Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

ALICE GUY-BLACHÉ: PAPÉIS DE GÊNERO E FEMINISMO NO PRIMEIRO CINEMA

A presença de mulheres atrás das câmeras no cinema ainda é insatisfatória, apesar dos pequenos avanços comemorados a cada dia. Especialmente em funções de liderança, como direção e produção executiva, e em áreas em que a predominância masculina é quase inquestionável, como direção de fotografia.

Há carência de oportunidades e pouca divulgação, distribuição e memória dos filmes feitos por mulheres ao longo dos tempos – sobretudo mulheres marginalizadas ou em contextos pós-coloniais. Fica até difícil lembrar que no início do cinema existia muita produção feminina, quando os pequenos filmes ainda eram considerados experimentos e não tinham status artístico.

No contexto do primeiro cinema produzido no final do século XIX e início do século XX, a francesa Alice Guy-Blaché é reconhecida historicamente como a primeira mulher diretora. Alguns de seus filmes traziam temáticas ainda não inteiramente superadas nos dias atuais. Tão importante quanto o tema, no cinema, o olhar lançado sobre os filmes e através dos filmes de Alice também não está em completo desuso.

alice kinora

É importante destacar que Alice se iniciou nas artes cinematográficas na época em que a discussão sobre o sufrágio feminino estava presente em muitos países ocidentais. No entanto, quando a cineasta se mudou para os Estados Unidos com o marido, o voto feminino era realidade em apenas alguns estados. E ainda assim, apenas para norte-americanas que eram consideradas cidadãs sem qualquer ressalva – a situação das pessoas negras, indígenas ou imigrantes nos EUA é comumente esquecida quando o assunto é primeira onda do feminismo.

Alice começou a fazer cinema após trabalhar como secretária em um estúdio de fotografia francês que fazia experimentos com os primeiros cinematógrafos. “A fada do repolho” (Le fée aux choux, 1896) marca o início de sua produção, que seria conhecida por tratar de assuntos ligados intimamente à vida das mulheres brancas e pequeno-burguesas de sua época.

A obra de Alice Guy-Blaché trazia temas como maternidade, trabalho doméstico e “travestismo” (ou a simples troca de papéis de gênero entre homens e mulheres, já que para ela não seria possível falar de transexualidade como o assunto é tratado atualmente). Por isso, foi rotulada ao longo da história, por olhares menos atentos, como “feminista”, já que a atenção a esses assuntos até hoje é preterida pela sociedade patriarcal ocidental, em favor de temas e olhares mais “importantes”. É lamentável notar que a simples existência dessas temáticas na tela pode fazer alguns espectadores olharem para direção contrária, até os dias de hoje.

Apesar do rótulo, Alice tinha relação ambígua com olhares feministas que estavam em desenvolvimento na sua época e não aprovava que mulheres tentassem assumir inteiramente lugares socialmente marcados como masculinos. Por acreditar em capacidades inatas aos sexos como, por exemplo, a “sensibilidade feminina”, defendia a aptidão das mulheres para o trabalho doméstico e artesanal. Curiosamente, o mesmo motivo a levou a acreditar que as mulheres seriam aptas ao trabalho cinematográfico:

Além de uma mulher se encontrar tão bem preparada para encenar dramas como um homem, ela ainda tem, sob diversas perspectivas, uma enorme vantagem sobre ele, graças à sua natureza. Muito do conhecimento necessário para narrar uma história e para conceber cenários faz absolutamente parte das competências de um membro do sexo frágil. Ela é uma autoridade em emoções.

Alice Guy Blachè¹

A reflexão da cineasta parece apenas preconceituosa e limitada nos dias de hoje, no entanto, Alice estava sugerindo que mulheres não só podiam como deviam fazer cinema, em uma época as mulheres mais privilegiadas da sociedade americana sequer podiam votar.

De fato, enquanto o cinema não tinha status artístico e era considerado apenas uma diversão barata para pessoas sem sofisticação, as mulheres tiveram papel assegurado nele, e muitas atuaram, por exemplo, como montadoras, uma atividade considerada inicialmente de segunda categoria e frequentemente associada ao artesanato. A ideia que se tinha era que montar o filme era apenas cortar e colar os pedaços, embora nos dias de hoje o primeiro cinema já seja reconhecido como um período de rica experimentação.

