Assistir aos filmes, desenvolver o olhar
Peguei-me refletindo no que mais pode ser dito sobre Café com Canela, longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa que estreou há pouco em algumas capitais brasileiras, depois do costumeiro percurso em festivais. Já li toda sorte de elogio, de enquadramento – a maioria merecidos –, debates despertados. Meu texto talvez se fragmente então entre a descrição da minha experiência como espectadora negra, alguns conceitos que me vêm quando penso nisso tudo, e algumas cutucadas atiradas livremente.
Assisti ao filme pela primeira vez no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado (2017) e me lembro dos suspiros finais, das risadas com Cidão, uma das personagens, senti no rosto algumas lágrimas, mas a impressão final foi de confusão. Não consegui montar com exatidão um mapa da minha apreciação.
“Gostei, mas…” e aí? Ver tantos filmes ao longo de vários dias e encontrar amigas e amigos logo após a sessão com inquisitivos “achou bom?” põe a mente numa disposição que nem sempre privilegia a fruição. E aliás, quem é que está no festival para fruir? Tanto quanto está estampado nos rostos presentes o amor pelo cinema, estão também as tensões todas, políticas, de representação, de espaço, as disputas. Pelo menos no Festival de Brasília, que acompanho há anos, tem sido assim, cada vez mais. De modo ambíguo e um tanto triste, quase sinto falta de quando ignorava todos os discursos que atravessavam as sessões, de quando era só uma estudante de ensino médio que ia ao festival para descobrir filmes que sabia que não seriam exibidos na televisão. Era uma chance e eu aproveitava ao máximo, muitas vezes sem saber se haveria ônibus para voltar para casa.
Mas eu disse quase. Porque se outros conflitos – ainda que até então apenas internos – não me atravessassem, talvez não estivesse aqui, escrevendo sobre cinema, tentando participar (com alguma discrição) dos debates atuais. Foram anos e anos desafiando os filmes com o olhar, tentando entender porque as ausências tornavam as presenças mais fracas e menos saborosas. Daí: universidade, faculdade de cinema, bell hooks, olhar para si, testar-se cineasta, fazer cinema, fazer cinema negro e feminista, perguntar-se que é afinal cinema negro. De lá pra cá a fruição muitas vezes ficou em segundo plano, em função do olhar oposicional e do cultivo crítico. Ainda amo cinema? É claro que sim, ou não despenderia tanto esforço.
Em 1992, bell hooks publicou Black Looks: Race and Representation e daí vem um de seus mais famosos ensaios, O Olhar Oposicional: Espectadoras Negras (1). Entre as tantas contribuições maravilhosas desse texto, bell hooks explica o olhar oposicional, o olhar crítico e aplicado das mulheres negras sobre o cinema, um olhar outro que não o da identificação, da objetificação, do voyerismo, ou tudo que a teoria feminista queria descortinar, mas que não nos abrangia por completo. Mais que um conceito a ser aplicado de maneira automatizada (como aliás vem sendo ultimamente na academia), é claro para mim como o olhar oposicional descreve o estado mental que muitas mulheres negras aprenderam a cultivar para simplesmente estar nas salas de cinema, ver e assistir tantos filmes em que nossa ausência declarada em imagem e discurso poderia ter sido, anos após anos, uma completa mensagem de desistência.
Que mulheres negras não tenhamos desistido do cinema – após décadas do mais absoluto desprezo por nós – é o atestado empírico do que dizia bell hooks. Há algum poder no olhar, por menor que seja, e nos apegamos a ele com muita força, sem nem saber bem para onde nos poderia levar. Aguardamos, eventualmente chegamos a pequenas ilhas, lugares maravilhosos, como Café com Canela. E treinada, habituada ao olhar oposicional, crítico, construtivo, na companhia de colegas que fazem o mesmo, como é num festival de cinema, nem sempre consigo habitar com plenitude a ilha de um cinema tão raro para mim.
