Nota da tradutora: Este ensaio foi originalmente publicado em inglês pela revista digital Another Gaze no dia 12 de junho de 2019 e foi traduzido por nós do Verberenas com as autorizações da autora, Rebecca Liu, e da Another Gaze. Trata-se de um texto que se debruça sobre a recepção da arte feita por mulheres millennials – também conhecidas como mulheres da geração Y, aquelas nascidas por volta de 1981 a 1996 – pertencentes a um grupo social muito específico e os perigos de elevar as personagens criadas por elas ao status de universais.
por Rebecca Liu
Ser um millennial é como estar preso em um estado de limiar adolescente constante. Amuados, irritadiços e dolorosamente hipervisíveis, cada um dos nossos movimentos é rastreado por guardiões zelosos impacientes para anunciar a próxima manchete viral. Nós não gostamos de guardanapos, segundo a Business Insider; nós gostamos de casas pequenas, declara a CNN. Goldman Sachs comenta que mais millenials têm “escolhido” viver com nossos pais, ao mesmo tempo que um artigo de opinião do Guardian pergunta por que nós não estamos tendo filhos. Não é de se admirar que nós supostamente tenhamos ansiedade e um amor insaciável por destruir indústrias consolidadas.
Uma das poucas coisas associadas aos millennials que teve uma recepção pública positiva é uma manifestação específica de arte. Esta arte gira em torno do arquétipo da Jovem Mulher Millennial – bonita, branca, cisgênero, e torturada o suficiente para ser interessante, mas não o suficiente para ser repulsiva. É comum que ela seja descrita como alguém com quem podemos nos identificar, embora, na realidade, não seja. Essa ideia de “identificação” esconde a verdade desconfortável de que ela é mais bonita, mais inteligente e mais irritantemente precoce do que nós somos na vida real. O seu charme reside no fato dela se odiar tanto que se torna alcançável: ela é a identificação desejável. Ela geralmente é rica, mas não pensa muito sobre isso. Sua vida é tão cheia de drama, de baixa auto-estima e de mobilidade social descendente que ela esquece disso, assim como nós devemos esquecer. Seus amigos, se ela tem algum, são narcisistas incorrigíveis, e os homens em sua vida são decepcionantes e horríveis. Por mais que ela tente, seus protestos contra o mundo sempre são redirecionados e se transformam em autodestruição melancólica.
Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge, confirmou minha suspeita de que nós não assistimos à televisão tanto quanto participamos da cultura televisiva. Objetos culturais de massa se tornaram o elo de um tipo de vida pública. Eu nunca havia ouvido, lido sobre ou visto tanto de uma série de TV antes de ter a chance de assistir. O Guardian a classificou como “a série mais eletrizante e devastadora em anos”; o Telegraph a chamou de “uma obra de arte quase perfeita”. O Financial Times começou sua crítica com um fato inverificável que ao menos parecia verdadeiro: “Fleabag foi a melhor série da televisão? Boa parte do Twitter parece achar que sim”. Quando eu finalmente vi a série, eu a achei boa. Eu ri, chorei, empatizei com ela, me irritei. A série desconstrói dinâmicas familiares tóxicas, o espetáculo de autodesprezo que é ir em encontros amorosos, e o que significa confrontar os próprios traumas quando a ironia esquiva é muito mais fácil. Foi bom. Mas o que permaneceu na minha mente depois não foi tanto a série em si, mas a conversa previsível e frenética que girou em torno dela.
Um ciclo de marketing cheio de hipérboles celebram séries como essa através de um vocabulário que indica total identificação, e isso as deixa completamente expostas à inevitável reação contrária. Nem tudo vai ser amado por todos, especialmente quando dizem para esses “todos” que eles têm que amar algo baseado no fato de que eles vão encontrar reflexos deles mesmos ali. Isso aconteceu com Lena Dunham e Girls, Sally Rooney e Pessoas Normais, Kristen Roupenian e Cat Person. Embora os projetos dessas mulheres sejam diferentes entre si, as formas como eles foram divulgados parecem seguir o mesmo roteiro. Já aconteceu antes e vai acontecer de novo. Embora essa abordagem promocional não seja exatamente misógina, ela é uma forma de discurso público que abre espaço à misoginia. É uma abordagem que pretende se antecipar àqueles que são céticos quanto ao valor da voz da mulher jovem enquadrando essa voz como um feito incrível e transformador fruto do gênio de uma geração. A maioria das pessoas não são gênios. Você não precisa ser um para fazer boa arte – uma olhada rápida em qualquer lista longa de homens autores celebrados mostra isso.
Ao invés de perguntar se essas obras de arte merecem tal aclamação, talvez seja mais interessante perguntar porque sua recepção pública – mesmo quando positiva – é ruim com tanta frequência. Chamadas regularmente elogiam como Girls e Fleabag tiveram coragem de abrir novos caminhos para o feminismo, como se a história do feminismo ocidental em si já não fosse marcada pela elevação não merecida da mulher branca de classe média alta ao nível de universalismo. (Isso não é uma crítica às séries em si, mas ao pedestal ofuscante e autodestrutivo ao qual elas são elevadas pela classe midiática e literária, que poderia ser mais autoconsciente).
Questões macropolíticas são tratadas de forma superficial, jogadas para escanteio em favor de chavões paternalistas que dão bons títulos sobre “problemas de uma geração”. Sally Rooney é uma “escritora millennial” da “geração Snapchat”, cujas tendências marxistas são deixadas de lado pelo rótulo bem mais palatável de Jovem Mulher Promissora pronto para ser usado pelo mundo lustroso e politicamente comedido da alta sociedade literária. “Eu simplesmente morro por ela”, diz uma citação em um pôster para a edição em brochura de Pessoas Normais, assinada por @lenadunham. E se há política, é uma em que a autoafirmação é considerada práxis ousada, um ato revolucionário em si mesmo – um monólogo em Fleabag sobre a dor de mulheres entrega poderosas verdades feministas sobre a condição feminina; Girls transforma a forma como nós vemos a mulher. Embora seja bem-intencionado, isso também é um fardo. Não devemos esperar que séries televisivas carreguem todo o enorme peso de nossas políticas confusas e caóticas, nem devemos apressadamente usar termos de emancipação revolucionária para caracterizar simples revelações sobre como vivemos. Pensar o contrário é viver em negação sobre nossa impotência.
Estamos supostamente vivendo na era da “mulher desagradável”, o que significa que nós celebramos o fato de que mulheres também podem ser sujas, repulsivas, más, cruéis e falhas. Fleabag vive de forma imprudente e irresponsável deixando para trás uma trilha de corações partidos; uma das maiores revelações em Cat Person é a profunda ambivalência, e até mesmo pena, que a protagonista sente pelo homem com quem ela passa a noite. “Como ela se atreve!?” alguns disseram, o que foi engraçado pois revelou que algumas pessoas não compreendem mulheres, ou não sabem como ler ficção. Eu entendo que a ascensão da “mulher desagradável” é uma vitória. As figuras unidimensionais do passado – que poderiam apenas ser adoradas ou desprezadas por homens – foram substituídas pelas “personagens femininas complexas” que são capazes de rejeitar a sociedade civilizada sem remorsos. Isso pode ser potente. Mas a aclamação que gira em torno de tais figuras também se arrisca em produzir uma celebração prematura, um despir de poder que nos deixa felizes em comer as sobras e nos inocular contra a missão mais difícil e mais confusa na qual “ser desagradável” não é mais a piada por si só. Raramente se pergunta com quem essas mulheres são cruéis, o que constrói essa crueldade, e a que essa crueldade serve. Fazer isso poderia erodir a imagem unitária do “ser mulher” em que tantas discussões sobre a “mulher millennial” se sustentam sem um viés crítico.
