Nunca pensei em ser cineasta. Mesmo tendo crescido fascinada por imagens, sobretudo pela televisão, até eu entrar na faculdade nunca havia passado pela minha cabeça a possibilidade de trabalhar com cinema. Apesar de meus pais terem um amigo próximo cineasta, durante meus anos de formação escolar essa era a única referência de alguém de uma realidade parecida com a minha que fazia parte do “mundo mágico” do cinema. Nunca soube de nenhuma mulher, muito menos uma mulher negra, que tivesse alcançado esse status.
Não pretendo falar da minha trajetória dessa vez, gostaria de falar sobre possibilidades, sobretudo a possibilidade de transformar realidades através da invenção. Acredito que muito da crença na possibilidade de mudança vem daquela sensação de identificar em outras experiências caminhos que as tornem palpáveis, quase como: “hum… bom, se fulana conseguiu, eu também consigo”. E no caso de uma menina negra da zona leste de São Paulo conhecer a trajetória de outras mulheres negras pobres que ousaram fazer filmes é manter a fé de que pode ser possível transformar realidades, nem que seja inventando nas telas novas formas de viver. Não ignoro as dificuldades materiais, nem as urgências do cotidiano que nos impedem de nos dedicarmos ao cinema, mas acredito que alimentar nossos sonhos é uma forma de alimentar nossas existências.
E aí que eu escrevo esse texto para você, jovem negra com poucos recursos, mas cheia de sonhos. E parto da experiência de uma cineasta, mulher, negra, pobre e muito ousada, mas também invisibilizada pelo racismo e machismo da cinematografia brasileira: Adélia Sampaio. Nascida em Minas Gerais, filha de empregada doméstica, Adélia foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, mas seu filme Amor Maldito, lançado em 1984, ficou quase trinta anos num ostracismo revelador das estruturas que sustentam o mundo das artes brasileiras.
Amor Maldito foi o título de uma reportagem do jornal carioca O Fluminense publicado no início dos anos 1980. A crônica jornalística trazia um caso que aconteceu no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, e narrava a história de duas mulheres lésbicas que haviam tido um relacionamento, e após seu fim, uma delas havia se suicidado. Entretanto, a ex-companheira da falecida foi acusada de assassinato e o caso levado a tribunal. O longa-metragem de Adélia, inspirado nesse acontecimento, narra a partir do julgamento de Fernanda (Monique Lafond), sua relação com a ex-companheira Suely (Wilma Dias) e traça um retrato da justiça e da sociedade brasileira a partir de figuras caricatas, como a família evangélica de Suely e o advogado sensacionalista da acusação.
Estamos falando de um filme produzido nos anos 1980 e pensar a trajetória de Amor Maldito nos convida a refletir sobre sexualidade, gênero e raça no contexto do cinema brasileiro e seus diálogos. Amor Maldito pode ser visto como uma obra à frente do seu tempo, mas tanto a escolha certeira em sua abordagem temática quanto as questões ligadas a sua produção e distribuição marcam o retrato social de uma época: anos de ditadura militar, conservadorismo político e moral, e estruturas que mantém as desigualdades de gênero e raça. O filme teve de ser “fantasiado” de pornô para conseguir alguma visibilidade, e ganhou mais destaque pela atmosfera sexual que o rodeava, do que pelo debate que propunha, tendo seu conteúdo praticamente ignorado tanto pelo público, quanto pela crítica.
Numa breve historiografia do cinema nacional, podemos reparar nas dinâmicas, muitas vezes homofóbicas, que marcaram as construções narrativas em torno das vivências das pessoas LGBTs. Na época das chanchadas, populares nos anos 1940 e 1950, personagens homossexuais homens foram majoritariamente representados como estereótipos de gays afeminados, servindo à narrativa como alívio cômico ou travestidos de forma assexuada. Dessa forma ficava mais tragável para o público a aceitação desses personagens, pois suas subjetividades não eram postas na narrativa. A temática também foi deixada de lado pelo cinema novo, que preferia discussões sobre classes sociais, e encontrou um pouco mais de penetração no cinema marginal. Foi a partir dele que personagens homossexuais começaram a ocupar papéis centrais nas narrativas, ainda que ligando a homossexualidade à marginalidade.