Com a sofisticação da linguagem cinematográfica nas décadas posteriores, as mulheres foram gradativamente perdendo espaço nessa e em outras funções, embora nunca tenham de fato se tornado ausentes.

Em “As consequências do feminismo” (Les résultats du féminisme, 1906), Alice Guy Blachè retrata uma pequena sociedade em que os papéis de gênero foram trocados e os homens são vistos em atividades antes atribuídas às mulheres: passando roupas, cuidando de bebês e até mesmo usando vestidos. As mulheres, em contraposição, usam calças, fumam, bebem, humilham seus maridos e assediam maridos alheios. Os pobres homens logo se revoltam com as injustiças e promovem uma revolução.

http://www.youtube.com/watch?v=dQ-oB6HHttU

“As consequências do feminismo” é, à primeira vista, uma crítica aos anseios dos movimentos feministas que, ao buscarem igualdade de votos com os homens, trariam consigo o medo da “troca” de papéis de gênero e um consequente desequilíbrio da sociedade. Alice denunciou, tematicamente, que o feminismo só poderia levar à supremacia feminina e à castração dos homens, o que pode ser confirmado por seu discurso ambíguo em relação às possibilidades das mulheres no mundo. Porém, a efetiva representação visual da situação acaba expondo como o comportamento masculino era tóxico, injusto, abusivo e autoritário.

Como foi dito anteriormente, os olhares sobre os filmes e através dos filmes são tão importantes quanto sua temática, e nesse sentido a pesquisadora portuguesa Ana Catarina Pereira traz algumas possibilidades de leitura das representações do filme.

Nos cerca de seis minutos de duração da curta-metragem, o homem costura, cuida dos filhos, usa vestidos e age com delicadeza, promulgando uma essência feminina ultra-romantizada. A mulher fuma, bebe e tem um comportamento sexualizado; é grande, brutal, controla o espaço em que se movimenta, toma iniciativas e provoca acções. Elementos de ambos os sexos desempenham os papéis opostos aos rigidamente atribuídos pela sociedade, o que pode ser interpretado de diferentes formas:

a) uma acusação aos movimentos feministas e à tentativa de superiorização das mulheres (o antônimo de machismo);

b) uma representação grotesca dos medos masculinos diante da possibilidade de instituição de uma estrutura matriarcal;

c) uma visão feminista que encara a própria diferenciação de gêneros como supérflua.

Ana Catarina Pereira²

Seja qual fosse a intenção real de Alice Guy-Blachè ao gravar o curta-metragem, a lembrança da obra vale a pena para quem se interessa pelas representações cinematográficas que desafiaram e até hoje provocam nosso olhar para as questões de gênero. “As consequências do feminismo” é apenas um dos filmes da diretora que trata de assuntos relativos à vida das mulheres burguesas da época, e um dos mais de 600 filmes atribuídos a ela.

É sintomático que Alice seja até hoje única mulher que foi dona de um estúdio de produção de filmes, o Estúdio Solax e, portanto, a única mulher que foi realmente detentora de meios de produção para se realizar filmes de maneira industrial. Estima-se que o Estúdio Solax tenha produzido mais de mil obras durante sua existência, várias delas perdidas em razão de incêndios, quando os filmes ainda eram feitos com materiais extremamente inflamáveis.

No primeiro cinema houve lugar para tratar de algumas questões que surgiam entre as mulheres por ocasião da primeira onda feminista, como as possibilidades que nascem da simples ideia de que mulheres poderiam assumir lugares socialmente reservados aos homens. No entanto, a consolidação do cinema narrativo clássico nos Estados Unidos dali em diante não possibilitou o surgimento de outra mulher detentora dos meios para produzir filmes, como Alice Guy-Blachè, ainda que o cinema industrial norte-americano tenha enriquecido e produzido em larga escala.