Café com Canela, a travessia
Rara também é esta experiência dúbia, então. De um lado, o olhar oposicional, que me permitiu possuir o cinema sem ser por ele possuída, de maneira que pudesse me encantar com o que está na tela, mesmo com a plena consciência do quase institucionalizado desprezo por imagens negras, e imagens negras femininas ainda mais. Com esse olhar assisti Café com Canela no festival, deixei-me atravessar por algumas emoções de maneira organizada, quis pescar referências, analisar linguagem, chegar a um veredicto, acompanhar esse importante momento político, uau, um filme desses, co-dirigido por uma mulher negra, não só selecionado como vencedor do prêmio do júri popular. Mas não me deixei possuir e nem me dei conta que podia.
Do outro lado, o que experimentei ao rever o filme na sala de cinema, eu e a tela, sem a pressão do veredicto, sem precisar me opor. Nos primeiros minutos de exibição, ainda nas cenas em que Margarida assiste a vídeo de aniversário do filho morto, escutei as risadas, vi a bicicleta, era meu aniversário. O tio dorminhoco que sequer segura o copo, talvez bebum, talvez cansado depois do trabalho, era meu tio. Margarida não parece minha mãe, mas de alguma forma é minha parente. Talvez uma tia-avó risonha que tenho. Risonha mas sofrida. O bolo do flamengo, a cervejinha, meu pai. Coxinha, bombom, rosa, toda sorte de alimento também para a memória.
Fui entrando, me acomodando. Foi fácil. A tristeza não trouxe desconforto. O filho morto são as duas filhas da minha avó, que tão cedo também morreram. Cidão é uma tia-avó minha que é uma figura. Ivan não é meu parente, mas é uma mistura de vários amigos, inteligentes, doces, engraçados, gays. Margarida e Violeta são tantas, e ao mesmo tempo são linguagem. Violeta é o próprio espírito do filme, o corpo/imagem pelo qual passaram depressão, renascimento, fome, nutrição, o jogo de equilíbrio que se fez veículo para a travessia espiritual em vida de Margarida.
E que promoveu também a minha travessia por onde nem sei, ali no escuro do cinema, diante de tão pungente representação daquelas experiências. Morte, impermanência, busca por sentido que não se encerra enquanto há vida, estava tudo ali. Ao final do filme, estava em lágrimas, pensei em tantas coisas sem nem saber que estava em ebulição. Senti que passara por uma sessão de fruição, pura e simples, guardei a oposição no bolso, não precisei me opor.
Política, enfim
Café com Canela é um filme fácil, e isso não é pejorativo. É facilmente reconhecível no cinema que se propõe a fazer, algo pelo qual estamos sempre aguardando, havia lugar para aqueles sons & imagens no meu eu espectador, certamente no de muitas pessoas, negras ou não. Se para mim a maior facilidade/felicidade residiu na fruição, para outros infelizmente talvez possa residir no encaixotamento. “É um retrato negro” seguido de vários bonitos adjetivos soa como reconhecimento, mas há um burburinho que denuncia certa condescendência.
É triste, a condescendência. Muitas vezes denuncia que aquele espaço está sendo aberto à força, digamos, duma voluntária aceitação do material artístico por valores outros que não o da arte. Ainda que as discussões internas já tenham superado essa falsa dicotomia arte/política (superaram?) é fato que existe um público que quer se emocionar, fruir, e espera, até mesmo sem saber, poder guardar no bolso qualquer nível de olhar oposicional que possam ter cultivado para não precisar abrir mão de gostar de cinema.
Se Café com Canela é um “bonito retrato negro”, talvez seja porque negra também é a vida, negra também é a arte, negros são também os espectadores. Isso é apenas um lembrete. Vale se esforçar mais nas definições, na descoberta do próprio olhar resistente que a crítica branca muitas vezes não sabe que tem, mas tem. Nesse caso, o olhar que não procura as profundezas da condição humana em narrativas negras. É um olhar que se imagina num lugar em que pode ditar o coeficiente artístico de uma obra, porque entende a função da arte e olha (de cima) para os filmes de pessoas negras/sobre pessoas negras como ainda carente, ainda por ser.