A temática lésbica, entretanto, ganhou apelo nos filmes da pornochanchada, que valorizava o desejo e a curiosidade do homem heterossexual, trazendo personagens com pouca ou nenhuma afetividade e complexidade. O lesbianismo era apenas um estágio na história pela qual a mocinha passava para levá-la a ficar com um homem. Além da falta de sutileza com a qual era inserida, normalmente a “lésbica real” da história — a corruptora da mocinha — se torna uma assassina, serial killer, ou seja, o verdadeiro obstáculo a ser combatido. Um exemplo dessa representação pejorativa é encontrada em As Intimidades de Analu e Fernanda (1980), de José Mizziara, com atuação de Monique Lafond.
Monique Lafond foi atriz de diversos filmes pornôs e viveu a personagem Fernanda em Amor Maldito, a executiva acusada do assassinato de sua ex-companheira. Já Wilma Dias, que interpretou Suely, era a “garota da banana” que aparecia na abertura do programa Planeta dos Homens (1976), da TV Globo, cuja imagem tinha um forte apelo sexual. Na busca por reportagens, notícias e críticas sobre o longa de Adélia foram encontradas menções ao filme quando vinculados às suas atrizes. O que chamava atenção para Amor Maldito era a atmosfera sexual que o rodeava, mais do que a visão crítica que da sociedade brasileira e de como ela condenava as relações homossexuais na época.
Amor Maldito é um dos filmes que aborda o lesbianismo de forma mais positiva na produção nacional, sendo um retrato social da época. Inovou não na linguagem, mas na abordagem sensível e crítica de uma temática marginalizada, porém a dificuldade em sua distribuição – atrelada ao preconceito homofóbico e as barreiras impostas a uma mulher negra – não o tornou conhecido do grande público. À época de sua produção, a Embrafilme era a empresa responsável pela regulação das políticas públicas e incentivos financeiros para a produção e circulação de filmes nacionais. Dentro do contexto político e social da ditadura militar e do forte conservadorismo no que diz respeito às relações sexuais, a empresa chegou a reduzir o orçamento da produção até chegar a zero, afirmando que não compactuava com uma obra que perpetuasse e fosse vista como panfletagem de uma “doença”. Em busca de alternativas para produção, Adélia liderou um sistema de cooperativa, prática muito comum no teatro (onde ela trabalhou durante anos) para que o filme tomasse corpo.
No Brasil, quando da exibição de Amor Maldito em salas de cinema, o filme foi recusado por diversos exibidores que se negavam a dar espaço para esse tipo de debate. Até que o longa foi apresentado a um exibidor, conhecido como Magalhães, que se interessou pelo tema e viu nele a oportunidade de circulação desde que fosse vendido como filme pornô. E foi assim que Amor Maldito estreou na Galeria Olido, em São Paulo, em 13 de maio de 1984, em meio programações de filmes pornôs e cartazes sexualmente apelativos.
Mesmo que suas opções estéticas gerem controvérsias, principalmente devido às encenações exageradas e caricatas, o filme é bastante ousado e bem-intencionado, mas no meio da pornochanchada, não há espaço para boas intenções. Amor Maldito foi visto à época de seu lançamento como um intermediário entre uma obra-prima e as concessões aos apelos eróticos, o que o fez ficar sem público. O filme pouco tem desse apelo, na verdade: Adélia busca explicar a bestialidade que enreda a patética mitologia do sexo descartável, e oferece uma antologia de sexo com sentimentos de culpa.
“Só uma cineasta ousada é capaz de tornar reais coisas que a sociedade condena, como o casamento de Monique e Vilma”. Essa foi a descrição usada por Ailton Assis em sua crítica sobre Amor Maldito publicada na Tribuna da Imprensa de 1983. E Adélia é de fato uma vanguardista, uma cineasta sensível a temas marginalizados socialmente. Durante sua carreira esteve envolvida com outros temas das minorias representativas, e atrás das câmeras contava com presença massiva de mulheres em sua equipe. Antes de dirigir Amor Maldito, a cineasta já havia produzido dezenas de filmes do cinema novo e marginal, mas um episódio significativo de seu trabalho e que diz muito sobre as relações raciais no cinema brasileiro chama atenção: a presença do filme Parceiros da Aventura de José Medeiros no Festival de Gramado em 1980 que ficou conhecido como o “filme dos negrinhos”. Na ocasião, Adélia atuou como diretora de produção do filme, que apesar de ter chamado grande atenção do público, esbarrou na resistência racista dos jurados do festival, que não o premiaram por considerá-lo negro demais.
