhas e nem ao menos se interessava muito por poesia. Talvez por isso Keats tenha se apaixonado por ela, ela amava o John Keats homem, não o poeta, e foi com ele que ela ficou apesar da falta de dinheiro do rapaz – Keats só se tornou célebre após sua morte – e da doença que assolou os últimos anos da sua vida.

A terrível opinião pública sobre Fanny só começou a se alterar décadas depois da descoberta das cartas, com a publicação das cartas da própria Fanny para a irmã de Keats, que demonstravam a firmeza e constância de seu afeto (Estrela brilhante! Queria eu ser constante como sois). Ela passou muitos anos de luto depois da morte do noivo e guardou as cartas dele consigo até a sua morte. Não é de se admirar, então, que Jane Campion, que até então fizera filmes de cunho abertamente feminista, escolhesse fazer um filme que, apesar de aparentar ser um simples romance de época, fizesse parte da tendência de restaurar a reputação de Fanny Brawne perante a História.

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Minha querida Menina,

Neste momento eu me posicionei para escrever alguns belos versos. Não posso prosseguir com nenhum grau de contentamento. Preciso escrever para ti uma ou duas linhas e ver se isso vai me auxiliar a tirar-te da minha Mente mesmo que por pouco tempo. Pela minha Alma, não consigo pensar em nada além de ti – O tempo em que eu era capaz de aconselhar-te e advertir-te contra a desalentadora manhã da minha Vida passou – Meu amor me tornou egoísta. Eu não posso existir sem você – Eu me desleixo de tudo menos de quando te verei de novo – minha Vida parece parar aí – eu não vejo além. Você me absorveu. Tenho a sensação no presente momento como se eu dissolvesse – Eu estaria extraordinariamente infeliz sem a esperança de ver-te em breve. Eu temeria estar distante de ti. Minha doce Fanny, teu coração nunca mudará? Meu amor, mudará? Não há limite para o meu amor – O teu bilhete acaba de chegar – Eu nunca posso estar ‘mais feliz’ longe de ti. É mais rico que um navio de pérolas. Não me ameace nem de brincadeira. Eu já me assombrei que Homens pudessem morrer Mártires pela religião – Estremeci em razão disso. Eu não estremeço mais. Eu poderia ser um mártir pela minha Religião. O Amor é minha religião. Eu poderia morrer por ele. Eu poderia morrer por ti. Meu Credo é o Amor e tu és o único dogma. Tu me arrebataste por um Poder ao qual não posso resistir; e todavia posso resisti-lo até ver-te; e desde quando te vi tenho me empenhado em “argumentar contra os argumentos do meu Amor”. Não posso mais fazê-lo – a dor seria desmedida. Meu Amor é egoísta. Não posso respirar sem ti.

Teu para sempre

John Keats

Em Brilho de Uma Paixão – Bright Star, no original – Campion conta a história do turbulento romance de John Keats e Fanny Brawne, desde seu primeiro contato até a morte de Keats de tuberculose aos 25 anos. Ou talvez fosse mais preciso dizer: desde quando Fanny conheceu John até seu luto após a morte do noivo.

Sabemos da morte de Keats, mas vemos apenas a reação de Fanny ao fato, ilustrando a intenção de Campion: é a hora de conhecer o lado de Fanny da história. Muito foi escrito sobre Keats, sua vida, trabalho e doença esmiuçados à exaustão. Mas o que sabemos sobre a mulher que o inspirou a escrever? O que sabemos sobre sua espera? Sua vida doméstica, seus desejos e planos para o futuro? Nunca saberemos ao certo as respostas para todas essas perguntas. Campion nos conta o pouco que se sabe e preenche as lacunas com lirismo e beleza dignos dos Românticos.