Só podemos cogitar se é coincidência ou não o fato de grande parte dessas produções lidarem com as contradições expostas pelo feminismo com narrativas punitivas para mulheres desviantes, e neutralizadoras de qualquer ameaça à ordem patriarcal. Narrativas e olhares que encontraram grande expressão no cinema hollywoodiano na primeira metade do séc. XX, e que em parte sobrevivem até os dias atuaiscom mulheres ocupando espaço como musas, objetos, apoio ou desvio narrativo para que homens possam se desenvolver – à frente e atrás das câmeras.

(1): citação presente em Internacional female film directors: their contributions to the film industry and women’s roles in society.

(2): citação presente na tese de Ana Catarina Pereira, A mulher-cinesta: da arte pela arte a uma estética da diferenciação. Algumas informações sobre Alice Guy-Blachè também foram retiradas da tese.

O ESPETÁCULO DAS APARÊNCIAS: BLING RING

Parece que Sofia Coppola tem predileção pela temática das aparências. Em seus filmes, as personagens estão sempre presos em redomas das superficialidades. Tanto em Maria Antonieta (2006) como em Um lugar qualquer (2010) os protagonistas são como prisioneiros sem se dar conta de um “mundo das aparências”. O último longa-metragem da diretora aborda o mesmo tema, no entanto, faz o caminho inverso: em Bling Ring – A gangue de Hollywood, Nick, Rebecca, Nick, Marc, Chloe e Sam fazem de tudo para entrar no universo das celebridades.

Com o roteiro inspirado em um artigo publicado na Vanity Fair, intitulado “Os suspeitos usavam Laboutin”, Bling Ring conta uma história verídica: uma gangue de adolescentes que roubava casas de grandes celebridades em Los Angeles. O roubo, no entanto, estava longe de ser justificado por necessidades econômicas, já que a todos os integrantes da gangue possuíam boas condições financeiras. Eles foram descobertos após publicarem fotos dos objetos roubados nas redes sociais. Nessa instigante história Sofia Coppola enxergou um ótimo argumento para um longa.

O filme de Coppola traz vários questionamentos ao espectador. Em termos de linguagem, Bling Ring seria uma espécie de videoclipe misturado a um reality show, o que caracteriza bem o modo de vida em Hollywood: fragmentado, vigiado e sempre acompanhado de uma trilha sonora. Em vários trechos do longa, os personagens estão dirigindo e cantando alguma música de um rapper famoso. O clima de ostentação é reiterado ao longo de toda a narrativa – chega a ser massivo e desconfortável. Talvez a intenção da diretora tenha sido a do incômodo, mas ela utiliza sempre a mesma forma (trechos de programas de tv, imagens no facebook) para contar a história e isto torna o filme um tanto repetitivo.

O narcisismo e a preocupação com a imagem são motes para o desenvolvimento do filme. Enquanto Nick e Rebecca tiram várias selfies na balada, Paris Hilton decora sua casa com almofadas estampadas com o próprio rosto. As selfies são destinadas ao Facebook dos integrantes que não temem em ser pegos. Aliás, que se vangloriam dos seus feitos, afinal, é desta forma que se tornam também celebridades.

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A lógica da ostentação poderia ser entendida segundo o termo “sociedade do espetáculo” do pensador francês Guy Debord. Apesar de estarmos em uma época diferente daquela na qual Debord cunhou o termo, ele pode ser facilmente aplicado diante dos contextos fetichistas que impregnam a sociedade do fluxo de informação e de imagens. O espetáculo é caracterizado não pela soma das imagens, mas pela relação social entre pessoas, mediada por estas imagens. Neste sentido, a noção de aparência se torna verdade para os personagens de Coppola. “O que aparece é bom; o que é bom aparece”. O espetáculo é o objetivo, e por isso é a projeção dos desejos mais absurdos destes personagens, que perdem a noção de ética, coletividade e, por que não?, da própria individualidade. Um verdadeiro paradoxo: um mundo egoico porém banal.