É essa resistência racista, em reconhecer o trabalho de artistas negros em prol da manutenção de uma estrutura que enaltece a produção de cineastas brancos, um dos fatores que influenciou o ostracismo no qual caíram Adélia e seu filme. O papel da Embrafilme, por exemplo, foi fundamental para os caminhos que levaram Adélia ao esquecimento. Enquanto seu filme não recebia apoio nenhum, filme dirigidos por homens brancos cujas temáticas favoreciam a manutenção do status quo recebiam financiamento e apoio para distribuição (cenário que não é completamente diferente de hoje, mas isso é assunto para um outro texto). Assim, eu questiono: Terá sido só a temática que fez de Amor Maldito um filme esquecido pelo público e crítica? Como esse mesmo público e crítica olharam para um filme dirigido por uma mulher negra nos anos 1980? E como esses olhares moldaram sua trajetória?
Talvez a trajetória de Amor Maldito tivesse terminado aí, se não fosse sua redescoberta no começo dos anos 2010, por outra mulher negra. Em 2013, Edileuza Penha de Souza realizou tese de doutorado pela Universidade de Brasília chamada Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, Narrativas de Amor, Afeto e Intimidade. Ainda que esse não seja o foco da tese, a pesquisadora propõe uma discussão acerca do que é conceitualmente o Cinema Negro e faz um levantamento dos realizadores e realizadoras negras do cinema nacional, citando o pioneirismo de Adélia Sampaio.
A tese de Edileuza faz parte de um contexto maior de estudos e políticas afirmativas e identitárias que conquistaram espaço público no Brasil com mais força a partir dos anos 2000. Fruto das mobilizações sociais do movimento negro, organizado no Brasil desde os anos 1970, a implementação de uma política de cotas raciais nas universidades e órgãos públicos brasileiras tem mudado não só a composição racial dos cursos, mas tem transformado a produção de conhecimento com o surgimento de trabalhos nas mais diversas áreas, que tratam das relações raciais e de gênero a partir da perspectiva dos sujeitos negros. Este é um movimento que tem ganhado corpo no Brasil, em diálogo com outros países da diáspora africana, e encontrado reverberações na cultura digital, na política e também nas artes.
Desde que a figura de Adélia ressurgiu na pesquisa de Edileuza e foi difundida, sobretudo entre realizadores, curadores, militantes e pesquisadores negros, uma nova reescritura da história do cinema nacional tem sido proposta, sobretudo pelas mulheres negras. De 2015 para cá, Adélia Sampaio e Amor Maldito circularam pelo país num movimento de reconhecimento do trabalho de uma cineasta, mulher e negra, que foi propositalmente deixado de lado durante tantos anos. As reivindicações pelo reconhecimento do cinema feito por mulheres negras no Brasil tem pipocado, sobretudo desde 2016, e nos feito questionar, repensar e mover certas estruturas.
A redescoberta do filme acaba por escancarar a necessidade de reescrever a história desse cinema e está fortemente ligada aos movimentos organizados por pessoas negras. O reconhecimento do pioneirismo de Adélia traz à luz a discussão sobre os processos de invisibilidade das pessoas negras na sociedade brasileira, sobretudo em espaços tão elitizados quanto o cinema, e nos faz refletir sobre a influência dos debates públicos atuais na repercussão dos filmes. Mas, acima de tudo, destaca a necessidade de construção de um ambiente de possibilidades para que outras mulheres negras, como eu e você, enxerguemos no fazer cinema uma alternativa para inventar novas formas de viver e transformar as realidades que nos cercam.
