Pedro Almodóvar volta ao melodrama em sua melhor forma em Julieta, filme aparentemente contido, em que uma mulher de meia-idade busca acertar as contas com o passado. Essa aparência pode explicar o pouco sucesso que o filme vem angariando entre os críticos apaixonados pelo deslumbramento e exagero que marcam a obra do diretor espanhol.
Quem não se deixar abalar pelo ritmo mais lento e o tom reservado do filme encontrará vários elementos que nos remetem aos trabalhos anteriores de Almodóvar. Ainda que de maneira elegante e menos febril, estão ali o suspense, acentuado pela trilha e pelos flashbacks e as cores fortes dos cenários, que se confundem com os sentimentos das personagens. Isso além de fortes mulheres, entre o desejo e a culpa, em um conflito que se arrasta pelos anos e deforma vidas.
Julieta é uma mulher aparentemente bem-sucedida financeiramente, casada e independente que está de mudança para Portugal, para não mais voltar. Logo no início do filme há uma conversa com Bea, antiga amiga de sua filha Antía, que Julieta não vê há treze anos, por motivos até então desconhecidos. A partir daí, torna-se imperioso para a personagem escrever uma carta, um relato frágil que estivera estancado pelo tempo, desde quando era apenas uma jovem que não sabia o que esperar da maternidade e da vida a dois.
É revivida então uma história que parece muito particular e misteriosa, graças à personalidade esquiva e ao mesmo tempo encantadora de Julieta na juventude, e ao relacionamento intenso e cheio de mágoas com o pescador Xoan, uma espécie homem símbolo de uma liberdade mental e sexual que atrai e machuca as mulheres que tentam se aproximar.
Atenção: a partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.
É uma história intimista, que se desenvolve também em tudo o que não é mostrado em tela: através da carta, estamos com Julieta em um momento em que ela fala com sinceridade sobre sua vida pela primeira vez. Não podemos esquecer que todo o mistério em torno dos acontecimentos de sua vida parte de seu olhar exclusivo e limitado, desde a viagem de trem com seus prenúncios de morte até a revelação de sua depressão durante o crescimento de Antía.
O universo de esquecimento que Julieta construiu para se proteger se desconstrói quando ela conversa com a amiga de Antía. Ela percebe que não sabe todos os pedaços da própria história. Ao saber que Antía vive na Suíça e tem seus próprios filhos, Julieta se permite buscar uma chance de redenção.
A revelação pessoal de Julieta através da carta não explica precisamente de onde vem toda a mágoa, culpa e revolta que a afastaram da filha. E nem poderia: ao optar por se calar a vida inteira, Julieta tinha pouco ou nenhum acesso à intimidade dos outros, e com isso limita nosso olhar para dentro do filme e para a vida das personagens.
Julieta descreve Antía como uma jovem forte e independente, que cuidou dela durante um período de profunda depressão, mas as revelações posteriores entregam pistas de que a jovem não é quem a mãe descreveu.
Por trás desse retorno à juventude, há um enredo muito sensível às mulheres de meia-idade e com filhos, quando afinal se veem sozinhas: o de uma vida cimentada sob a culpa, e a transferência desse sentimento para os filhos, como uma herança amarga que nunca se rompe, graças ao silêncio.
Há um tratamento de gênero interessante em torno dessa culpa. Os homens do filme realizam seus desejos, independentemente das críticas que recebem: Xoan era um pescador libertário, sexualmente resolvido, e o pai de Julieta logo se casou com uma moça mais jovem, quando a esposa começou a perecer. Às mulheres do filme resta, como uma herança feminina, a culpa e o inconformismo por ter que ver suas vidas esfacelando em função dos homens e dos filhos. Até mesmo Ava, amiga de Julieta, perece sob a culpa que lhe cai por ter sido amante de Xoan, ainda que simbolicamente, através de sua doença. As mortes e desaparecimentos no meio do caminho são como avisos para que Julieta tome conta da própria vida: ela, no entanto, as compreende como castigo e impedimento para que viva plenamente.
Parte do estranhamento da crítica e do público talvez se dê pela economia de sentimentos expostos das personagens, a exemplo do belo Volver (2006), que trata de temas semelhantes e expõe as feridas que atravessam gerações de mulheres. Em Julieta, esses sentimentos muitas vezes se encontram apenas numa simples troca de informação: que deverá ter sentido Julieta quando Bea conta a ela que tivera um relacionamento amoroso com Antía? Que reação será possível para uma mãe que ignorou a vida inteira o que a filha vivia e sentia bem debaixo de seu nariz? Aos mais sensíveis só resta pensar no quanto disso pode existir em suas próprias vidas.
No fim, Julieta é mesmo um filme que opta por evitar picos emocionais, o que se demonstra pelo seu final aparentemente aberto, no qual só vislumbramos a esperança da reconciliação entre as duas, que só será possível a partir do rompimento do silêncio. Não conheceremos mais de Antía do que a mãe nos permitiu ver durante a história, o que considero uma decisão que demonstra maturidade criativa e emocional por parte de Almodóvar. Julieta está a caminho de se livrar da própria culpa após anos de sofrimento, e nós voltaremos para casa para nos confrontar com o peso de nosso próprio silêncio.