A habilidade de apresentar o fato de que mulheres podem ser imperfeitas, falhas e cruéis como uma revelação poderosa e generalizada privilegia um certo ponto de vista. O “ser mulher”, afinal, é composto por uma classe profundamente variada com suas próprias histórias de exclusão, violência e dominação. Para alguns, a crueldade sistêmica de outras mulheres não é tanto uma revelação neutra, mas um fato da vida. Eu passei tanto tempo tendo que lidar com homens horríveis quanto com a crueldade sutil de mulheres brancas de classe média alta, fossem elas proto-Regina Georges que me julgavam “legal para uma asiática” no ensino fundamental, ou, quando adulta, me sentindo minada por outras mulheres prontas para me chamarem de “fofa” e “meiga”. Que essa verdade da minha adolescência horrível, constrangedora e cheia de sentimento de inferioridade – que mulheres podem ser cruéis, más e narcisistas – agora tenha se tornado em uma das ferramentas para emancipar “todas” nós sob uma mesma bandeira parece algo perverso, senão um sinal assombroso de quão limitado é o atual debate popular sobre a emancipação das mulheres. Para cada celebração de uma mulher branca rica tão descuidadamente destrutiva com a própria vida quanto homens privilegiados, nós deveríamos nos perguntar o que lhe dá a habilidade de ser tão audaz, e quem é deixado de lado como efeito colateral. Neuroses, frequentemente enquadradas como um sinal de impotência, também podem indicar o contrário. Exigir que alguém entre e entretenha sua mente ansiosa e lide com sua individualidade complicada e infinitamente fascinante pode ser um ato de poder. Mas a quem é permitido ser um indivíduo para o público ocidental? A quem é permitida a complexidade?
A algumas psiques só são permitidas histórias unidimensionais de sofrimento e triunfo – outras são apenas piadas. Perdi as contas das vezes em que eu li releases de livros de autores não-brancos nos quais a raça do autor é discreta, mas visivelmente inserida através de termos previsíveis – imigrante, dor, trauma, sobrevivência, pertencimento. Suas histórias não são oferecidas como algo com que você possa se “relacionar”, mas como algo que você possa olhar a uma certa distância como um visitante a outro mundo. Há também a pergunta: a subversão de quem é considerada?
Em um texto para a MTV, a crítica Meaghan Garvey observa a hipocrisia das reações negativas à autoafirmação e ao desrespeito às regras da rapper negra de Chicago, CupcakKe (em um de seus singles de sucesso, a rapper anuncia sua intenção de “Fazer pinto gozar mais rápido que o do Jimmy John / Eu vou chupar um peido do seu traseiro”). Garvey observa que os atos “desagradáveis” dos pares privilegiados de CupcakKe são vistos como obras interessantes, enquanto “o vídeo de CupcakKe é tratado como um meme”². Vulgaridade desqualifica algumas mulheres da vida pública, ou, no mínimo, as transforma em figuras marginalizadas reduzidas a uma única característica; enquanto permite que outras estejam no centro, vistas como mulheres artistas originais, filosóficas e com quem se pode facilmente se identificar.
O problema se estende para além de questões raciais, é claro. A romancista Jeanette Winterson, ao refletir sobre a recepção de As Laranjas Não São o Único Fruto, disse “Nunca entendi por que a ficção heterossexual é supostamente para todos, mas qualquer coisa com um personagem gay ou que inclui experiências gay são apenas para pessoas LGBT”³. Apenas algumas autoras estão livres da exigência de oferecer seus traumas pré-embalados para a absolvição unilateral de seus leitores, deixadas em paz para experimentar no espaço relativamente livre do “ainda-não-nomeado” e ser reconhecidas como indivíduos interessantes e com coisas novas a dizer. Para deixar claro: mulheres não gozam comando total do Eu neutro, elas ainda são vistas em termos do seu gênero, mas, para além disso, apenas algumas mulheres parecem ser capazes de assumir o manto da mulher universal. No passado, discussões como essa foram criticadas por serem desnecessariamente divisivas ou até mesmo antifeministas⁴. Mas nós deveríamos estar nos perguntando nos termos de quem essa unidade é conquistada, e a quem interessa que essas fissuras permaneçam ocultas.
Usar a identificação como uma ferramenta crítica só nos leva a becos sem saída, sempre usando um “nós” sem perguntar quem esse “nós” é de fato, ou por que “nós” somos mais atraídos por algumas histórias do que por outras. O que quer dizer quando “nós” devemos ser atraídos por mulheres que vivem em mundos de elites sociais, cujos estilos de vida nós não somos capazes de sustentar, e cuja rebelião contra o mundo está sempre um pouco fadada ao fracasso e nem é tão subversiva assim, mesmo que devamos pensar o contrário? Por que nos apressamos tanto para projetar sobre elas uma sensação de identificação? A ironia da “mulher desagradável” é que sua abjeção é agradável, até mesmo admirável, para nós: elas são mais inteligentes, espirituosas e mais belas que qualquer um que conhecemos, são ideais tomados como supostos personagens da vida “real”. Celebrar a identificação envolve engajar-se com a vida de outros ou fugir da nossa?
Para críticos, jornalistas e outros escritores no Ocidente – majoritariamente brancos e de classe média – essas representações de mundos sociais rarefeitos se oferecem como afirmações de identificação universal. É menos provável que você veja algo como “outro”, afinal, se você é esse algo (ou, como meu amigo chinês brinca todo ano: “Hora de sentar com a minha família e participar da nossa tradição anual de comer comida chinesa no Natal! Ou, como nós chamamos – comida.”) Mas ver universalidade onde ela não existe é fechar as portas para perguntas importantes. Anunciar as descendentes da aristocracia inglesa (Phoebe Waller-Bridge) ou suas equivalentes criativas americanas (Lena Dunham) como a mulher comum da nossa era (elas não são, e tudo bem), e Fleabag e Girls como histórias universais de disfunção e regeneração (elas também não são, e tudo bem também), ignora as coisas muito particulares que elas têm a oferecer. Existem temas que estão abertos a todos nós – lições sobre felicidade negada, famílias separadas, e relacionamentos cheios de mentiras desconfortáveis e decepções que mexem com a cabeça – mas existem outras coisas também.
Ao nos apoiarmos na estrutura simplista e enganosamente homogeneizante da identificação, o que perdemos? O caso curioso de como essas mulheres específicas, ostensivamente equipadas com todas as graças sociais para conquistar o mundo – brancas, ricas, belas, atraentes para os homens apesar de seus piores esforços – preferem olhar para si mesmas e se odiar, odiar seus corpos, suas coxas, o tom de seu discurso, as outras mulheres em suas vidas, seus pais. Por que essas mulheres que, em teoria, têm o maior poder social estão tão interessadas em se livrar dele? A súplica desesperada de Fleabag para sua terapeuta avulta ameaçadoramente – “Eu só quero que alguém me diga o que fazer”. O mal-estar dos privilegiados sempre teve um quê de narcisismo, tão frenético em sua energia neurótica quanto inútil para o resto do mundo. Escapa-se a ironia de como essas obras de arte que supostamente falam por uma geração – histórias sobre gloriosas boêmias cheias de ansiedades – foram criadas pela mesma geração que cresceu logo depois da segunda onda do feminismo, bombardeada constantemente com a mensagem que mulheres podem fazer qualquer coisa, ser qualquer coisa, e especialmente mulheres como elas. Nos mundos sociais intrincados e dolorosos destrinchados por Dunham e Waller-Bridge, não nos apoiamos nos ombros das nossas antepassadas feministas do século XX, ao invés disso, dançamos sobre seus túmulos de forma letárgica e desamparada.
Isso não deve ser visto como uma acusação contra essas obras, ou uma sugestão de que há algo de errado com as personagens. Não devemos exigir que a arte represente o mundo como nós gostaríamos de vê-lo. Afinal, a atitude otimista “lean-in” do feminismo liberal tem suas próprias falhas fundamentais. O problema é que tantos de nós querem ver narrativas de auto-emancipação radical onde não há nenhuma. Apesar de toda a conversa sobre quão revolucionárias, poderosas e importantes essas vidas fictícias são, a Mulher Millennial por excelência é um ser humano profundamente desempoderado. Fleabag não tem amigos, não consegue falar sobre seu trauma e admite usar o sexo como uma forma de sustentar sua autoestima deteriorada. Em Girls, o narcisismo de Hannah esconde o fato de que ela é uma pessoa solitária que se odeia: “Qualquer coisa cruel que qualquer um pode pensar em me dizer eu já disse para mim mesma, sobre mim, na última meia hora”. Marianne de Pessoas Normais de Sally Rooney tem dificuldades em se apoderar do próprio corpo durante o sexo, em aceitar o fato que ela possa ser apreciada, até mesmo amada, e sugere-se que ela sofre de alguma disfunção alimentar que é de certa forma normalizada. Essas mulheres não são tanto símbolos de possibilidades emancipatórias femininas quanto indicativos do enorme fracasso social em proporcionar caminhos de prosperidade, cuidado e generosidade em comunidade.