Passamos os três anos entre 1818 e 1821 em Hampstead, onde Fanny mora com sua mãe e dois irmãos mais novos e onde conhece Keats. Assim como o jovem poeta, Fanny também procura escape criativo e o encontra na costura. O filme é permeado pela vida cotidiana dos Brawnes, as aulas de dança dos três irmãos, bailes, caminhadas pela floresta; a beleza do dia-a-dia e da natureza é capturada com pouco movimento, por vezes, estática, lembrando pinturas bucólicas.

O mundo exterior, tanto a calmaria quanto as tempestades, complementam os sentimentos despertados pelos amantes. O início tímido do relacionamento é acompanhado por muitas cenas interiores, uma luz acinzentada. Quando somos confrontados com sentimentos violentos pela primeira vez, Keats encontra-se encharcado no meio de uma tempestade, desolado pelo seus ciúmes e acompanhado por trovões. Ao longo de todo filme o interior e o exterior brigam por dominação, as janelas são portais de contemplação para o mundo de fora e conforme o romance floresce, somos cada vez mais mais levados pela natureza. Em determinado momento, Fanny decide começar uma fazenda de borboletas dentro do próprio quarto em razão de uma carta de John.

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“Eu quase desejo que fôssemos borboletas e vivêssemos apenas três dias de verão. Três dias como estes eu poderia preencher com mais deleite do que cinquenta anos comuns poderiam conter.”

A descoberta da doença de Keats marca a vitória dos espaços interiores. Ben Whishaw interpreta Keats com tamanha melancolia e vulnerabilidade que por vezes eu me pergunto se ele não deveria desistir de qualquer outro papel que não seja de um poeta romântico que morre antes dos 30 anos de idade. Sua atuação é marcante o suficiente para que o protagonismo de Fanny, interpretada por Abbie Cornish, seja equilibrado. Contudo, ao final, Whishaw não pôde dizer as últimas palavras do poeta (Não respire em mim, ela vem como gelo), proferidas em Roma e longe de todos seus amigos e de sua noiva. É Fanny quem vemos, andando pelo bosque com lágrimas nos olhos recitando o poema que ele escrevera para ela.

Sabemos muito pouco sobre Fanny Brawne, e sua história merece ser contada. Precisamos contar as histórias das mulheres silenciosas, que já não podem se defender. Das musas, das amantes, das mães, que sempre apareceram na História em função de algum grande homem cuja vida parecia mais importante. Precisamos de mais Fanny Brawnes restituídas ao seu lugar de direito. Ainda sabemos pouco sobre ela, mas já é um começo. Sabemos que ela amava costurar, que tinha dois irmãos mais novos, que gostava de festas e que ela amou profundamente um certo John Keats que, por acaso, veio a ser um dos grandes poetas ingleses.

NOVE SEMANAS E MEIA DE ABUSO: A EROTIZAÇÃO DO ESTUPRO

Adrian Lyne conseguiu transformar um molestador infantil em um herói romântico com maestria em Lolita (1997). Mas essa não foi a primeira vez que o diretor estripou um relacionamento abusivo para encaixá-lo em um delírio erótico. Quase uma década antes, um livro baseado em fatos reais havia caído na mãos do diretor. Era Nove semanas e meia de amor, escrito pela autora Ingeborg Day, sob o pseudônimo de Elizabeth McNeill. A história deu origem ao filme que virou um clássico do cinema erótico e é hoje exaltado como a versão “original/realista/mais sexy” de Cinquenta tons de cinza.

O relato de Day começa singelo: um amante sem nome pede para vendá-la durante o sexo. O que era supostamente uma experimentação sexual vai escalando. Toda noite, assim que entra no apartamento, ela é despida e tem os pulsos amarrados. É ele quem cozinha, dá banho, veste seu corpo, penteia seus cabelos. Ele ameaça expulsá-la de casa se ela se recusar a cumprir suas exigências sexuais. Ele a estupra.