Não apenas irei encarar. Eu quero que meu olhar transforme a realidade
bell hooks em The oppositional gaze (disponível em português aqui)
De volta a minha infância uma lembrança surge repetidamente: passar dias inteiros assistindo televisão. Sou da geração dos nascidos no início dos anos 1990 antes da popularização dos meios digitais, do advento da Internet banda larga e da possibilidade de se comunicar por redes sociais. E para uma pessoa que cresceu na periferia da cidade de São Paulo, onde os aparatos de lazer públicos sempre foram muito escassos, o medo e a insegurança fizeram com que meus pais tentassem proteger ao máximo a mim e ao meu irmão, logo ficar em casa assistindo TV sempre foi considerada uma atividade segura. Eu cresci assistindo de tudo, sobretudo aos programas da televisão aberta, já que os canais a cabo só chegaram em casa lá no ano de 2005. Era realmente fascinada por aquele tubo transmissor de sons e imagens, me encantava a representação da vida, as emoções que eram capazes de causar e minha rotina era pensada de acordo com a grade televisiva: acordava, tomava café já assistindo desenhos na TV Globinho ou no Bom Dia & Cia, almoçava vendo SPTV, ia para escola e quando voltava conseguia pegar o final de Malhação, emendando as três novelas da noite da Globo e algum reality show ou programa de entretenimento, sendo interrompida apenas para jantar e tomar banho.
A televisão acabava ocupando um espaço central na minha vida, que se materializava na configuração do lar. Ela estava ali, no centro da estante na sala, entre o rádio e as caixas de som de frente para o sofá e sua voz preenchia todos os cômodos do apartamento de 48m² da Cohab I em Artur Alvim. Assistí-la era também um ritual, momento de junção da família, lembro de alguns sábados à noite onde meus tios, tias, primos e primas se reuniam para conversar, comer esfihas e sentar frente à TV, não importava na casa de quem estivéssemos, ela estava sempre ligada, no centro da sala, quase como se conversasse conosco. Adorávamos comentar as novelas, mesmo que presas numa estrutura previsível onde o “bem” normalmente vence o “mal”, elas eram carregadas de emoções e de um certo sentimento de pertencimento bastante dialético. Apesar de serem ambientadas no Brasil, tratar de temas do cotidiano e dirigir-se a “todos” os brasileiros eu não conseguia me ver ali, não completamente.
Eu tenho uma tia, irmã do meu pai, que adorava o Xou da Xuxa e que sempre diz que durante a adolescência tinha vontade de ser paquita, mas como todas as paquitas eram brancas, loiras e com o cabelo liso, ela nunca poderia ser uma. Meu avô paterno era negro e minha avó paterna, apesar da pele clara, tem a boca e o nariz bem largos e o cabelo crespo, assim meus tios, incluindo meu pai, nasceram com tons de pele distintos, mas todos com traços negroides muito marcados. Sou filha de um casamento inter-racial: tenho a pele clara, cabelos carinhosamente apelidado por meu pai por “cabelo de prego” e traços negroides mais brandos. A racialização sempre esteve presente na minha vida, lembro de ser chamada de Medusa na escola, de alisar meu cabelo e de ser preterida pelos meninos porque não estava dentro do padrão branco de beleza e ouvir na escola que tinha “um pé na Senzala”, mas mesmo assim demorei alguns anos para construir minha identidade racial. E a televisão sempre esteve ali, como mediadora desse processo, fazendo-me refletir sobre quem eu era e sobre minha realidade a partir da ausência e da estereotipização.
Quando minha tia dizia que não podia ser paquita porque não era loira eu me perguntava, “Mas por que todas as paquitas da Xuxa são loiras?”, “Por que todas as apresentadoras são brancas?”, “Por que quase não existem personagens negros nas novelas se eu vejo tantas pessoas negras ao meu redor?”, “E por que os personagens negros nas novelas são sempre as empregadas domésticas, os seguranças, motoristas, serventes ou bandidos?”, “Por que a Cohab só aparece no Datena?”, “Onde estão as pessoas parecidas comigo? Onde está a minha realidade dentro desses programas que se dizem nacionais?”.
Para não ser injusta, lembro de duas personagens de programas infantis onde via meninas negras com as quais me identificava: a Biba, no Castelo Rá-tim- bum, programa da TV Cultura e a Pata, na novela Chiquititas, da primeira versão exibida pelo SBT. Eu assistia a muitos programas televisivos e, claro, que não podemos confiar apenas na memória para exercer uma análise mais profunda sobre determinado objeto, mas como posso lembrar apenas de duas personagens infantis negras? Ou melhor, como posso ter crescido com tão poucas narrativas sobre infâncias negras quando metade da população brasileira é negra?