O fato de elas serem tomadas como símbolos de uma geração é mais uma confirmação de como ser colocada num pedestal pode ser tão desgastante quanto empoderador. Existe um elemento disso no longo fascínio pela mulher rebelde, foda, sórdida, um arquétipo desbocado diferente do que estamos tratando aqui, mas adorado de forma semelhante. O programa do British Film Institute sobre “Bitches” (N.T.: algo como “megeras” em português) – cujo título, embora não o conteúdo, foi alterado depois de críticas para “Playing the Bitch” (N.T.: fazendo o papel da megera) – procura celebrar uma série de “mulheres destemidas”, que permanecem majoritariamente brancas, vistas pela lente de diretores exclusivamente homens. Parece suspeito que nós estejamos tão investidos na narrativa da mulher solitária que cria o caos em um mundo cruel e desumano e está desinteressada no que significa chegar, coletivamente, a um lugar onde tais vitórias dispendiosas e dolorosas deixariam de ser necessárias.
Toda a conversa sobre quão desagradáveis são essas personagens esconde o fio emotivo mais poderoso que une a Mulher Millennial Arquetípica – elas desesperadamente, tão desesperadamente, querem ser apreciadas, até mesmo amadas. Isso parece sempre abrir concessões ao male gaze. Fleabag faz toda uma performance para esconder seus absorventes extragrandes na frente de homens atraentes (a verdadeira piada, me parece, é ela achar que eles olhariam para produtos de higiene feminina por tempo suficiente para notar o seu tamanho) e se pergunta se ela ainda seria uma feminista se ela tivesse “peitos maiores”.
Em uma entrevista de 2013, Vicky Jones, a diretora da peça de Waller-Bridge que deu origem à série Fleabag, falou sobre um momento que serviu de inspiração para elas: uma palestra sobre feminismo, mostrada na peça, em que um grupo de mulheres são perguntadas se elas trocariam cinco anos de vida pelo corpo perfeito. Jones nota que ela e Waller-Bridge sussurraram em segredo que sim. “Nós somos parte dessa cultura,” ela continua, “então nós queríamos escrever uma personagem que é um produto do mundo que nós vemos agora, ao invés de uma luz guia do feminismo”⁵. É uma afirmação que oculta tanto quanto esclarece. Nem toda mulher está em uma posição em que ela pode negociar seu grau de maleabilidade quando confrontada com exigências patriarcais – algumas de nós estão excluídas dessa possibilidade desde o princípio, já condenadas a algum tipo de “abjeção” devido à nossa raça, sexualidade, identidade de gênero, classe ou falta de beleza normativa. Algumas também se recusam a ceder a essas ideias, criando formas de autoafirmação que – talvez por serem menos obviamente inteligíveis ou palatáveis à maior parte do público – não recebem a mesma atenção. Há quem diga que essa última é a marca da verdadeira e impenitente “desagradabilidade”. Essa questão como um todo, de novo, não é um problema de Fleabag em si, mas sim de como ela foi impossivelmente elevada a uma obra absoluta e representativa. Nem todos os feminismos envolvem um assentimento discreto ao que os homens querem, mas, olhando para as chamadas de hoje, é possível pensar que esse é o caso. Render-se, contanto que você expresse alguma angústia mental e auto-irônica, e você permanece vagamente dentro dos limites do feminismo.
O problema aqui não é a série em si – até os traumas da burguesia merecem ser representados – nem as mulheres que lidam com o mundo assumindo essa posição, e sim o porquê de a mídia amar essas representações de impotência convencional tanto, e estar tão desesperada em lhe dar um verniz revolucionário. Transformar a cultura pop em um espaço de revolução é uma forma fácil de oferecer uma imagem de política emancipatória sem mudar nada de verdade. Parece que tem dez anos que nós estamos tratando a “feminista falha” como um arquétipo revolucionário. Apesar da retórica altiva em torno do mesmo, o mundo da Jovem Mulher Millennial arquetípica entende a política do princípio ao fim a partir de seus sentimentos de angústia individual. Existe ali uma notável falta de feminismo produzido por e alcançado através de construção de mundo ativa e colaborativa. Como observou a teórica cultural Lauren Berlant, práxis se tornou coisa de experiências psicológicas. Suas famosas perguntas sobre sentimento e política agora servem tanto como um insight e um aviso: “O que significa a luta para dar forma à vida coletiva quando uma política de sentimentos reais organiza a análise, a discussão, a fantasia e os princípios? Quando sentimento, o que existe de mais subjetivo, o que torna as pessoas públicas e marca seus locais, tira a temperatura do poder; media a humanidade, experiência e história; toma o lugar da ética e da verdade?”⁶
Talvez esse seja o último suspiro do millennial, cujo horizonte no “mundo real” se estreitou tanto (nós não conseguimos comprar casas ou nos engajar com o público para além das nossas personas amigáveis-para-com-empregadores, e estamos em uma batalha perdida com o capitalismo tardio) que nós lidamos com isso expandindo os limites do que emoções pessoais podem conquistar em dissimulada má fé, embora eu já tenha listado os meus problemas com o “nós” simplista. A política tem com cada vez mais frequência sido envolvida na esfera midiática da representatividade, repleta como ela é de artistas, escritores e jornalistas que não são organizadores políticos, nem ativistas e certamente não são a vanguarda de nenhuma revolução. Eles também não parecem interessados em sê-la. Trancados na assustadora prisão das suas próprias neuroses, onde os caminhos para liberação cada vez mais estreitos sempre parecem invocar a linguagem da recuperação, autodesenvolvimento e melhora individuais (terapia é algo maravilhoso, mas é estranho que uma troca privada e mercantilizada parece ter se tornado sinônimo de uma prática pública de uma ética de cuidado), o millennial da indústria cultural enfrenta um dilema. Ou você encontra um caminho para sair dessa corrida competitiva louca tentando desesperadamente conseguir a aprovação dos guardiões da indústria (boa sorte com isso) ou sai e molda seus próprios caminhos para florescer, o que – se você puder arcar com isso – requer tanto perceber que você não é tão especial assim quanto talvez encontrar uma verdadeira utilidade para o seu esquerdismo predominantemente inerte. Muitos parecem escolher a primeira opção.
Para um romance sobre semi-marxistas, é irônico que o clímax triunfante de Pessoas Normais, como Madeleine Schwarts comentou no New York Review of Books, envolva um dos protagonista ser aceito em um programa de mestrado de escrita em Nova York. A pergunta sobre o que ele fará depois de conquistar essa ascensão permanece convenientemente sem resposta. Quando o inimigo é tão insuperável quanto o capitalismo tardio, imaginar o futuro parece um exercício inútil. Será que você vai emergir do outro lado para ocupar o espaço de poder? Como muitos pensadores têm ponderado, é mais provável que o mundo acabe antes. As muitas divisões socioeconômicas que marcam a nossa geração estão esmagadas debaixo da linguagem vaga do esgotamento coletivo e sofrimento mútuo que vêm de viver debaixo da bota do capital. O “nós” usado em tantas discussões sobre os millennials que no final das contas são apenas discussões entre criativos de classe média alta funciona não como uma convocação unificada, mas um apagamento conveniente de diferenças. Ele permite que os mais poderosos entre nós abandonem a ideia que o mundo é algo que nós podemos de fato construir, não apenas suportar.