Personagens tão pouco desenvolvidas quanto a própria vida vazia à qual estão submersos. O longa tem um aspecto documental em que não sentimos de fato qual é a posição da diretora. Claro, existe um olhar. Talvez um olhar existencialista. É um olhar sobre vazio. Coppola optou então por falar sobre o vazio através de vários vazios. Rebecca, a líder da gangue, é um mistério – só aparece durante os roubos ou nas baladas. As meias-irmãs Nick e Sam se preparam para a filmagem de um reality show enquanto sua mãe despeja discursos sobre a filosofia de O segredo. Chloe tem relações com o corrupto dono da boate mais “bem frequentada” de Hollywood e Marc – o único personagem esférico da trama – é um amigo homossexual que encontrou nas meninas a possibilidade de ser aceito. Diante do ambiente esquizofrênico apontado por Sofia, a complexidade fica por conta do espectador, que deve tirar suas próprias conclusões.

OS MONSTROS QUE FAZEM DE NÓS: A BRUXA

Eu esqueci a suavidade porque ela não me serviu.

Catherynne M. Valente

Eu tenho falado de filmes de terror com certa frequência nos últimos meses e prometo que não é intencional, é só que é muito fácil contar histórias aterrorizantes protagonizadas por mulheres. Até pouco tempo atrás, esse protagonismo significava sermos mortas, estupradas, perseguidas e intimidadas, e, embora isso ainda aconteça, em alguns poucos e preciosos filmes, a moral se inverteu. Não somos mais aterrorizadas por nos comportarmos mal, nos comportamos mal por sermos aterrorizadas e essa inversão faz toda a diferença.

Mulheres que transgridem determinados preceitos e são castigadas por isso reforçam nossos valores, enquanto mulheres-monstros produto de uma sociedade tóxica nos fazem questioná-los. A Bruxa está, claramente, posicionada nesta segunda categoria, então, não é muito difícil entender por que, na sessão lotada em que assisti o filme, as reações – comunicadas com bastante ênfase – foram de negativas a indignadas.

Thomasin, a jovem protagonista do filme, é tratada desde o início como um tipo de mercadoria por sua família. Quando essa “mercadoria” começa a se mostrar inconveniente, seu despacho é abertamente discutido pelos pais da menina. A inconveniência que ela apresenta tem muito pouco a ver com qualquer comportamento que ela apresenta, e sim do que é projetado sobre ela. Thomasin é repetidas vezes acusada por membros da sua família pelas ações daqueles a sua volta. O pai vende uma taça de prata da mãe e deixa a culpa recair sobre a filha quando a ausência do objeto é sentida. A mãe está convencida de que ela está seduzindo o irmão, mas todas as vezes que vemos Caleb olhar para Thomasin com desejo, ela não parece estar ciente do fato. A primeira vez que acontece, ela está dormindo. Fica claro que o próprio corpo da menina, que começa a mostrar sinais de estar alcançando maturidade, é o seu maior pecado. “O inferno é uma garota adolescente”, afinal de contas.

Os problemas domésticos somados a acontecimentos sobrenaturais que acometem a família acarretam na histeria que leva as acusações contra a filha mais velha se tornarem em violência. “A Bruxa” que daria título ao filme é apresentada quase como um mau neutro, onipresente e imbatível. O espectador, consciente da inocência de Thomasin, é levado a observar os pais da menina como os verdadeiros vilões da história.

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Anya Taylor-Joy como Thomasin

Ao conversar com um amiga, depois de termos assistido a Cinco Graças, falamos brevemente sobre a cena em que uma das meninas é levada ao hospital para que seja comprovada sua virgindade. Antes que o médico a examine, ele pergunta se ela já fez sexo e ela diz que sim, com várias pessoas. Após o exame, ele questiona a mentira, ela responde com um ar cansado que beira o deboche “quando digo que sou virgem, ninguém acredita”.