Refletindo sobre essas questões chego a outro ponto em comum entre as personagens Biba e Pata: nenhuma delas eram mostradas em momentos com suas famílias, amigos negros ou frequentando espaços onde a maioria das pessoas eram negras. A escolha em Chiquititas é justificada pelo motor da narrativa, tratavam-se de crianças em orfanato, porém esse tipo de representação dos personagens negros sem nenhuma ligação com qualquer outra pessoa negra é comum em muitas narrativas seriadas brasileiras. As novelas de Manoel Carlos sempre me chamaram muita atenção quando parava para reparar nas personagens mulheres negras e seus lugares na narrativa. Suas novelas têm como marca a presença de uma personagem principal forte, a Helena, e é em volta dela que a história se desenvolve. História de Amor (1995), Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006), entre outras, sempre tiveram como núcleo principal famílias ricas do Rio de Janeiro. Tais tramas costumam girar em torno dos desejos, anseios e desafios de uma elite econômica majoritariamente branca, o que Joel Zito Araújo no livro A Negação do Brasil chama de “visão zona sul das telenovelas”. Em todas essas novelas é possível encontrar personagens negras mulheres na posição de empregadas domésticas que não possuem família ou relacionamentos com outras pessoas negras, ocupando a função de servir e estar à disposição das famílias abastadas.
Em 2009 nós espectadoras(es) fomos apresentadas(os) a primeira Helena negra de Manoel Carlos. Taís Araújo, que já havia inaugurado o marco de primeira protagonista negra com a telenovela Da cor do pecado (sim, deram o nome da novela a associação da pele negra ao pecado), viveu Helena na novela Viver a Vida (2009), uma modelo que enriqueceu com seu trabalho e que se apaixona por Marcos (José Mayer), um homem branco vinte anos mais velho. Ele a princípio era casado com Teresa (Lilia Cabral) e pai de três filhas, mas ao se separar da esposa conhece Helena e casa-se novamente. Este ensaio não pretende se aprofundar no desenvolvimento narrativo da trama, porém uma cena onde a personagem Helena leva um tapa no rosto de Teresa, enquanto está de joelhos desculpando-se por algo que não fez chamou muito atenção. O episódio foi ao ar no dia da consciência negra (20 de novembro) e muitos consideraram que a imagem apenas reforçou o estereótipo de submissão e desumanização das mulheres negras. Recentemente Taís Araújo deu uma entrevista dizendo que após essa novela afundou-se numa tristeza profunda e que a não possibilidade de transformar sua personagem numa mulher realmente forte a fez encarar que tipo de personagem queria ser e que tipo de papéis não queria mais representar.
A ausência e o uso excessivo de estereótipos sobre mulheres negras nas telenovelas televisão estão diretamente ligados a algumas características do gênero. O melodrama televisivo tem como influência os folhetins de jornal, as radionovelas e o melodrama cinematográfico. Tais filmes carregam em si um ideal burguês de sucesso e felicidade, que geralmente estão associados a ascensão social econômica. Possuem valores morais e sociais muito marcados, baseados no cristianismo, na heteronormatividade, no falocentrismo e na brancura como forma de beleza. É comum também ao melodrama os ditos personagens “planos”, ou seja, ou são extremamente bons, ou completamente maus, gananciosos, torpes, burros ou ingênuos. Dessa forma suas ações são regidas por apenas uma de suas características psicológicas tornando a narrativa bastante previsível. Dentro dessa estrutura enrijecida o uso de estereótipos se dá com muita frequência e são poucas as personagens, sobretudo as mulheres negras, cujas personalidades são regadas de contradições e humanização.
Na teledramaturgia brasileira tem sido dado às mulheres negras poucos espaços, apesar de fazermos parte de uma parcela significativa da população brasileira, quando não estamos ausentes nesses programas, ocupamos o papel da empregada doméstica, da mulher sensual (a “mulata”), da mulher ligada ao tráfico de drogas, da escrava ou da cuidadora. Só recentemente, em alguns programas seriados de TV aberta, mulheres negras foram representadas como pessoas fortes, com ambição, dotadas de conhecimento e agência de suas ações, como o caso de Isabel (Camila Pitanga) na novela Lado a Lado (2012) e mais recentemente Michele (Taís Araújo) em Mister Brau (2015). Entretanto, é importante olharmos mais profundamente para a ausência e estereotipização das mulheres negras na trajetória da teledramaturgia brasileira, a fim de elaborar algumas teorias sobre a representação negra e criação de imaginário.