As poucas millennials privilegiadas que são capazes de prosseguir marchando, prosseguem; ansiosamente fazendo o que podem com o que lhes foi dado. Na metade final de Fleabag, nossa protagonista sofrida consegue ter uma conversa vagamente sincera com seu pai emocionalmente distante, uma das primeiras – suspeitamos – de sua vida. Ele lhe diz que ela ama demais. É tanto o que a torna especial quanto o que a deixa vulnerável a uma gama de emoções terríveis que ela preferiria não sentir e que passa bastante tempo tentando reprimir. Nessa troca, nós temos um vislumbre de crescimento, uma mudança que pode parecer pequena, mas que possui um mundo de significado pessoal, como a maioria dos triunfos individuais costuma possuir. A série termina com uma confissão – uma que não é seguida por uma piada perspicaz com intuito de desviar o rumo conversa, tática típica da personagem. “Eu te amo,” ela fala para o padre interpretado por Andrew Scott, o que serve não tanto como uma confissão beatífica quanto como uma sentença de morte para o relacionamento condenado dos dois. Ele tenta interrompê-la, mas ela permanece firme – “Não, não, vamos só deixar isso existir por um segundo.” Embora Fleabag esteja conversando com um padre, essa também é uma súplica para o público. Fique um momento com a minha história como ela é; deixe-me ter a minha dor. Nós devemos honrar isso enquanto permanecemos conscientes das condições que as tornaram indivíduos por excelência nesse pequeno pedaço do mundo.
© Rebecca Liu, 2019
Rebecca Liu é assistente digital para a Prospect e é uma das colaboradoras da Another Gaze.
Este ensaio foi publicado originalmente na revista digital Another Gaze e pode ser encontrado no idioma original aqui. A tradução foi feita por Glênis Cardoso e revisada por Karine e Amanda V.
¹ c/f Bret Stephens, ‘Opinion | Dear Millennials: The Feeling Is Mutual’, the New York Times; Bret Easton Ellis’s late career.
² Meaghan Garvey, “The True, Freaky Originality of CupcakKe”, MTV News.
³ Jeanette Winterson, ‘Oranges Are Not The Only Fruit’ online Q&A.
⁴ “Quando Mulheres Não-Brancas falam de um lugar de raiva que parte de tantos dos nossos contatos com mulheres brancas, com frequência nos dizem que nós estamos ‘criando um clima de desesperança’, ‘impossibilitando que mulheres brancas superem a culpa’, ou ‘impedindo o caminho da comunicação e da ação honestas…’ Pessoas oprimidas sempre são cobradas para que sejam mais flexíveis, façam a ponte entre a cegueira e a humanidade.” Audre Lorde, The Uses of Anger: Women Responding to Racism, 1981.
⁵ Vicky Jones in an interview with Billy Barrett, “Is ‘Fleabag’ a feminist action? Absolutely”, A Younger Theatre.
⁶ Lauren Berlant, “The Subject of True Feeling: Pain, Privacy, and Politics” in Left Legalism/Left Critique, pp. 111-112.
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Filmes me ensinaram a sentir.
Depois de seis anos, voltei à terapia. Tenho descoberto muitas coisas sobre mim e minhas relações com as pessoas e o mundo, e algo que tem me voltado à mente com alguma frequência é esta frase: filmes me ensinaram a sentir.
No final de 2018, outra frase me perseguia, repetida como um mantra na minha cabeça: “eu quero voltar a ser gente, eu quero voltar a ser gente”. O que, sim, estava relacionado ao ritmo louco de produtividade que nos é exigido atualmente, transformando tudo que nós gostamos/fazemos/somos em algoritmos capazes de gerar lucro enquanto consumimos conteúdo que não parece nunca preencher nosso vazio existencial. Mas, para além dessa ideia de seres humanos como máquinas dentro de uma cadeia de produção interminável, me peguei pela primeira vez questionando essa impessoalidade no contexto familiar e como ela alimentou e foi alimentada pela relação com os meus pais.
Com um pai militar que viajava com frequência durante a minha infância e cuja carreira nos fez morar longe de tios e avós, uma mãe muito jovem e solitária que não pôde ter outros filhos, minha educação emocional – no que diz respeito à construção de relações de afeto em uma comunidade – foi esparsa. Não consigo me lembrar, na minha infância e adolescência, de momentos de rotina do dia-a-dia em que passasse junto com meu pai e minha mãe para conversar. Apesar de meus pais sempre terem sido muito carinhosos, nunca construímos uma troca de pensamentos e diálogo que nos permitisse conhecer uns aos outros de forma profunda.
Pode parecer uma associação inusitada, mas acho que isso se relaciona de alguma forma com o fato de nunca termos, como família, nos importado muito com comida. Não tínhamos o hábito de comer juntos, eu ia para a escola cedo, meu pai trabalhava o dia inteiro, e ninguém dava muita bola para o jantar. Minha mãe nunca gostou de cozinhar e meu pai sempre preferiu requentar a comida no microondas a sair e ter que esperar pela comida por mais de dez minutos. Comíamos cada um numa hora, e a comida nunca era particularmente especial.
Apesar disso, muitas das minhas lembranças com meus pais na infância e na adolescência estão relacionadas a comida, mesmo que comida ruim. Pipoca de microondas no final de semana enquanto meu pai assistia ao futebol; as raras vezes que minha mãe fazia lasanha e eu comia a massa de macarrão com a mão, queimando os dedos e a língua; sorvete e outras besteiras de madrugada com minha mãe enquanto meu pai dormia; visitas mensais ao supermercado com o meu pai, uma das únicas coisas que fazíamos juntos, mesmo depois que eu me tornei uma adolescente mal-humorada. Quase todo o resto da minha memória afetiva foi construída por filmes e livros que caíam nas minhas mãos.
Não é tão estranho que eu tenha compensado a deficiência na minha formação afetiva com as artes, especialmente a literatura e o cinema. Acredito também que, apesar das peculiaridades do meu histórico familiar, não seja incomum, dentro de uma sociedade ferozmente competitiva e cada vez mais focada no indivíduo, que as pessoas se sintam mais e mais desconectadas de suas comunidades e redes de apoio, com poucas oportunidades para amadurecer emocionalmente. Nossa obsessão até mesmo na política por heróis e vilões tem nos mostrado isso.
Não que todos os filmes e livros caiam na velha dicotomia de bem contra o mal, longe disso. Mas, querendo ou não, essas são histórias que ocupam maior espaço e acabam por povoar o imaginário coletivo com enorme força. Pessoalmente, tenho pouco interesse nesse tipo de narrativa, embora entenda o seu apelo, em especial quando se enxerga a arte como escapismo.
Nos últimos tempos, tenho voltado a pensar sobre isso, como consumimos arte, o que ela representa para nós. Acho curioso que o audiovisual tenha se transformado em mais um utensílio no grande arsenal do tal “self-care” (ou, pelo menos, a ideia propagada nas redes sociais do que é o self-care), como se assistir a seis horas seguidas de uma série para tirar nossa atenção do estado em que se encontra a nossa vida fosse de fato uma prática de auto-cuidado. Confunde-se distração com satisfação, consumo com prazer. Para mim, essas coisas não poderiam estar mais distantes. Tem ficado cada vez mais claro que o que eu procuro é transcendência.
No ano passado, ouvi um episódio no podcast The New Yorker Radio Hour em que o roteirista e diretor Paul Schrader fala sobre sua relação com religião e o cinema. Criado por uma família da Igreja Reformista Cristã calvinista, Schrader, conhecido por ter escrito filmes como Taxi Driver e Touro Indomável, viu seu primeiro filme aos 17 anos de idade. Ele relata que só foi pensar no cinema de forma mais profunda quando entrou em contato com os filmes de Ingmar Bergman e percebeu que eles traziam as mesmas discussões que ele ouvia na sala de aula da faculdade e na igreja. Foi quando percebeu que o cinema e a religião não eram incompatíveis. Alguns anos depois disso, morando em seu próprio carro, sem falar com ninguém por semanas, com uma úlcera no estômago, Schrader sentia algo crescer dentro dele que, se não extirpasse, iria devorá-lo: Travis Bickle, o taxista violento e deprimido de Taxi Driver. Schrader não escreveu o roteiro de Taxi Driver porque queria fazer um filme, mas porque queria exorcizar seu próprio demônio.