Day está apaixonada. Day teme que ele a mate. Das duas premissas, a conclusão: “Se você me matar, você terá que encontrar outra, e é fácil encontrar mulheres como eu?” O relacionamento acaba quando ela tem um colapso nervoso e o amante a interna em uma clínica psiquiátrica. Os dois nunca mais se encontraram.

O livro Nove semanas e meia nos escancara a ambivalência emocional de uma mulher sobrevivente de um relacionamento abusivo. Revela como o enlace entre prazer e dor, admiração e medo, carinho e violência possibilitou que ela encontrasse na submissão, no anulamento de si mesma, uma identidade.

O relato de Day nos permite compreender como o discurso tradicionalmente feito sobre relacionamentos abusivos promove uma imagem de vítima perfeita e abusador desumano que jamais poderá se equiparar à realidade complexa que essas mulheres vivem, e que portanto as desarma de meios de compreender a própria experiência.

Não foi isso, porém, que o roteirista Zalman King interpretou da obra. King, que se julga um conhecedor exímio da sexualidade feminina, desenvolveu a teoria esdrúxula de que todas as mulheres passam por um período “perigoso” no qual ficam “viciadas em orgasmos”. Foi essa a história que o roteirista enxergou: uma mulher que é levada a um colapso nervoso por seu vício em gozar.

Em toda sua condescendência masculina, o objetivo de King era mostrar a “jornada do despertar da sexualidade feminina”. Mas não foi bem assim que o filme entrou para a história. Por quê?

A câmera de Adrian Lyne está constantemente deslizando sobre o corpo de Kim Basinger, que interpreta Elizabeth. Mickey Rourke, seu par romântico, permanece vestido na maioria das cenas e tem menos tempo de tela. Se os seios, as pernas, os braços de Basinger são expostos como um convite, quando se trata de Rourke, a câmera se limita a focar no seu rosto.

Um exemplo desse olhar é a cena de masturbação feminina, na qual Basinger se contorce harmoniosamente e faz caras e bocas risíveis para qualquer mulher que tenha o hábito de masturbar. O sucesso do filme com o público feminino heterossexual apenas comprova o quanto estamos acostumadas a ser voyeurs de nós mesmas.

  

Poderá Elizabeth passar por um “despertar sexual” se seus trejeitos são calculados para agradar o espectador? Como poderá ela descobrir a si mesma se está constantemente performando para o olhar alheio? Elizabeth, com o jeito infantil de balançar as pernas, a risada nervosa e o rosto corado que busca esconder, emana insegurança.

“Ela foi minha primeira escolha. Ela tinha a vulnerabilidade”, diz Lyne, ao explicar o casting de Basinger para o papel principal. Porém, aparentemente a vulnerabilidade inata da atriz não era suficiente. O método adotado pelo diretor foi o seguinte: a equipe de Nove semanas e meia de amor deveria tratar Rourke com gentileza e respeito. Basinger era negligenciada ou assediada. Os protagonistas não podiam se comunicar fora do set. Segundo Lyne, esse tratamento ajudava a criar a tensão sexual entre os atores e compensava a falta de capacidade técnica e intelectual da atriz.

“Kim é como uma criança. Ela é inocente. Isso é parte do seu apelo. É uma atriz instintiva. Ela não é uma intelectual. Ela não lê livros. Ela não atua de verdade, ela reage”, argumentou Lyne. “Não concordo com essa descrição de mim mesma de forma alguma. Para dizer a verdade, eu deliberadamente não me permiti enxergar todos os jogos que estavam sendo feitos para que o filme fosse produzido”, rebateu a atriz.

Em uma cena que não consta no livro original, John, como foi batizado o amante, convence Elizabeth a cometer suicídio tomando pílulas, que na verdade contêm apenas açúcar – que romântico! que erótico! A atuação de Basinger não estava “vulnerável” o suficiente, então Lyne chamou Rourke: “Precisamos fazer algo para quebrá-la”.