É comum na configuração dos lares brasileiros que a televisão ocupe um lugar central na vida das pessoas, assumindo muitas vezes o papel educativo se pensarmos um contexto de baixa qualidade de ensino público, escassez de espaços de lazer e dificuldade de acesso à bibliotecas, teatros e cinemas. Ela enuncia comportamentos, valores, aponta o que é pauta de discussão ou não, promove alguns julgamentos, formula padrões e cria um universo simbólico estético que diz o que está dentro e o que está fora. Imagens estereotipadas, sejam elas extremamente positivas ou extremamente negativas, cumprem a função de controlar e desumanizar determinados corpos, num processo contemporâneo de colonização e imposição de valores eurocêntricos, no caso da representação das mulheres negras na TV, são imagens extremamente definidas a partir do olhar de um sujeito sob o objeto, o “outro” da narrativa e configuram uma forma de violência não material ou física, mas simbólica.
Crescer assistindo televisão me fez perceber que ora estávamos ausentes das histórias, ora éramos tidas como inferiores. E me interessa refletir acerca dessa experiência espectatorial, pois olhar para essas imagens me fez ter consciência de quem sou a partir do olhar de um sujeito narrativo quase imperceptível.
“Essas imagens criam o que se chama de um estado de despersonalização ou de alienação. Isto é, elas forçam o sujeito negro a desenvolver uma relação consigo próprio através do sujeito branco. E também forçam o sujeito negro a olhar para si próprio através da perspectiva do outro. Enquanto eu caminho na rua e olho para estas imagens, eu sou não só confrontada com o ato de alienação, pois eu vejo aquilo que eu não sou, eu vejo-me a mim ou a minha identidade ser representada de uma forma que eu não sou. Mas, sou forçada a olhar para mim através da perspectiva dominante do sujeito branco. E isto é muito problemático, isto é a base da alienação, trauma e decepção”.
Esse fala da artista portuguesa Grada Kilomba, que tenciona as questões identitárias e de representação em seus trabalhos, carrega o conceito de dupla-consciência, desenvolvido pelo sociólogo, historiador e ativista W. E. B. Du Bois. No livro As almas da Gente Negra publicado em 1903, Du Bois trata da experiência da pessoa negra americana na tomada de consciência de sua identidade a partir da rejeição do próprio ser, partindo da metáfora de que o negro seria como o sétimo filho, nascido com um véu e dotado de uma clarividência, num mundo que não o permite produzir uma verdadeira autoconsciência, mas sim entender-se a partir da revelação do outro, carregando dois ideais conflitantes: a experiência de ser um negro americano em um país que rejeita as pessoas negras.
Dessa forma, ser negro é tornar-se, é compreender-se a si mesmo a partir da métrica de um mundo que o contempla com prazer e desprezo. A valorização de uma cultura e de uma estética onde alguns sujeitos são mais pertencentes do que outros pode gerar um sentimento de não-pertencimento, de não-lugar, onde aquele que é preterido acaba por ter como referência a adoração de simbologias que o excluem. Recentemente tive uma conversa com minha prima, outra mulher negra, onde pude perceber mais concretamente essa dinâmica. Tanto eu quanto ela compartilharmos um processo de não aceitação durante a adolescência: não conseguimos nos olhar no espelho. Encarar nossa imagem era algo complicado e confuso, pois éramos permeadas de imagens negativas sobre mulheres negras, onde o padrão brasileiro de beleza é magro, loiro, cisgênero, branco e de preferência com cabelo liso, logo olhar-se no espelho e encontrar pontos que gostássemos era doído e o mais fácil era não se encarar.
A construção das identidades e o reconhecimento num contexto de diáspora contemporânea é um processo ambivalente, onde existe um entrelaçamento entre as fronteiras particulares negras. Entendo aqui diáspora sobre o prisma subjetivo, simbólico, uma metáfora para um tipo de consciência, modo de produção cultural, experiência intelectual e construção identitária. Um deslocamento contemporâneo, que é estético, político e cultural e que acontece no “entre lugar”, espaços de fronteiras culturais, intervalo entre as individualidades independentes onde podemos ver a iluminação e discussão dos problemas das diferenças, ou melhor, a “sobra” desses lugares onde surge a diversidade não contemplada pelas categorias hegemônicas.