Cinco Graças é um drama que se passa na Turquia contemporânea, A Bruxa, nos Estados Unidos do século XVII, mas a conclusão que as adolescentes de ambos os filmes chegam não é muito diferente: estamos condenadas de uma forma ou de outra. Chega a ser um pouco trágico que esses dois filmes – o primeiro, um drama realista, o segundo, um filme de terror sobrenatural – encontrem pontos de convergência, mas o que torna A Bruxa tão apavorante, como em qualquer bom filme de terror, é justamente o fato de sua alegoria ter raízes muito reais no mundo do espectador no momento em que ele assiste. E no caso d’A Bruxa especificamente, essas raízes estão fincadas há alguns milênios: não existe monstro mais terrível do que uma mulher. Mas essa é a visão simplista a que já fomos expostos repetidas vezes, A Bruxa vai além e diz: não existe monstro mais poderoso do que uma mulher que já nasceu condenada e se entrega à perversidade de que a acusaram desde o início.

Conte uma mentira vezes o suficiente e ela se torna realidade.

(spoilers a seguir)

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No final do filme, vemos toda família de Thomasin assassinada. A menina, ensanguentada, mas ainda inocente, toma o que parece ser sua primeira decisão autônoma. Ao assinar o livro do demônio, ela entrega sua alma e sentimos um alívio que se reflete no rosto extasiado de Thomasin em perceber que ela é, afinal, livre.

Ao sair do cinema, satisfeita, comecei a questionar as minhas próprias conclusões sobre a obra. Mas que liberdade é essa? Se, no final de tudo, ela não tinha nenhuma alternativa? Caso tivesse permanecido na casa isolada, morreria de fome antes do fim do inverno, se voltasse para o vilarejo, seria condenada pelo assassinato da família.

Que liberdade é essa em que falamos quando falamos em sexo livre nos dias de hoje, em que nossos corpos, ora, necessariamente castos, ora, necessariamente profanos, continuam a ser alvo de regras criadas por outras pessoas? De que liberdade estamos falando quando dizemos a mulheres mulçumanas que elas devem retirar seus véus para serem livres? Por que, ao invés de dizer o que uma mulher deve fazer, não perguntamos a ela como ela deseja viver?

A Bruxa, no final das contas, não é um filme sobre empoderamento feminino, mas não tenciona ser. O fato de seus diálogos terem sido retirados de documentos históricos sobre bruxaria serve de lembrete: a realidade e o terror, quando diz respeito a vivência feminina, são quase indistinguíveis e a liberdade ainda está muito, muito distante.

O QUE AS MULHERES QUEREM VER: REFLEXÕES ACERCA DE O REGRESSO NO OSCAR

Tem pipocado em meu feed do Facebook uma série de opiniões acerca do filme O Regresso, novo longa-metragem dirigido por Alejandro Gonzalez Iñárritu e favorito a levar o Oscar de Melhor Filme no próximo domingo. As impressões sobre o filme vão de encontro aos extremos, desde denúncias a respeito da charlatanice do diretor (não só neste trabalho como nos anteriores) até a elevação do filme ao status de obra-prima, neste caso com Iñárritu como gênio e Leonardo DiCaprio como ator que finalmente merece um Oscar.

A guerra de opiniões não está só no terreno “puramente” cinematográfico (ainda que eu não acredite em algo assim, há quem acredite), mas tem também contornos políticos. Não são poucas as críticas de cunho feminista, que lamentam que mais um filme de homens para homens esteja sob os holofotes. Há os caras que contrapõem que o filme não é “só isso”, não é só um filme de machos, peraí, o filme é profundo, tem uma história de sobrevivência, espiritualidade, vingança, amor, é realizado com maestria e tem fotografia belíssima, não dá pra reduzi-lo dessa forma, não é? Só porque tem um protagonista homem? E por aí vai.

Obviamente, não há consenso sobre que aspecto é, na realidade, mais importante em um filme e o que deveria ser levado em conta para que ele seja digno de participar de premiações. Não vou me deter muito em minhas opiniões sobre o filme. Proponho que pensemos sobre o que, afinal, queremos ver no cinema atualmente e como as opiniões das mulheres podem ou não transformar a atmosfera cinematográfica.