O título do episódio, Movies as religion, “filmes como religião”, ressoou em mim. Eu tenho uma história complicada com religiões, há alguns anos não frequento nenhuma igreja e hoje oscilo entre o ateísmo e o agnosticismo, mas não gosto da ideia de que não haja nenhum tipo de magia no mundo.
Este ano, de volta à terapia, ao tentar explicar a alienação eu sentia e a conexão que buscava, eu voltava ao cinema de novo e de novo como uma pessoa religiosa voltaria a passagens do seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, estava lidando com a crise da moda dos millenials: a síndrome do burnout. O segundo semestre de 2018 foi repleto de trabalho (parte dele remunerado, outra não) e desgaste emocional (cortesia, dentre outras coisas, das eleições) que acabaram por debilitar muito o meu sono e gerar uma série de crises de ansiedade.
Parte disso estava ligado ao fato de que muito do meu trabalho era feito online ou de forma muito desestruturada. Isso além de fazer trabalho “artístico” e “que eu amo”, o que dificultava muito a separação entre a minha vida profissional e pessoal. As redes sociais se tornaram um espaço de auto promoção e divulgação, o que acabou ainda mais com qualquer divisão entre o trabalho e a vida privada que pudesse existir. Momentos de descanso se tornaram escassos e carregados de culpa, a necessidade de produzir e ser útil me consumiam, minha existência se justificava pelo fazer e não pelo ser.
Quando finalmente percebi que estava doente – física e psicologicamente – uma das primeiras coisas que eu percebi que tinha de fazer era retomar meu senso de valor independente da produtividade. Escrever textos (bons ou ruins) que jamais seriam publicados. Ver filmes e ler livros que eu queria e não porque estava tentando bater uma meta arbitrária. Assistir a dramas coreanos que me davam vergonha. Passear com o cachorro devaneador da minha vizinha por uma hora e meia, duas. Entender que minha existência tinha valor, mesmo que eu não estivesse produzindo.
Nessa mesma época, eu já estava imersa numa intensa maratona, inicialmente acidental, de filmes sobre/com comida que a princípio associei com minha gulodice costumeira e com o conforto que os filmes me traziam já que a maioria deles eu havia assistido antes e gostava bastante. Conforme fui assistindo aos filmes, entretanto, comecei a perceber que talvez a minha obsessão tivesse outras raízes, o que ficou ainda mais claro quando entrei em contato com dois livros sobre prazer.
Um deles foi o Pleasure Activism, cuja tradução seria algo como “Ativismo do prazer”, da pesquisadora Adrienne Maree Brown, no qual ela defende o prazer como uma ferramenta política. Brown escreve: “Parte da razão pela qual tão poucos de nós têm uma relação saudável com o prazer é porque uma pequena minoria da nossa espécie acumula o excesso de recursos, criando uma falsa escassez e, depois, tenta nos vender alegria, tenta nos vender a nós mesmos” (tradução nossa). Vale sublinhar que uma “relação saudável com o prazer” diz respeito também à moderação, e não nos jogarmos aos excessos do consumo para nos distrair de nossas dores e tragédias. Não adianta buscar o prazer para nos desconectarmos do que nos fere; o prazer real, que nutre, é um exercício de conexão.
A ideia de sair da lógica da escassez, a ideia de que o prazer, o deleite e a alegria poderiam ser uma ferramenta de resistência em um momento de tanta agonia pessoal, profissional, social e política, me pareceu revolucionária. Mas não foi a primeira vez que me deparei com esse pensamento.
Quando assisti a Café com Canela de Glenda Nicácio e Ary Rosa em 2017, depois da belíssima sessão no Festival de Brasília, precisei de alguns minutos para entender a euforia que me invadia. Entender a potência de um filme sobre pessoas negras no interior da Bahia que ousam ser felizes, cuidar uns dos outros, nutrir e alimentar uns aos outros, literal e metaforicamente. Estava tão acostumada com o sofrimento a que estão relegados os corpos negros e os corpos de mulheres no cinema, que o choque do deleite, do prazer e das subjetividades representados em Café com Canela me tocaram profundamente.
A rede de afetos que vemos no filme é vasta e cada uma é muito particular. Muitas delas são expressas através da comida. O churrasco com os vizinhos cheios de histórias contadas, as lembranças de festa de São João, a sopa dada na boca da avó acamada, a receita de família da coxinha que Violeta vende, o café com canela de Violeta que esquenta o corpo e a alma de Margarida.
O outro livro que eu li nessa época foi The Book of Delights, “O livro dos deleites”, uma compilação de pequenos ensaios (“ensaietes”) em que o autor, o poeta Ross Gay, se debruça sobre um deleite por dia ao longo de um ano (ele não escreveu 365 ensaios, um dos deleites era o deleite de furar compromissos).
Na introdução do livro, Gay escreve:
“Um ou dois meses iniciado o projeto, deleites estavam me chamando: Escreva sobre mim! Escreva sobre mim! Porque é grosseiro ignorar os seus deleites, eu dizia a eles que, embora eles talvez não se tornassem ensaietes, eles ainda assim eram importantes e eu era grato por eles. Em outras palavras, eu sentia a minha vida mais cheia de deleite. Não sem tristeza ou medo ou dor ou perda. Mas mais cheia de deleite.” (tradução nossa)
Em Café com Canela, a dor de Margarida é uma ferida profunda que provavelmente nunca se fechará por completo e isso merece ser honrado também. Não se trata de negar a tragédia, trata-se de se permitir continuar a viver não apesar dos mortos, mas por eles. Para honrar a vida que eles não podem mais ter, vivendo-a da melhor forma possível.
“O desejo e o prazer são duas formas pelas quais afirmamos que existe algo pelo qual viver.” (BROWN, Adrienne Maree. Pleasure activism: The Power of Feeling Good).
Existe algo muito potente em reconhecer nossa fome. Além de ser uma forma de perceber que se está viva, o desejo quando se é mulher é uma transgressão. Afinal, quando a escassez é regra, a abundância é transgressora.
Sempre me espanta que distúrbios alimentares como a anorexia e a bulimia sejam vistos como formas de chamar atenção. A falta de comida nos torna menores, cada vez menos visíveis. Mulheres são ensinadas a não pedir nada, nunca devemos querer mais do que nos é dado, seja comida, amor ou sexo; distúrbios alimentares são apenas mais uma forma de não causar incômodo com nossos desejos.
Reconhecer essa fome/desejo/vontade é voltar à carne, ao erotismo. Em Como Água para Chocolate, de Afonso Arau, quando os sentimentos de Tita transbordam para além do que lhe é permitido sob o controle tirânico de sua mãe, ela os transfere para a comida que cozinha, compartilhando suas emoções mais profundas com quem se alimenta de seus pratos. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, a irmã de Tita fica tão consumida pelo desejo que Tita imbui na comida que ela literalmente rompe em chamas e foge nua com um homem a cavalo.
A manifestação da fome feminina é libertadora. Na minissérie coreana 밥 잘 사주는 예쁜 누나 (a tradução literal seria algo como “irmã mais velha que me compra comida”, mas na Netflix a série está sob o título Something in the Rain, “algo na chuva”), a protagonista Jin-ah é uma mulher titubeante e recatada, que aguenta o abuso dos chefes calada e é rejeitada por um namorado que não a valoriza. Quando começa a sair para jantar com Joon-hee, o irmão mais novo de sua melhor amiga, a adoração que ele sente por Jin-ah a faz perceber pela primeira vez que seus desejos e vontades são dignos de serem saciados. A coragem de se satisfazer a fortalece.
Algo parecido acontece com Ila, protagonista do filme The Lunchbox do diretor Ritesh Batra. Por conta de um engano no complicado sistema de entrega de comida na Índia, o almoço especial que Ila prepara para tentar reavivar o casamento é entregue para Saajan, um funcionário público viúvo prestes a se aposentar. A partir daí, Ila e Saajan começam a compartilhar sentimentos e histórias muito pessoais em cartas diárias. A vulnerabilidade a que os dois se expõem os aproxima, e Ila continua a preparar comida para Saajan. Se toda carta é uma carta de amor, cada prato preparado sem obrigação para outra pessoa também o é.
