Evelyn Cunningham foi uma jornalista americana envolvida em iniciativas das lutas negras e feministas, uma figura chave na disseminação de notícias durante o movimento dos direitos civis dos Estados Unidos nos anos 1960. Nos corredores da internet, aparecem referências a uma citação dela que diz mais ou menos assim: as mulheres são o único grupo oprimido do qual é socialmente exigido que amem, intimamente, seus próprios opressores.
Ao se falar dos usos políticos do cinema no momento atual, é natural que se caia na questão de filmar o inimigo (1), de como essa relação pode se dar através da câmera, de uma performance da imagem e som e da própria relação entre o eu e o outro que me fere. Essas questões estiveram muito presentes para mim no último Festival de Brasília, em especial com um dos longa-metragens em competição. Pode-se pensar que falo do filme Por trás da linha de escudos, de Marcelo Pedroso, mas não. O filme em questão é Construindo Pontes, da veterana diretora de fotografia Heloísa Passos em seu primeiro longa.
As discussões sobre filmar o inimigo em 2017 muitas vezes se concentraram em uma perspectiva macropolítica de pensar as grandes instituições que detém poder econômico, midiático, social, provavelmente também pelo momento de convulsão política mais óbvia que o país tem vivido nos últimos anos. Dentre os filmes recentes que se pode inserir nesse diálogo, um deles trata a questão da condição feminina de forma mais frontal: o longa-metragem Câmara de Espelhos, de Déa Ferraz (2), usa estratégia de dispositivo ao colocar homens que se voluntariam a opinar dentro de uma sala para assistir a fragmentos midiáticos e dar voz às suas percepções. Antes fosse curioso ou surpreendente este fato, mas não o é: as convicções e opiniões desses homens são parecidíssimas, o que leva a pensar no título do documentário. Apenas um dos homens, um infiltrado cuja posição política supostamente se alinha a da diretora, deve fazer a voz do “homem sensato”, e ainda assim não consegue. Não é capaz de se posicionar nem de apresentar dissenso que incentive debate diante daqueles homens e suas opiniões nocivas, o que é também sintomático.
A distância da diretora em relação aos personagens do documentário, em relação àquele ambiente que ela cria, pode ser quase alentadora se colocada em paralelo ao nosso cotidiano. Estar longe daquela sala fechada repleta de homens cheios de opiniões, presente através do ponto de escuta no ouvido do “homem aliado”, no controle das câmeras e dos microfones e da escolha dos vídeos a serem apresentados para aquele grupo. Uma situação de poder — digito, com ironia, pois esse poder só funciona em comparação ao des-poder usual. Fora do filme, aquelas pessoas não são meros desconhecidos: são colegas de trabalho, irmãos, pais, namorados, maridos, amigos.
Talvez aqui se encontre o ponto que me pegou no filme que leva a essa reflexão, o já mencionado Construindo Pontes, de Heloísa Passos. Heloísa filma um membro da família pelo qual é esperado que se tenha amor. Seu pai. Ela filma alguém que conhece bem, com quem conviveu intensamente durante infância e adolescência. Ela filma alguém que se beneficiou diretamente da ditadura militar brasileira, um engenheiro que trabalhou nas obras iniciadas pelo governo militar. Assistindo ao filme, eu tenho a impressão de que sei que ela sabe que a sua própria trajetória como diretora de fotografia está entrelaçada à vida que seus pais lhe proporcionaram. De forma irremediável, ela faz parte dessa história. (Todos fazemos). Heloísa – mulher de esquerda, artista, homossexual, branca, vinda de uma situação econômica confortável, personagem principal do documentário junto ao seu pai – está com raiva. E não sabe lidar.
É louvável que um filme parta de um lugar tão honesto de conflito interno, não só pela coerência com o quê o move, mas por este ser um lugar de conflito que é pervasivo nesse momento histórico, especialmente para mulheres. No debate do filme durante o Festival de Brasília, comentaram que Heloísa era desagradável no filme, que ela era irritante, e que ele parecia um senhor muito gentil. Um crítico da plateia respondeu comentando que os piores tipos de pais abusivos são os que parecem ser muito gentis. Para além das possibilidades de percepção, parte de uma ética da diretora, das roteiristas e das montadoras expor a situação de uma forma que não delimite com exatidão heróis e vilões, ainda que esteja explícita a opinião e o sentimento da diretora-personagem. O filme permite que o próprio filme “dê errado”. Diversos dispositivos que a diretora propõe não se realizam, eles não funcionam, chegando ao ponto de o pai questionar a proposta da filha sobre o filme durante o próprio filme. O pai parece disfarçadamente se rebelar em relação aos pactos do filme, ao mesmo tempo em que colabora ativamente para o seu fazer: repete takes indefinidamente, aceita que a filha o acompanhe, aceita acompanhar a filha em uma viagem, mas se recusa a ceder a ou talvez sequer a enxergar o que ela espera do filme. E é nessa recusa, nessa impossibilidade de encontro, de resolução, que o filme se faz.