O Regresso me parece um filme ok. Bons atores, bem filmado, interessante em alguns momentos, forçado em outros, tem pretensões espirituais que hora se encaixam (como a relação totêmica que se desenvolve entre Glass e a ursa), ora expõem todos os pontos fracos do filme – o que dizer da esposa e do filho do cara, que são retratados tão idilicamente quanto desprovidos de qualquer personalidade? Aliás, foi em uma conversa sobre isso com meu companheiro que surgiu a ideia de escrever esse texto. Trocávamos nossas impressões sobre o filme, ele gostou bastante, eu saí do cinema com sentimentos mistos, e disse a ele que não me agradou a forma como as mulheres foram representadas, com o agravante de que eram mulheres indígenas. Não estou falando apenas da mulher arikara que surge para ser estuprada e ajudar o herói no final. Quando falamos sobre isso com um amigo, esse ponto já surgiu como óbvio: “ah, sim, a única mulher do filme aparece pra ser estuprada, chato mesmo, mas de resto o filme é sensacional”. Eu não estava pensando somente nela, e sim na indígena que se relacionou com Hugh Glass (Leonardo diCaprio) e que surgia na história às vezes como mentora – ensinou a ele os segredos da floresta que permitiram sua sobrevivência –, às vezes como elemento de humanização do protagonista. Personagens femininas feitas para serem torturadas ou para dizer algo sobre/para o personagem masculino. Nada de novo sob o sol, não é mesmo?

“Mas o que mais vocês queriam do filme? A história é sobre o Glass. Realmente, não é sobre as mulheres. É sobre brutalidade, sobrevivência, espiritualidade – do Glass –, é sobre a floresta e seus segredos, sobre a grandiosidade da natureza, é até sobre a sabedoria indígena.” (ainda que essa sabedoria pertença mais ao protagonista branco do que aos indígenas, não é? Impossível não abrir esse parênteses)

De início, conversando com meu companheiro, ele me disse que não havia visto esses problemas relacionados à representação das mulheres, talvez porque isso não se manifeste com força para ele, como homem. E comentou que antes de ver o filme já havia visto mulheres dizendo coisas como: “O Regresso, filme de machos para machos”. No início, achou que isso reduzia o filme. Depois de conversarmos, disse que os homens deveriam começar a aceitar que pode haver filmes sobre homens que as mulheres simplesmente não querem mais ver. E que os cineastas deveriam estar prestando atenção nisso.

Bem, isso décadas depois das primeiras críticas feministas a respeito do cinema.

Significa que todas as mulheres odiaram e são incapazes de gostar de O Regresso? É claro que não. Mas há um certo olhar, que vem caindo sobre os filmes com cada vez mais força e que, espero, tende a se espalhar. Mais presente em meios intelectuais e diretamente interessados na produção cinematográfica, mas não só. É o olhar que avisa: já vimos esses filmes antes. Homens brutalizados e brutalizando tudo ao seu redor – inclusive mulheres? Já os vimos tantas vezes que perdemos a conta. “Ah, mas o longa não é só isso”. Pois bem. Também já vimos virtuosismos cinematográficos, realizações megalomaníacas e efeitos especiais caríssimos que servem ao propósito criar mundos e mundos de fantasia… além de manter todas essas narrativas naturalizadas.

Já cansei de me perguntar como raios Hollywood consegue criar qualquer tipo de monstro, paisagem, universo, movimentos loucos de câmera, viagens intergalácticas, realidades que se diluem, mas não consegue criar personagens femininas minimamente decentes, histórias sinceras sobre mulheres sinceras ou até mesmo histórias sobre homens que não consistam em usar mulheres. Isso porque não estou entrando profundamente no terreno movediço, complexo e dez vezes mais fundo, que é a representação de pessoas pretas, indígenas e asiáticas por esses filmes. Sobre isso, proponho refletir sobre como qualquer personagem criado com computação gráfica muitas vezes ganha mais espaço e fluidez de sentimentos que um outro personagem que não seja branco.

Vi alguns homens ofendidos com o fato de que há mulheres se recusando a dar buzz a O Regresso por ser um filme de homens/sobre homens/para homens. Esse tal feminismo já está indo tão longe que impede as pessoas de ver a verdadeira arte por trás do… ? Do que mesmo? E quem é que disse que é um filme para homens, afinal? Por que vocês mulheres não podem simplesmente curtir e ver a essência do filme?