Rourke agarrou o braço de Basinger com força, fazendo-a chorar e revidar com um tapa. O ator lhe deu um tapa na cara, e então Lyne autorizou que começassem a gravar. A cena do falso suicídio foi retirada na versão final do filme porque, segundo o diretor, “fazia o público odiar John demais”.

Uma mulher assediada, humilhada, negligenciada e estapeada: essa é a face da sensualidade. Para alcançá-la, tudo se torna válido. É uma lógica não muito diversa da indústria pornográfica. O abuso escondido na narrativa de Nove semanas e meia de amor também é o abuso escondido na produção do filme: a vida imita arte.

Nove semanas e meia de amor obscurece o abuso de Elizabeth não só ao extirpar cenas cruciais do livro, como o colapso nervoso da personagem, mas também ao romantizar os momentos abusivos. É um clássico do soft-core: o estupro erotizado, romanceado, palatável, distorcido como consensual. Embora a frase “todo sexo é estupro” jamais tenha sido proferida por uma feminista, como alguns gostariam de pensar, o oposto pode ser dito sobre a sexualidade masculina: para os homens, todo estupro é sexo.

Quando Elizabeth se recusa a apanhar de John, ele a toma à força. Após tentar resistir, ela se entrega: ela gosta. Ela gosta de ser estuprada é o recado da pornografia e do filme erótico, que não são primos tão distantes assim. É a máxima que permite aos homens se isentar da responsabilidade das suas ações, que os impede de enxergar a brutalidade e a crueldade daquilo que querem.

O momento em que Nove semanas e meia de amor é mais inconscientemente perspicaz é quando Elizabeth abandona John em um quarto de hotel. Ela vaga sozinha por uma zona de prostituição e cinemas pornográficos e entra em um teatro onde acontecem apresentações de sexo ao vivo, que não lhe provocam tesão mas sim nojo e medo. Ela chora ao perceber que foi até aqui que essa jornada de “descoberta sexual” a levou.

Enxergamos o pornográfico como um universo de fantasia à parte, isolado das nossas experiências sexuais, mas o sexo que conhecemos é construído a partir pelos mesmos valores que norteiam a pornografia – cujos produtores e público-alvo são do sexo masculino. O pornô é apenas uma ponta extrema do sexo como uma relação entre dominante e submisso, ativo e passivo.

Elizabeth sofre porque explorar sua sexualidade sempre será feito em termos masculinos. Não conhecemos o que seria uma sexualidade feminina porque o universo de fantasia e de desejo a que temos acesso foi engendrado por homens para servir aos seus interesses, e nesse mundo o único papel que resta à mulher é de objeto. Elizabeth não pode ser protagonista do próprio desejo, ela pode apenas reproduzir o que já lhe foi entregue. É desse despertar que surge sua rebelião e que a faz abandonar John, ao final do filme.

Mulheres são masoquistas? Ou a dor foi o lado da barganha que fomos ensinadas a tolerar caso desejemos sentir prazer? Essa foi a pergunta desconfortável que Lyne ignorou, e cujo seu filme implorava a resposta.


por Amanda V.
Amanda escreve no Deixadebanca e também organiza o Xotanás, sobre masturbação feminina.

FILMAR PARA NÃO ESQUECER: MY BEAUTIFUL BROKEN BRAIN

Algumas experiências são tão raras, subjetivas e difíceis de serem descritas em palavras que resta, a quem não as viveu, apenas o mistério de imaginá-las. O cinema é uma das ferramentas que dão vazão a essas imagens que, por serem criadas, já trazem em si o peso da impossibilidade da apreensão direta do real. No entanto, os filmes estão há tempos nos apresentando a experiência da alteridade, de nos distinguir ou nos encontrarmos no olhar do Outro, muitas vezes como um caminho de retorno a nós mesmos. Arriscando-me a ser piegas aqui, os filmes podem nos ajudar a por a vida em perspectiva.