A associação entre a fome e o desejo carnal é antiga e já foi muito explorada não apenas pelo cinema e pela arte, mas também por textos religiosos. Afinal, para muitos, o pecado original foi uma mulher comer algo que não devia. Em O Banquete de Babette de Gabriel Axel, vemos uma comunidade religiosa no interior da Dinamarca ficar muito inquieta com o iminente banquete que será oferecido por Babette, uma refugiada francesa que foi acolhida pela pequena vila. Os aldeões observam com crescente alarme enquanto os ingredientes sofisticados como tartaruga e vinhos caríssimos chegam à vila, convencidos de que um banquete como esse fará com que se entreguem ao mundo material e se afastem de Deus.
O que acontece, entretanto, é o contrário. Ao comer da comida de Babette, a pessoas da vila entram em comunhão umas com as outras, o prazer as torna mais generosas e tolerantes, e a comida é tão deliciosa que comê-la se torna uma experiência transcendental, um encontro com as outras pessoas da comunidade e com Deus.
Esse encontro do prazer e da comunhão é uma das coisas que mais me atrai nesses filmes, mas também me interesso pela comida de forma mais banal, uma necessidade do dia-a-dia. Sempre quando penso em comida e cinema, as imagens encantadores das comidas nos filmes do Studio Ghibli me vem à mente. Recentemente percebi que O Serviço de Entregas da Kiki de Hayao Miyazaki é quase um filme sobre comida, embora de forma discreta. Além de trabalhar em uma padaria, Kiki ajuda uma vovó a fazer uma torta para a neta, se preocupa com quanto dinheiro tem para fazer alimentar a si e seu gato Jiji e se emociona ao receber um bolo de presente como agradecimento. Tratam-se de momentos amáveis ou corriqueiros, mas que sempre nos lembram da ternura do cotidiano.
Filmes sobre comida se relacionam muito com o tempo. A hora de cada refeição, o tempo de preparo, a estação certa para plantar e para colher. Pequena Floresta, do diretor Jun’ichi Mori, nos faz sentir esse tempo. Dividida em dois filmes de duas horas cada, Pequena Floresta: Verão/Outono e Pequena Floresta: Inverno/Primavera, a trama é quase inexistente. Vemos Ichiko plantar, colher, cozinhar e refletir ao longo de quatro horas no que se torna quase um exercício meditativo. Da primeira vez que assisti aos filmes, fiquei inquieta, já na segunda, o tempo lento do filme me envolveu de tal forma que me senti repleta de calma. “Tudo ao seu tempo” é uma frase que nunca me deu muita tranquilidade, sou impaciente demais para isso – mas perceber que algumas coisas estão além do nosso controle pode ser algo surpreendentemente reconfortante.
A versão coreana de Pequena Floresta, Little Forest, da diretora Yim Soon-rye, também é um filme sobre o tempo, mas este foca mais no conflito da protagonista, na sua jornada interior para a plenitude, é um filme sobre atingir a maturidade, uma história de formação. Assistimos a Hye-won voltar para a casa onde cresceu, cozinhar os pratos que sua mãe a ensinou, mas do seu jeito, aprendendo a ser uma mulher adulta dona de si ao mesmo tempo que consegue, finalmente, entender e perdoar sua mãe por partir.
Cozinhar como ato de memória, de honrar e superar a tradição. Esse é um tema comum quando falamos de comida. Comer Beber Viver de Ang Lee também volta a ele, com a história de três irmãs que vivem na casa do pai chef de cozinha, reunindo-se a cada domingo em torno do ritual de almoço dominical. Cada uma das filhas enfrenta um momento crítico para alcançar a vida adulta e os almoços semanais funcionam como momentos para anunciar os surpreendentes novos eventos para o patriarca da família, o que acaba por alterar a dinâmica familiar e transformá-la em algo novo.
O chef e dono dos restaurantes Momofuku, David Chang, em sua série documental da Netflix, Ugly Delicious, retorna à temática da inovação versus tradição. Chang é conhecido por suas criações excêntricas e fusões de tradições culinárias distintas, mas ele sabe que, para chegar à originalidade e à inovação, é importante conhecer e respeitar as origens e tradições. Esse respeito não é apenas pelos ingredientes, pelas técnicas e nem mesmo pela cultura em que ele está se inspirando, mas pela memória afetiva de cada um.
No terceiro episódio da primeira temporada da série, Comida Caseira, Chang e outros chefs e críticos culinários falam sobre sua relação afetiva com a comida, suas famílias, seus parceiros e parceiras, amigos, filhos. Em um determinado momento, Chang relata que quando ele era mais novo, tudo que ele queria era se afastar da cultura coreana dos pais. Contudo, depois de ter se tornado um chef renomado, ele começou a associar a comida de tradição europeia ao ambiente tóxico e abusivo dos restaurantes onde passou seus 20 anos trabalhando e, cada vez mais, o que ele queria fazer era retornar à comida que sua mãe fazia em sua infância e levar isso para o restaurante. Trazer não apenas sabores deliciosos para os clientes, mas de alguma forma acessar esse lugar mágico da memória e do afeto com a sua comida.
Volto a pensar nos meus pais, em comida, em caminhos para o encontro e para o diálogo. Penso em horas gastas de forma improdutiva, na cozinha, rindo e cozinhando juntos, conversando e bebendo vinho. Essas não são memórias, são imagens forjadas pelos filmes que me ensinaram a comer e a viver. São desejos e há potência reconhecer desejos e em, quem sabe, saciá-los.
Existe um quê de utopia em todos esses filmes e séries sobre comida. São experiências sensoriais que nos fazem quase sentir o cheiro e o sabor de cada coisa, nos levam a pensar em um tempo mais lento, em construção em comunidade, em erotismo e desejo, em pontos de encontro entre gerações, em afeto, deleite, prazer. Pode parecer irresponsável falar em utopias quando parece que estamos caminhando para o abismo, mas, se distopias nos alertam para os perigos de como estamos vivendo, as utopias nos lembram de razões para continuar a lutar para viver.
Leia também:
Café com Canela, por uma espectadora negra entre a fruição e a crítica, de Letícia Bispo
Não apenas irei encarar. Eu quero que meu olhar transforme a realidade
bell hooks em The oppositional gaze (disponível em português aqui)
De volta a minha infância uma lembrança surge repetidamente: passar dias inteiros assistindo televisão. Sou da geração dos nascidos no início dos anos 1990 antes da popularização dos meios digitais, do advento da Internet banda larga e da possibilidade de se comunicar por redes sociais. E para uma pessoa que cresceu na periferia da cidade de São Paulo, onde os aparatos de lazer públicos sempre foram muito escassos, o medo e a insegurança fizeram com que meus pais tentassem proteger ao máximo a mim e ao meu irmão, logo ficar em casa assistindo TV sempre foi considerada uma atividade segura. Eu cresci assistindo de tudo, sobretudo aos programas da televisão aberta, já que os canais a cabo só chegaram em casa lá no ano de 2005. Era realmente fascinada por aquele tubo transmissor de sons e imagens, me encantava a representação da vida, as emoções que eram capazes de causar e minha rotina era pensada de acordo com a grade televisiva: acordava, tomava café já assistindo desenhos na TV Globinho ou no Bom Dia & Cia, almoçava vendo SPTV, ia para escola e quando voltava conseguia pegar o final de Malhação, emendando as três novelas da noite da Globo e algum reality show ou programa de entretenimento, sendo interrompida apenas para jantar e tomar banho.