Eu devolvo a pergunta: por que os homens têm tanta resistência a ver histórias sobre mulheres? Vou retomar outro filme de sucesso deste ano que passou: Mad Max – A Estrada da Fúria. Sem deixar de lado qualquer crítica bem fundamentada que seja feita em relação à falta de diversidade étnico-racial do filme (elas cabem, sim), Mad Max tinha uma co-protagonista feminina, a Imperator Furiosa. Tinha também todo tipo de malabarismo técnico, virtuosismos e megalomanias que fazem do longa o que ele é, aquela espiral vertiginosa e absurda. Mas parece que o fato de ter uma protagonista forte e feminina impediu muitos caras de ver a arte por trás do filme. Curioso, não é?

Vamos mais fundo. Por que tantos homens têm resistência a ver qualquer coisa feita por mulheres? Filmes feitos por mulheres, falando do lugar de onde as mulheres estão, do que elas sofrem, do que são feitas, suas diversas realidades? Sendo a indústria do cinema majoritariamente produzida e controlada por homens, esses filmes muitas vezes sequer chegam às salas de cinema, que dirá às premiações. Vou dar uma de Spike Lee, que perguntou como as pessoas brancas não têm vergonha de só estar entre elas mesmas. Como é que os homens não têm vergonha de só estar entre eles? De só falarem de si, para si, de só se premiarem entre si? Como os homens, que boicotam as mulheres de toda e qualquer forma, se sentem no direito de dizer que mulheres feministas não podem detestar esses filmes?

A maioria das mulheres que conheço admira muitos homens. Citariam vários deles, têm eles como referência. Eu tenho homens como referência. A maioria dos caras que conheço, no entanto, tem poucas ou nenhuma mulher como referência nos filmes e na vida artística. Sequer se importam se existem mulheres ou não nos espaços. Não pensam sobre as representações das mulheres e nem sentem que precisam, tamanho o privilégio. Porém, há um olhar que vem caindo sobre o cinema, não é novo, mas vem se alastrando. Para não dizer que é só no Facebook e na Internet: esses dias minha tia comentou comigo que tinha preguiça de assistir Boyhood. Prontamente, me preparei para defender o filme, pois gosto muito, até que ela disse: “não quero ver esse filme, é só a história do menino. Por que não é a história da menina?

É verdade, por que não é?

Lembrei-me do Oscar do ano passado. Os dois filmes favoritos ao prêmio de Melhor Filme eram Boyhood, de Richard Linklater, e Birdman, coincidentemente ou não, do mesmo Iñárritu de O Regresso. Li e participei de infinitas discussões a respeito dos dois filmes, de suas linguagens, das reflexões que suscitavam, sobre qual dos dois seria uma obra de arte e quais de seus métodos eram os mais interessantes. Quais atores seriam os mais talentosos, e qual dos diretores teria sido mais ousado? Plano-sequência vs doze anos de filmagens. O que seria mais genial?

E quando a cerimônia aconteceu, enquanto todos aqueles prêmios eram distribuídos para homens, por histórias sobre homens, todos aqueles sorrisos trocados entre homens, pairavam perguntas no ar, como névoa. O olhar que está recaindo sobre os filmes e que não vai mais voltar atrás.

“Já vimos esses filmes antes.”

“Não queremos mais ver esses filmes.”

“Não quero ver esse filme, é só a história do menino. Por que não é a história da menina?”

“Personagens femininas feitas para serem torturadas ou para dizer algo sobre/para o personagem masculino. Nada de novo sob o sol, não é mesmo?”

Atenção, cineastas: pode haver filmes sobre homens que as mulheres simplesmente não querem mais ver.

SOBRE MULHERES QUE USAM XADORES COMO CAPAS: A GIRL WALKS HOME ALONE AT NIGHT

Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.

A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.

A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.

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Sheila Vand como A Garota.

O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.

Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.

Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.

Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.