Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

AOS QUE SE ATREVEM A DIZER SIM: QUE HORAS ELA VOLTA?

Da porta da cozinha, a sala de jantar não é mais que uma fresta. Ouvimos atentamente os sons que vêm de lá, esperando escutar uma ordem ou pedaços de uma conversa para a qual não fomos convidados. Os desavisados podem até pensar que o filme de Anna Muylaert é emoldurado por uma cozinha, por portas entrefechadas e janelas que dão pro lado de dentro, ignorando que na verdade a nossa protagonista está ali no que nós achávamos que era moldura. Ela mesma se confunde, achando que é parte do plano de fundo, sem perceber que estamos ali para conhecer a história dela.

Val (Regina Casé) é assim mesmo, uma figura cheia de luz própria e carisma que acha que nasceu para viver às sombras, que conhece o “seu devido lugar” e que entende que quando a patroa (Karia Teles) diz que ela é “como se fosse da família”, assim como quando um sorvete caro é oferecido pelos donos da casa, essa é uma honra que eles oferecem sem esperar que ela aceite.

Até que, um dia, ela aceita. O constrangimento é palpável, expondo, aos poucos, uma relação delicada que começa a ruir a partir do momento em que se aceita algo que só foi oferecido por educação. Val não o faz por si mesma, e sim pela filha, que não vê há dez anos. O que não se espera é que Jéssica (Camila Márdila), articulada e inteligente, compreenda logo de cara as relações de poder da casa e exponha a hipocrisia da situação.

A diferença de tratamento que Val dá para a própria filha e Fabinho (Michel Joelsas) é tão clara quanto o enorme abismo na maturidade dos dois. Seu Carlos (Lourenço Mutarelli), um homem melancólico e calado, não perde tempo em assegurá-la que o dinheiro de verdade é dele, como se isso o tornasse mais másculo e atraente pra adolescente que acabou de chegar na sua casa. Dona Bárbara é um ideal feminista para muitos. Uma mulher poderosa, dona do seu próprio negócio, que alcança o lugar que os homens sempre ocuparam na sociedade. Um feminismo branco, elitista e superficial em que se procura ocupar um lugar mais elevado em uma estrutura opressora, sem nenhuma intenção de desmantelá-la. Quando confrontado com questões mais profundas, entretanto, se revolta. Como se atreve, essa menina, nordestina, querer passar em uma das melhoras faculdades do país? Como se atreve, a filha da empregada, querer um lugar ao sol?

Que Horas Ela Volta? é um filme sobre muitas coisas. É sobre mães que deixam filhos para dar um futuro para eles que, por sua vez, deixam seus filhos para dar um futuro para eles. É um filme sobre o fim de uma maldição de família. É um filme sobre relações de gênero, sobre relações de classe. É um filme sobre pessoas que tentam resguardar seus privilégios, e também sobre as que desafiam o status quo. É um filme sobre um país que está mudando, reconhecendo padrões de comportamento e dizendo “eu mereço mais do que isso”.