A televisão acabava ocupando um espaço central na minha vida, que se materializava na configuração do lar. Ela estava ali, no centro da estante na sala, entre o rádio e as caixas de som de frente para o sofá e sua voz preenchia todos os cômodos do apartamento de 48m² da Cohab I em Artur Alvim. Assistí-la era também um ritual, momento de junção da família, lembro de alguns sábados à noite onde meus tios, tias, primos e primas se reuniam para conversar, comer esfihas e sentar frente à TV, não importava na casa de quem estivéssemos, ela estava sempre ligada, no centro da sala, quase como se conversasse conosco. Adorávamos comentar as novelas, mesmo que presas numa estrutura previsível onde o “bem” normalmente vence o “mal”, elas eram carregadas de emoções e de um certo sentimento de pertencimento bastante dialético. Apesar de serem ambientadas no Brasil, tratar de temas do cotidiano e dirigir-se a “todos” os brasileiros eu não conseguia me ver ali, não completamente.
Eu tenho uma tia, irmã do meu pai, que adorava o Xou da Xuxa e que sempre diz que durante a adolescência tinha vontade de ser paquita, mas como todas as paquitas eram brancas, loiras e com o cabelo liso, ela nunca poderia ser uma. Meu avô paterno era negro e minha avó paterna, apesar da pele clara, tem a boca e o nariz bem largos e o cabelo crespo, assim meus tios, incluindo meu pai, nasceram com tons de pele distintos, mas todos com traços negroides muito marcados. Sou filha de um casamento inter-racial: tenho a pele clara, cabelos carinhosamente apelidado por meu pai por “cabelo de prego” e traços negroides mais brandos. A racialização sempre esteve presente na minha vida, lembro de ser chamada de Medusa na escola, de alisar meu cabelo e de ser preterida pelos meninos porque não estava dentro do padrão branco de beleza e ouvir na escola que tinha “um pé na Senzala”, mas mesmo assim demorei alguns anos para construir minha identidade racial. E a televisão sempre esteve ali, como mediadora desse processo, fazendo-me refletir sobre quem eu era e sobre minha realidade a partir da ausência e da estereotipização.
Quando minha tia dizia que não podia ser paquita porque não era loira eu me perguntava, “Mas por que todas as paquitas da Xuxa são loiras?”, “Por que todas as apresentadoras são brancas?”, “Por que quase não existem personagens negros nas novelas se eu vejo tantas pessoas negras ao meu redor?”, “E por que os personagens negros nas novelas são sempre as empregadas domésticas, os seguranças, motoristas, serventes ou bandidos?”, “Por que a Cohab só aparece no Datena?”, “Onde estão as pessoas parecidas comigo? Onde está a minha realidade dentro desses programas que se dizem nacionais?”.
Para não ser injusta, lembro de duas personagens de programas infantis onde via meninas negras com as quais me identificava: a Biba, no Castelo Rá-tim- bum, programa da TV Cultura e a Pata, na novela Chiquititas, da primeira versão exibida pelo SBT. Eu assistia a muitos programas televisivos e, claro, que não podemos confiar apenas na memória para exercer uma análise mais profunda sobre determinado objeto, mas como posso lembrar apenas de duas personagens infantis negras? Ou melhor, como posso ter crescido com tão poucas narrativas sobre infâncias negras quando metade da população brasileira é negra?
Refletindo sobre essas questões chego a outro ponto em comum entre as personagens Biba e Pata: nenhuma delas eram mostradas em momentos com suas famílias, amigos negros ou frequentando espaços onde a maioria das pessoas eram negras. A escolha em Chiquititas é justificada pelo motor da narrativa, tratavam-se de crianças em orfanato, porém esse tipo de representação dos personagens negros sem nenhuma ligação com qualquer outra pessoa negra é comum em muitas narrativas seriadas brasileiras. As novelas de Manoel Carlos sempre me chamaram muita atenção quando parava para reparar nas personagens mulheres negras e seus lugares na narrativa. Suas novelas têm como marca a presença de uma personagem principal forte, a Helena, e é em volta dela que a história se desenvolve. História de Amor (1995), Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006), entre outras, sempre tiveram como núcleo principal famílias ricas do Rio de Janeiro. Tais tramas costumam girar em torno dos desejos, anseios e desafios de uma elite econômica majoritariamente branca, o que Joel Zito Araújo no livro A Negação do Brasil chama de “visão zona sul das telenovelas”. Em todas essas novelas é possível encontrar personagens negras mulheres na posição de empregadas domésticas que não possuem família ou relacionamentos com outras pessoas negras, ocupando a função de servir e estar à disposição das famílias abastadas.
Em 2009 nós espectadoras(es) fomos apresentadas(os) a primeira Helena negra de Manoel Carlos. Taís Araújo, que já havia inaugurado o marco de primeira protagonista negra com a telenovela Da cor do pecado (sim, deram o nome da novela a associação da pele negra ao pecado), viveu Helena na novela Viver a Vida (2009), uma modelo que enriqueceu com seu trabalho e que se apaixona por Marcos (José Mayer), um homem branco vinte anos mais velho. Ele a princípio era casado com Teresa (Lilia Cabral) e pai de três filhas, mas ao se separar da esposa conhece Helena e casa-se novamente. Este ensaio não pretende se aprofundar no desenvolvimento narrativo da trama, porém uma cena onde a personagem Helena leva um tapa no rosto de Teresa, enquanto está de joelhos desculpando-se por algo que não fez chamou muito atenção. O episódio foi ao ar no dia da consciência negra (20 de novembro) e muitos consideraram que a imagem apenas reforçou o estereótipo de submissão e desumanização das mulheres negras. Recentemente Taís Araújo deu uma entrevista dizendo que após essa novela afundou-se numa tristeza profunda e que a não possibilidade de transformar sua personagem numa mulher realmente forte a fez encarar que tipo de personagem queria ser e que tipo de papéis não queria mais representar.
A ausência e o uso excessivo de estereótipos sobre mulheres negras nas telenovelas televisão estão diretamente ligados a algumas características do gênero. O melodrama televisivo tem como influência os folhetins de jornal, as radionovelas e o melodrama cinematográfico. Tais filmes carregam em si um ideal burguês de sucesso e felicidade, que geralmente estão associados a ascensão social econômica. Possuem valores morais e sociais muito marcados, baseados no cristianismo, na heteronormatividade, no falocentrismo e na brancura como forma de beleza. É comum também ao melodrama os ditos personagens “planos”, ou seja, ou são extremamente bons, ou completamente maus, gananciosos, torpes, burros ou ingênuos. Dessa forma suas ações são regidas por apenas uma de suas características psicológicas tornando a narrativa bastante previsível. Dentro dessa estrutura enrijecida o uso de estereótipos se dá com muita frequência e são poucas as personagens, sobretudo as mulheres negras, cujas personalidades são regadas de contradições e humanização.
Na teledramaturgia brasileira tem sido dado às mulheres negras poucos espaços, apesar de fazermos parte de uma parcela significativa da população brasileira, quando não estamos ausentes nesses programas, ocupamos o papel da empregada doméstica, da mulher sensual (a “mulata”), da mulher ligada ao tráfico de drogas, da escrava ou da cuidadora. Só recentemente, em alguns programas seriados de TV aberta, mulheres negras foram representadas como pessoas fortes, com ambição, dotadas de conhecimento e agência de suas ações, como o caso de Isabel (Camila Pitanga) na novela Lado a Lado (2012) e mais recentemente Michele (Taís Araújo) em Mister Brau (2015). Entretanto, é importante olharmos mais profundamente para a ausência e estereotipização das mulheres negras na trajetória da teledramaturgia brasileira, a fim de elaborar algumas teorias sobre a representação negra e criação de imaginário.
É comum na configuração dos lares brasileiros que a televisão ocupe um lugar central na vida das pessoas, assumindo muitas vezes o papel educativo se pensarmos um contexto de baixa qualidade de ensino público, escassez de espaços de lazer e dificuldade de acesso à bibliotecas, teatros e cinemas. Ela enuncia comportamentos, valores, aponta o que é pauta de discussão ou não, promove alguns julgamentos, formula padrões e cria um universo simbólico estético que diz o que está dentro e o que está fora. Imagens estereotipadas, sejam elas extremamente positivas ou extremamente negativas, cumprem a função de controlar e desumanizar determinados corpos, num processo contemporâneo de colonização e imposição de valores eurocêntricos, no caso da representação das mulheres negras na TV, são imagens extremamente definidas a partir do olhar de um sujeito sob o objeto, o “outro” da narrativa e configuram uma forma de violência não material ou física, mas simbólica.