Nesse novo contexto a discriminação racista e colonial das “metrópoles” tomam corpo na passagem de ideais e valores por meio de signos. Logo, re-trabalhar formas de subjetivação e positivação, a partir da quebra de estereótipos, por exemplo, deve culminar no desenvolvimento das potencialidades da vida social, participativa, solidária e cooperativa tendo a estética afro-diaspórica como uma ferramenta política, presente nas diferentes esferas de poder, que leve em consideração uma inserção ambivalente na modernidade.
No ensaio The oppositional gaze (1992), bell hooks parte da metáfora do olhar de enfrentamento do escravizado sob seu senhor para tratar do desenvolvimento de uma determinada agência, que surge a partir da habilidade de manipular o enfrentamento em face das estruturas de poder. Entendendo o poder como um sistema de dominação que pretende o controle, é a partir das margens que surge a brecha para a insurgência da agência. A televisão como um meio de comunicação em massa para as massas funciona como um sistema de conhecimento e poder que reproduz e pretende manter a supremacia branca e encarar essas imagens é encarar a negação da representação negra. O espectador, frente às imagens, compreende suas camadas de significado a partir de sua experiência, dessa forma, marcadores de gênero, raça e classe podem influenciar a maneira como essa subjetividade é preenchida pelo espectador e levam a diferentes interpretações do mesmo material.
Entretanto, não pretendo afirmar que todas mulheres negras frente às imagens de mulheres negras nas telenovelas irão necessariamente desenvolver um olhar de enfrentamento e construir sua identidade pela racionalização do não reconhecimento de si nessas imagens. Não é uma consequência direta, mas sim uma insurgência que pode acontecer e que está mediada por alguns fatores externos como a família, a escola, o trabalho, suas relações pessoais, sociais e outros.
A conversa com minha prima sobre olhar-se no espelho surgiu a partir do momento que assisti ao filme Kbela (2015), da jovem cineasta carioca Yasmin Thayná, onde num momento de auto cuidado e afeto entre duas personagens elas conversam sobre a experiência de não conseguir olhar-se no espelho e encarar a si mesma. Em 2010, a cineasta paulista Juliana Vicente escreveu e dirigiu o filme Cores e Botas, que narra a desilusão de uma criança negra que sonhava em ser paquita, mas que por não ser loira, é preterida apesar de seu talento, como a história da minha tia. Trabalhos como os de Yasmin Thayná, Juliana Vicente, Renata Martins, Viviane Ferreira, Everlane Moraes, Adélia Sampaio, Lilian Solá Santiago, dentre outras, roteiristas, diretoras, fotógrafas, montadoras e técnicas de som, todas negras, que surgiram na última década me ajudaram a construir um ponto de vista questionador sob as narrativas hegemônicas. Além de estarem construindo uma produção cinematográfica de enfrentamento, onde o objeto da estrutura narrativa passou a ser o sujeito, o autor – no caso autora – de suas próprias experiências.
Crescer assistindo televisão me fez entender a mim mesma como uma pessoa que possui múltiplas identidades que me foram reveladas pela ausência de pessoas parecidas comigo nas narrativas ditas “nacionais” e pela rejeição das imagens estereotipadas, entendendo a mim e a minha realidade sob a ótica do outro. Por mais que as telenovelas estejam sempre em busca da inovação, regidas, até certo ponto, pelas vontades do público e que eventualmente cedam espaços para narrativas positivas sobre mulheres negras, quando analisamos o todo ainda há um caminho muito longo a ser percorrido, e considerando a estrutura de poder a qual a televisão está submetida, penso que talvez não seja realmente de interesse a construção de narrativas que busquem a emancipação das mulheres na perspectiva antirracista. Porém, há de se considerar as brechas, tanto na relação espectador-telenovela, quanto na absorção de profissionais negras pelas grandes emissoras, mas sobretudo no circuito independente, que abrem caminhos para a construção de novas representações das vidas negras.
Referências
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DU BOIS, William. As almas da gente negra. Co-autoria de Heloisa Toller Gomes. Rio de
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Memória Globo. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/>. Acessado em 15 de
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REIS, Marilise. A Diáspora e o Movimento Social das Mulheres Afrodescendentes das
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