O uso da câmera subjetiva para colocar um sujeito dentro da história, como um olhar que se transfere para o espectador, não é novo, mas My Beautiful Broken Brain surge nesses tempos em que essa subjetividade não serve mais somente ao cinema, e sim às narrativas do dia-a-dia. As câmeras estão, para a maioria das pessoas que têm o privilégio de obtê-las, ao alcance das mãos, em nossos celulares, tablets e computadores. A profusão de histórias cotidianas gravadas no modo “selfie” de nossos celulares muitas vezes nos fazem parecer personagens que caminham por aí não necessariamente desvendando o mundo, mas repetindo a nós mesmos e tornando o universo mais parecido com o que queremos. Bem o inverso da ideia de alteridade.

Como então filmar de maneira a investigar a si, proporcionando a compreensão, a mudança e a empatia sem se deixar levar por uma egocêntrica narrativa de nós mesmos? Essa é uma pergunta sincera e faz parte da minha trajetória como realizadora. O que queremos quando nos colocamos em uma obra?

O que queria Lotje Sodderland quando, dez dias após seu acidente vascular cerebral, resolveu gravar um vídeo em modo “selfie” contando que está viva? Como o filme trata de sugerir tanto quanto deixar em aberto essa questão, o certo é que nunca compreenderemos inteiramente a nova forma como o mundo se apresenta para Lotje, mas temos à mão belos pedaços. A coragem de se colocar em frente à câmera lutando contra suas limitações cognitivas revela certa intenção de chegar a alguém. Em certos momentos, a solidão retratada faz parecer que ela precisa chegar a alguém, qualquer coisa, a ela mesma, e imediatamente, sob o medo de se ver esfacelar, de esquecer de si.

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Há momentos em que o filme peca pela abordagem “documentária” forçada, tomando depoimentos de outras pessoas que insistem em dizer que Lotje era produtiva, extrovertida e intelectual, antes do acidente vascular cerebral. A direção do filme demonstra pensar que era preciso deixar clara a diferença entre a moça de antes e a de agora, mas o fato é que o melhor da obra é como Lotje percorre o caminho de descobrir quem ela é de verdade, para além de toda a mudança. O que define quem ela é: o acidente, as novas visões, as limitações de linguagem? Ou a extrema resiliência com a qual ela busca se recuperar, se redefinir e ressignificar o mundo? O que significa a vontade de Lotge de filmar a si no meio da rua, descrevendo seu novo mundo? Para que procurar uma diretora que pudesse transformar as descrições em cores, distorções e sons que pudessem dar conta desse universo além das palavras?

Não à toa, Lotje busca referência no cinema, a grande biblioteca dos imaginários visíveis, e em David Lynch, o cineasta dos sonhos. Através do contato com ele o filme pôde vir ao mundo. É emocionante ver como ela parte das limitações de sua mente para o entendimento de uma mente sem limites, quando passa a se ver como parte de um sonho, de uma consciência cósmica, sem com isso diminuir a dor de sua condição. Seu acidente foi provocado por condições genéticas, interiores, que tornavam seu novo estado de vida apenas uma questão de tempo.

Logo se nota que para Lodje, o grande desafio está em aprender a libertar sua versão mais verdadeira, diante da fragilidade de si mesma, de suas memórias e do mundo em vive, tão despreparado para pessoas como ela. Nunca saberei o que ela sente, mas graças à sua busca pela permanência através do ato de filmar, posso assisti-la e colocar minha própria vida em perspectiva. Não estamos falando de egolatria. My Beautiful Broken Brain é sobre filmar para não esquecer.

DECADÊNCIAS DO CONVÍVIO: O PÂNTANO

O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.

No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.

Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.

Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).

O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.

Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.

Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.

O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.

Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.

A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.

O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.

O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a  diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.