Crescer assistindo televisão me fez perceber que ora estávamos ausentes das histórias, ora éramos tidas como inferiores. E me interessa refletir acerca dessa experiência espectatorial, pois olhar para essas imagens me fez ter consciência de quem sou a partir do olhar de um sujeito narrativo quase imperceptível.
“Essas imagens criam o que se chama de um estado de despersonalização ou de alienação. Isto é, elas forçam o sujeito negro a desenvolver uma relação consigo próprio através do sujeito branco. E também forçam o sujeito negro a olhar para si próprio através da perspectiva do outro. Enquanto eu caminho na rua e olho para estas imagens, eu sou não só confrontada com o ato de alienação, pois eu vejo aquilo que eu não sou, eu vejo-me a mim ou a minha identidade ser representada de uma forma que eu não sou. Mas, sou forçada a olhar para mim através da perspectiva dominante do sujeito branco. E isto é muito problemático, isto é a base da alienação, trauma e decepção”.
Esse fala da artista portuguesa Grada Kilomba, que tenciona as questões identitárias e de representação em seus trabalhos, carrega o conceito de dupla-consciência, desenvolvido pelo sociólogo, historiador e ativista W. E. B. Du Bois. No livro As almas da Gente Negra publicado em 1903, Du Bois trata da experiência da pessoa negra americana na tomada de consciência de sua identidade a partir da rejeição do próprio ser, partindo da metáfora de que o negro seria como o sétimo filho, nascido com um véu e dotado de uma clarividência, num mundo que não o permite produzir uma verdadeira autoconsciência, mas sim entender-se a partir da revelação do outro, carregando dois ideais conflitantes: a experiência de ser um negro americano em um país que rejeita as pessoas negras.
Dessa forma, ser negro é tornar-se, é compreender-se a si mesmo a partir da métrica de um mundo que o contempla com prazer e desprezo. A valorização de uma cultura e de uma estética onde alguns sujeitos são mais pertencentes do que outros pode gerar um sentimento de não-pertencimento, de não-lugar, onde aquele que é preterido acaba por ter como referência a adoração de simbologias que o excluem. Recentemente tive uma conversa com minha prima, outra mulher negra, onde pude perceber mais concretamente essa dinâmica. Tanto eu quanto ela compartilharmos um processo de não aceitação durante a adolescência: não conseguimos nos olhar no espelho. Encarar nossa imagem era algo complicado e confuso, pois éramos permeadas de imagens negativas sobre mulheres negras, onde o padrão brasileiro de beleza é magro, loiro, cisgênero, branco e de preferência com cabelo liso, logo olhar-se no espelho e encontrar pontos que gostássemos era doído e o mais fácil era não se encarar.
A construção das identidades e o reconhecimento num contexto de diáspora contemporânea é um processo ambivalente, onde existe um entrelaçamento entre as fronteiras particulares negras. Entendo aqui diáspora sobre o prisma subjetivo, simbólico, uma metáfora para um tipo de consciência, modo de produção cultural, experiência intelectual e construção identitária. Um deslocamento contemporâneo, que é estético, político e cultural e que acontece no “entre lugar”, espaços de fronteiras culturais, intervalo entre as individualidades independentes onde podemos ver a iluminação e discussão dos problemas das diferenças, ou melhor, a “sobra” desses lugares onde surge a diversidade não contemplada pelas categorias hegemônicas.
Nesse novo contexto a discriminação racista e colonial das “metrópoles” tomam corpo na passagem de ideais e valores por meio de signos. Logo, re-trabalhar formas de subjetivação e positivação, a partir da quebra de estereótipos, por exemplo, deve culminar no desenvolvimento das potencialidades da vida social, participativa, solidária e cooperativa tendo a estética afro-diaspórica como uma ferramenta política, presente nas diferentes esferas de poder, que leve em consideração uma inserção ambivalente na modernidade.
No ensaio The oppositional gaze (1992), bell hooks parte da metáfora do olhar de enfrentamento do escravizado sob seu senhor para tratar do desenvolvimento de uma determinada agência, que surge a partir da habilidade de manipular o enfrentamento em face das estruturas de poder. Entendendo o poder como um sistema de dominação que pretende o controle, é a partir das margens que surge a brecha para a insurgência da agência. A televisão como um meio de comunicação em massa para as massas funciona como um sistema de conhecimento e poder que reproduz e pretende manter a supremacia branca e encarar essas imagens é encarar a negação da representação negra. O espectador, frente às imagens, compreende suas camadas de significado a partir de sua experiência, dessa forma, marcadores de gênero, raça e classe podem influenciar a maneira como essa subjetividade é preenchida pelo espectador e levam a diferentes interpretações do mesmo material.
Entretanto, não pretendo afirmar que todas mulheres negras frente às imagens de mulheres negras nas telenovelas irão necessariamente desenvolver um olhar de enfrentamento e construir sua identidade pela racionalização do não reconhecimento de si nessas imagens. Não é uma consequência direta, mas sim uma insurgência que pode acontecer e que está mediada por alguns fatores externos como a família, a escola, o trabalho, suas relações pessoais, sociais e outros.
A conversa com minha prima sobre olhar-se no espelho surgiu a partir do momento que assisti ao filme Kbela (2015), da jovem cineasta carioca Yasmin Thayná, onde num momento de auto cuidado e afeto entre duas personagens elas conversam sobre a experiência de não conseguir olhar-se no espelho e encarar a si mesma. Em 2010, a cineasta paulista Juliana Vicente escreveu e dirigiu o filme Cores e Botas, que narra a desilusão de uma criança negra que sonhava em ser paquita, mas que por não ser loira, é preterida apesar de seu talento, como a história da minha tia. Trabalhos como os de Yasmin Thayná, Juliana Vicente, Renata Martins, Viviane Ferreira, Everlane Moraes, Adélia Sampaio, Lilian Solá Santiago, dentre outras, roteiristas, diretoras, fotógrafas, montadoras e técnicas de som, todas negras, que surgiram na última década me ajudaram a construir um ponto de vista questionador sob as narrativas hegemônicas. Além de estarem construindo uma produção cinematográfica de enfrentamento, onde o objeto da estrutura narrativa passou a ser o sujeito, o autor – no caso autora – de suas próprias experiências.
Crescer assistindo televisão me fez entender a mim mesma como uma pessoa que possui múltiplas identidades que me foram reveladas pela ausência de pessoas parecidas comigo nas narrativas ditas “nacionais” e pela rejeição das imagens estereotipadas, entendendo a mim e a minha realidade sob a ótica do outro. Por mais que as telenovelas estejam sempre em busca da inovação, regidas, até certo ponto, pelas vontades do público e que eventualmente cedam espaços para narrativas positivas sobre mulheres negras, quando analisamos o todo ainda há um caminho muito longo a ser percorrido, e considerando a estrutura de poder a qual a televisão está submetida, penso que talvez não seja realmente de interesse a construção de narrativas que busquem a emancipação das mulheres na perspectiva antirracista. Porém, há de se considerar as brechas, tanto na relação espectador-telenovela, quanto na absorção de profissionais negras pelas grandes emissoras, mas sobretudo no circuito independente, que abrem caminhos para a construção de novas representações das vidas negras.
Referências
ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo, SP:
Editora SENAC, 2000. 323p;
hooks, bell. The oppositional gaze. IN: Reel to real: race, sex, and class at the movies. New
York; London: Routledge, c1996. 244 p.;
DU BOIS, William. As almas da gente negra. Co-autoria de Heloisa Toller Gomes. Rio de
Janeiro, RJ: Lacerda, 1999. 322 p.;
KILOMBA, Grada. Entrevista com Grada Kilomba, #1 Imagem e Alienação. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tzYljBG5H-c>. Acessado em 15 de
agosto de 2017.
Memória Globo. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/>. Acessado em 15 de
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REIS, Marilise. A Diáspora e o Movimento Social das Mulheres Afrodescendentes das
Américas. Florianopólis, SC: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais,
2011.16p.