O nó de se colocar na posição de filmar uma relação de desequilíbrio de poder que existe na micropolítica, dentro de casa, dentro da intimidade é algo que me parece de extrema importância no exercício do cinema feito por mulheres. Parafraseando o texto de uma colega (3), “desconstruir” nossos pais/avôs/maridos/namorados/amigos não é militância, não é intolerância política e não é extremismo; é estratégia de sobrevivência. Heloísa saiu de casa pela dificuldade de convivência com o pai e fica a inferência no filme de que isso tem a ver com sua orientação sexual e afetiva. Ao voltar para fazer o filme, a diretora compreende que filmar inimigos hoje intenta talvez reconhecer em que medida podemos ser inimigos também. Fica, para mim, a impressão de que nenhuma ponte entre os dois é construída no filme, que a cada vez que uma começa a se esboçar é logo em seguida derrubada. Cada um olha para uma direção distinta. Se existe alguma ponte ali, ela só pode ser o próprio filme, este sim construído pelos dois. Que seja essa a ponte do título também não requer uma interpretação moralista e pacificadora; uma ponte é só uma ponte, é preciso atravessá-la.
(1) Como filmar o inimigo?, de Jean-Louis Comolli.
(2) Falamos sobre Câmara de Espelhos na época de sua exibição em outro texto do Verberenas
(3) http://www.deixadebanca.com.br/2016/05/desconstruindo-meu-namorado.html
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desse ano teve novos formatos, com mostras paralelas de cunho político e as chamadas sessões especiais. Em uma dessas sessões, foram exibidos os longa-metragem Precisamos falar do assédio e Câmara de Espelhos, filmes que tratam das questões ligadas às mulheres na sociedade. Além dessa discussão como elemento em comum, ambos os filmes dialogam com o espectador através do formato de filme-dispositivo. Esse tipo de filme costuma partir de uma questão formal, um dispositivo que afeta a linguagem do filme, para chegar às suas outras questões.
No caso do filme Câmara de Espelhos, de Dea Ferraz, o dispositivo consiste em reunir homens de diversas faixas etárias, estilos de vida e grupos econômicos diferentes em uma instalação de caixa preta, fechada, com espelhos nas paredes e decoração de sala de televisão. A diretora faz intervenções externas ao longo do filme, sem que os convidados vejam ou interajam com ela, que aciona vídeos na televisão da caixa preta com temáticas relacionadas às mulheres. Cenas de novelas, programas de televisão, memes da internet, entre muitos outros conteúdos midiáticos, impulsionavam a discussão sobre assuntos como o lugar da mulher na sociedade, nas relações, seu comportamento no mundo.
Em Precisamos falar do assédio, de Paula Sacchetta, o dispositivo se trata de uma van-estúdio que para por diversos lugares em São Paulo e Rio de Janeiro com o objetivo de coletar depoimentos de mulheres que foram vítimas de qualquer tipo de assédio, sejam eles físicos, psicológicos ou morais. Elas ficam sozinhas dentro da van, apenas com a câmera, sem interagir diretamente com a diretora. Caso prefiram, podem usar máscaras ou pedir para alterar a voz do depoimento. Cada máscara representa o motivo pelo qual a vítima não quer mostrar o rosto: medo, raiva, vergonha ou tristeza.
A criação de dispositivos em um filme tem como premissa filmar o que ainda não se apresenta e só se apresentará quando o dispositivo for acionado: ele é uma ativação do que já é real, apesar de ser um contexto inventado dentro da própria realidade. Como uma caixa preta em que homens podem comentar o lugar da mulher na sociedade ou uma van com uma câmera onde mulheres podem relatar assédios sofridos por elas.