CONFIDÊNCIAS FEMININAS SOBRE O PASSADO E O PRESENTE: A HORA DO CHÁ

Você já teve a impressão que fizeram o filme cujo qual você gostaria de ter feito? Foi o que eu senti ao me deparar com “La once”, ou a Hora do chá – documentário dirigido pela chilena Maite Alberdi. Há tempos venho pensando em filmar os encontros de minha avó e de suas amigas octogenárias que acontecem a cada semana. Denominado como “o jogo das meninas”, a reunião é repleta de lanches, jogos de baralho e confissões íntimas. Parece que a Maite teve a mesma ideia. Em seu longa-metragem documental, a diretora retrata o encontro da avó com mais cinco mulheres, amigas de escola que se reúnem mensalmente há 60 anos.

A princípio, somos guiados pela narradora Tereza que apresenta as integrantes do grupo a partir das personalidades e características de cada uma. Quando já familiarizados, sentamos à mesa para tomar um chá. Com planos muito próximos, nos sentimos verdadeiramente parte da conversa. Os vários planos-detalhe dos doces, tortas e salgadinhos nos trazem uma sensação de conforto e intimidade. Diante de tanto açúcar, seria possível esconder algum segredo? As senhoras seguem conversando sobre os temas atuais e tabus como a sexualidade.

Quando demonstram suas opiniões, as velhas amigas, por vezes, suscitam tendências mais conservadoras. A diretora optou por não esconder possíveis julgamentos ou preconceitos vindos das falas dessas mulheres. Exemplo é a presença das empregadas e o tratamento dado a elas durante o filme. Maite frisa como as domésticas são responsáveis por preparar e arrumar o lanche, mas entre as conversas são ignoradas. Estas senhoras são, de alguma forma, o retrato do Chile, um retrato da classe média chilena que pouco se difere da nossa. No entanto, o longa não destrincha sobre questões políticas e sociais, o foco do documentário é outro: a relação de amizade construída durante anos.

Nesse emaranhado de falas, encontramos muitas vezes opiniões parecidíssimas com as de nossas avós. A discussão sobre “o papel da mulher na sociedade”, por exemplo – e como isso foi ensinado a essas senhoras ainda na época da escola. A discussão se alonga e elas concordam que os valores mudaram e a noite de núpcias já não parece mais um bicho de sete cabeças para nenhuma moça. Uma das amigas leva ao encontro o antigo caderno da disciplina intitulada “Economia doméstica”, onde as características da “boa esposa” eram explicitadas, com destaque para o “ autocontrole”. As próprias senhoras riem após a leitura do caderno. O riso é necessário durante todo o filme. Afinal, elas acabam se criticando, pois muitas vezes não têm as mesmas opiniões.

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A conversa sai dos temas sociais para se tornar mais íntima. “Vocês preferem que seu marido lhe traia ou que ele morra?”, pergunta uma das personagens. O tema do amor e casamento surge como uma causa principal para essas mulheres, menos para Gema – que decidiu não se casar e por isso desperta desconfiança entre as amigas.

Estas senhoras que viveram a época de transição das conquistas feministas se veem, depois de velhas, mais empoderadas. Não tanto pelos direitos femininos adquiridos, mas pelo caráter de discernimento que a velhice possui. Não precisam aparentar mais nada. Não têm papas na língua. Falam o que vem à cabeça. Riem e discutem sem pisar em ovos. Nesse sentido, “La once” nos traz uma perspectiva sobre a percepção dos idosos sobre a realidade. Se na juventude, as regras lhes eram impostas e as alternativas eram segui-las ou quebrá-las, a velhice traz a possibilidade de ignorá-las, de transpô-las.

A hora do chá é também ritualística. Um encontro mensal que acontece religiosamente. Em entrevista, a diretora Maite Alberdi confessou que teve a ideia de fazer o longa após a avó negar de ir à premiação de um filme da neta, pois o evento iria acontecer no mesmo dia que a “hora do chá”. É como “o jogo das meninas”, quando acontece na casa da minha avó, todo mundo tem de sair. Os encontros entre amigas são sagrados. Nesse espaço, nesses dias tão específicos se trocam confissões, intimidades. Por mais diferente que sejam, essas velhas senhoras se sentem pertencentes a algo maior, em outras palavras, ao sentimento da amizade. Aqui relembro o conceito de sororidade. A hora do chá representa aquele encontro semanal com amigas no bar, pra falar de trabalho, de amor, de filhos, de coletor menstrual, “do papel da mulher na sociedade”, etc, etc.

RIVALIDADE E FORÇA FEMININA: COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

Esse filme mexicano de 1992 foi dirigido por Alfonso Arau é adaptação de um livro homônimo escrito por Laura Esquivel. Conta a história de Tita (Lumi Cavazos), uma menina que ao nascer foi designada para cuidar da mãe (Regina Torné), como parte de uma tradição da família. Por isso, Tita não poderia se casar, mesmo assim, ela se apaixona por Pedro (Marco Leonardi) e é correspondida. A mãe, para impedir que os dois namorem, oferece a mão de Rousaura (Yareli Arizmendi), irmã de Tita para Pedro, que aceita no intuito de morar perto da amada. Assim, Tita tem de viver na mesma casa que os dois, escondendo seu amor. Além de Tita e Rosaura, mamá Elena, a mãe, tem mais uma filha, Gertrudes (Claudette Maillé), que foge e acaba se tornando a líder do exército revolucionário. O filme tem uma relação bem forte com a cozinha, local onde Tita nasceu e passou a maior parte da vida. Além disso, os sentimentos reprimidos da protagonista se concretizam e tomam forma por meio da comida.

Bom, vamos por partes, apesar de ser um filme com mulheres independentes e de família matriarcal (mamá Elena chega a dizer para o padre que “os homens não são tão importantes assim” quando ele a questiona sobre a falta de um em casa), ainda há uma grande valorização do amor Romântico (com letra maiúscula e direito a todos os clichês do Romantismo mesmo) e noção de que as mulheres de bem são as que sabem cozinhar e cuidar da casa. De fato, o filme separa as mulheres “para casar” e as “vadias”, algo que não fica tão incômodo porque acaba sendo uma crítica a esse modelo e ao pensamento da época. Ainda assim, mostram de maneira ridicularizada as mulheres que não sabem cozinhar, por exemplo. Um ponto positivo é que a maioria das personagens com falas são mulheres, quase todas elas são mulheres fortes e com personalidade, com exceção de Rosaura.

O desejo é quase como uma entidade, presente em todo filme. Assim também é com a repressão. Essas duas entidades se materializam nas personagens Tita e Elena. Tita que não pode viver seu desejo, o transfere para Gertrudes, que ao comer o que Tita cozinha, se sente excitada, se masturba, foge de casa… O desejo é retratado com a metáfora do fogo, é de um incêndio que Gertrudes corre pelada para o colo de seu amado. Gertrudes é uma personagem muito interessante, mas que infelizmente não é explorada na história. Ela volta como “generala” do exército revolucionário, é uma mulher imponente e temida pelos homens que participam da revolução, todos a obedecem de cabeça baixa, mas não sabemos o que ela fez nem por onde andou.

Se por um lado as representações femininas quebram estereótipos, por outro reforçam a noção deturpada de feminilidade ligada dotes culinários e do lar. Também há a manutenção da ideia de rivalidade entre mulheres – disputando um homem, nada novo sob o sol. Porém, essa relação de rivalidade fica restrita a Rosaura e Tita. A maior parte das mulheres no filme se ajudam e se fortalecem. Gertrudes, Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) apoiam Tita, porém sem coragem de se colocarem contra a matriarca. Gertrudes secretamente ensina Tita e evitar uma gravidez, por exemplo. As vizinhas/parentes da família também se mostram favoráveis ao amor de Tita. Uma das relações que mais gostei de ver ser desconstruída foi a relação de mãe e filha. Não existe no filme o amor maternal mágico. Também não existe amor incondicional à mãe. Tita chega a dizer para Elena que sempre a odiou, indo contra o final feliz comum em que as personagens se reconciliam e vivem todas felizes para sempre. Esse é um ponto bem interessante, porque o filme não retrata as mulheres como sensíveis e passivas a perdoar qualquer atrocidade que as acontece. O filme se passa entre 1910 e 1934, no México, então é normal que mostre como as mulheres eram criadas para odiar umas as outras, mas mostra sublimemente como essa criação pode ser burlada e como a união feminina é forte.