Um filme tem a capacidade de intensificar as mudanças na realidade não apenas como um produto final que causa sensações particulares em cada espectador de acordo com suas próprias vivências, contextos e imaginário. Além disso, durante as gravações, existe a capacidade de desencadear sensações em quem está sendo filmado. A possível reflexão entre os homens em Câmara de Espelhos a partir das discussões na sala de espelhos é um exemplo disso. Assim como o processo catártico de cada mulher que deixou o seu depoimento em Precisamos falar do assédio.
A caixa é um recorte da sociedade com a qual lidamos diariamente em proporções bem maiores. A proposta da diretora é de uma análise de discurso da mídia que reproduz e recria um imaginário machista na sociedade, que a nível macro pode parecer imperceptível para a maioria da população consumidora dos grandes veículos de comunicação de massa. Mesmo para quem acredita estar seguindo um caminho de constante desconstrução, ao observarmos com mais atenção as nossas próprias falas, atos e mesmo trabalhos cotidianos, fica evidente que também repetimos e alimentamos à exaustão esse discurso machista.
Através desses recortes exibidos em uma tela de cinema, podemos entender a proporção dessas incoerências. Há determinado momento no filme em que uma cena de novela é exibida para que os convidados discutissem. A cena consistia em um homem e uma mulher tendo relações sexuais, enquanto um homem, que seria o marido, dá um tiro em ambos ao encontrá-los. Um dos convidados da sala, ao fim da exibição da cena, diz rapidamente e com convicção que isso é completamente normal e plausível. Esse momento demonstra a gravidade e a naturalização do feminicídio tanto na mídia quanto na abordagem cotidiana sobre o assunto.
Na van de Precisamos Falar do Assédio, notamos que as proporções que esse discurso têm e como trazem reflexos diretos e concretos na realidade das mulheres. A retro-alimentação do machismo não fica apenas na esfera das ideias, mesas de bares, discussões em comentários de portais de notícias: ela chega nos nossos corpos e psicológicos de formas muito dolorosas, deixando profundas cicatrizes. E é isso o que traz a diretora e as corajosas mulheres que compartilharam com seus fortes depoimentos no filme.
No filme, há relatos de mulheres da mais variada faixa etária. Algumas delas, já idosas, falavam pela primeira vez na vida sobre o assédio vivido. Através dessa câmera fechada em uma van, sem ninguém que as julgasse ou repreendesse ou amedrontasse, essas mulheres encontraram uma oportunidade para, de alguma forma, libertar um pouco de uma dor que não pode ser compartilhada por diversos fatores na vida cotidiana de cada uma. E esse formato do filme, além de auxiliar na catarse vinda da fala do próprio processo de abuso, causa a catarse em quem as assiste e se identifica em algum ponto com a sua fala. O filme se estende em outros desdobramentos interativos: convida a todas as mulheres que compartilhem depoimentos online em seu portal.
Outra característica inerente aos filmes-dispositivos é que eles funcionam, individualmente, em seu próprio modelo. Não há um formato específico e universal, os dispositivos são construídos diferentemente a cada obra, de forma a fazer sentido de acordo com o seu propósito enquanto filme. Mas, nesse caso, os dois filmes exibidos possuíam uma semelhança em seu dispositivo: o confinamento em locais fechados.
A leitura em cada um traz uma simbologia forte: os homens em Câmara de Espelhos, mesmo em ambiente enclausurado, estão sentados confortavelmente em sofás, com televisão, com homens ao redor, criando um senso de companheirismo. Eles falam à vontade sobre as opressões que praticam, conscientemente ou não, em clima descontraído. Mesmo que discordem entre si em alguns pontos, e ainda que falem coisas que soem absurdas, estão à vontade. Já as mulheres de Precisamos falar do assédio estão sozinhas, em um ambiente pequeno e fechado. Ainda que a intenção seja de acolhê-las, de lhes oferecer um lugar no mundo exclusivamente delas com a oportunidade de falar sobre algo que as oprime, as mulheres se sentem acuadas, envergonhadas.
A forma distinta como os homens e as mulheres se sentem perante os dispositivos é um simulacro da sociedade em que vivemos. Essas diferentes formas de lidar com o confinamento evidenciam como os lugares de fala refletem no pensar e agir dos homens, que não se sentem responsáveis pelas suas próprias agressões (sejam elas em potencial ou realizadas). E, por outro lado, a punição, culpabilização e silenciamento das vítimas estão arraigadas nas estruturas da sociedade, e demonstram o quanto o processo das mulheres que vivenciam isso é solitário.