O filme não mostra empoderamento feminino nem contesta o papel da mulher na sociedade, mas escolhi falar sobre ele por ter personagens complexas com histórias próprias, que não dependem de um homem para acontecer. Na maior parte do filme, o corpo feminino não é tratado como objeto. Em alguns momentos, o filme sexualiza Tita, mas é interessante o fato de em alguns momentos sexualizar o corpo masculino também. Na verdade, em um momento só, quando Pedro chupa e passa gelo de maneira sensual pelo corpo. Também incomoda um pouco o fato de que o que preocupa Rosaura em relação ao casamento dela não é o fato de ter se aproveitado da situação vulnerável da irmã, mas sim a possibilidade de o marido não a desejar mais por causa de seu peso, seu hálito e seus gases. Fica ainda forte no filme o casamento como único destino para as mulheres. Mesmo Gertrudes, que fugiu e liderou uma revolução, acaba casada e com filha. Vale ressaltar que as mulheres no filme são em maioria brancas, com exceção de Chencha e Nacha que parecem ter origens indígenas.

O filme utiliza alguns recursos do realismo fantástico para construir situações visualmente inusitadas e expor tanto o sofrimento contido quanto a libertação sexual. Após reassistir para escrever essa crítica, me encantei menos que da primeira vez que tinha visto. As mensagens de esperança e de força feminina ainda estão ali, porém muitas problemáticas ficaram mais claras para mim, todas elas relacionadas ao amor romântico (agora com minúscula, mas englobando o Romântico maiúsculo também) e ao papel determinado para as mulheres nesse sistema. Desde crianças, as filhas de Elena são ensinadas a buscar um amor heterossexual como objetivo de vida. São sempre questionadas sobre quando e com quem querem se casar. Quando a filha de Rosaura nasce, uma das primeiras coisas que ouvimos sobre ela é a vontade que o filho do médico tem de se casar com a menina recém nascida. E, fatalmente, os dois se casam.

Até a protagonista se apaixona sem explicações razoáveis. Nunca é mostrada uma conversa sequer entre Tita e Pedro, mesmo assim ela se mostra perdidamente apaixonada pelo rapaz. É como se o amor fosse uma força inexplicável que vai fatalmente atingir a todas as mulheres. Isso fica claro desde o começo do filme, quando Elena diz a Tita que ela não vai poder se casar, Tita, ainda criança, se revolta e fica chateada com a notícia. Permanece a ideia de que, se não for o casamento, não resta mais nada a ela. A própria Elena guarda uma foto de seu amor do passado em um colar em formato de coração, ou seja, na concepção do filme, até a mais fria e rigorosa das mulheres é destinada a amar eterna e incondicionalmente alguém.

Quanto ao título, se refere ao ponto de ebulição da água. É uma expressão usada no México, já que para fazer chocolate a água deve estar fervendo. No livro, essa expressão é usada para demonstrar que Tita estava sempre com raiva das situações que lhe eram impostas, desde seu futuro predestinado, até a indignação com o comportamento de Pedro, porém no filme isso não fica tão claro. Tita é retratada como uma moça tolerante e carinhosa. Provavelmente, no livro, por ser escrito por uma mulher, as perspectivas de amor e a personalidade da protagonista são diferentes.


Ilustração da dominicana Gaby D’Alessandro