É o olhar que foge à sensibilidade – sensibilidade, não certeza – de que “o objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar a alma”, como disse Tarkovsky (2), e que ao cinema feito por/com/sobre pessoas negras não falta nada além de espaço, respiro, tempo e alimento para se desenvolver sempre e mais como cultivo da alma que é, e será. Se resta dúvida, sugiro assistir Café com Canela de novo. E de novo.
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Para pensar sobre os rumos e possibilidades do cinema negro no Brasil atual, sugiro dois textos que alimentaram minhas reflexões e que possuem a virtude de expandir questões em vez de encaixotá-las. São eles: O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018, de Heitor Augusto, e a resposta de Juliano Gomes, Carta ao Heitor (ou Desculpe a bagunça ou Ao mesmo tempo).
(1): Uso o termo olhar oposicional presente na tradução do texto de Raquel D’Euboux Couto Nunes para o livro Traduções da Cultura (org. Izabel Brandão). Na tradução de Maria Carolina Morais, disponível no blog Fora de Quadro (de Carol Almeida), o termo usado é olhar opositivo.
(2): reflexão presente em Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovsky, no capítulo “Arte: Anseio pelo ideal”.
Podemos pensar a dramaturgia de Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert, a partir de duas chaves iniciais de aproximação: a primeira é ter uma trama livremente inspirada no caso Pedrinho – o bebê raptado em uma maternidade em Brasília, em 1986; a segunda é a construção identitária do protagonista – o adolescente de 17 anos, Pierre/Felipe (Naomi Nero).
Apesar de tomar como ponto de partida um evento real, o longa não pretende se vincular a uma tradição de gênero “inspirado em fatos reais” – tanto que há uma recusa do uso de qualquer cartela explicativa/informativa sobre o caso Pedrinho. O real aqui não é apreendido como um tour de force, mas como motivador de narrativas possíveis, que inclusive jamais se deixam seduzir pela espetacularização dos pormenores do caso.
No entanto, seguindo o mesmo procedimento de Que Horas Ela Volta?, parece ainda ser inevitável à Muylaert – e, em alguma medida, até escorregadia – a tendência em reforçar o estereótipo do modo de vida da classe média. Isso é feito a partir de componentes cômicos, como a sequência da reunião com a família para tirar um selfie ou a cena em que pais biológicos sugerem uma viagem à Disney.
O filme ganha outros matizes quando se detém no protagonista Pierre/Felipe: um jovem de gênero fluido, que está experimentando as diferentes possibilidades de vivência da sexualidade, durante sua formação na adolescência. De certa forma, ele se assemelha à protagonista de Tomboy (2011), da cineasta francesa Céline Sciamma, que ganhou o prêmio Teddy há cinco anos, em Berlim, tal como Mãe Só Há Uma conquistou em 2016. Os dois filmes não só tratam do gênero pelo viés da performatividade, como também reposicionam a temática dentro do universo da infância e da adolescência, que são intransponíveis ao mundo adulto.
Em Tomboy, Laure é uma menina de 10 anos, que se apresenta como Michael para um grupo de amigos vizinhos. Ela se veste como garoto e procura se adequar aos códigos de comportamento que são esperados socialmente de um menino. Em Mãe Só Há Uma, Pierre/Felipe também vai subvertendo aos poucos os códigos que lhe são imputados: ele passa a usar vestido, batom vermelho, calcinha com cinta liga. Em ambos os filmes não há posicionamentos fechados em relação à sexualidade dos dois personagens, mas uma abertura aos cruzamentos performativos entre gêneros.
Afetada por um corpo em formação, em estado transitório, a câmera de Mãe Só Há Uma quase tateia a pele de Pierre/Felipe. Em especial nos momentos em que ele se observa diante do espelho e nas cenas em que ele se sente mais livre, nas festas noturnas ou nos ensaios com sua banda de rock.
É fundamental a mudança de operação estética da imagem, orquestrada pela fotógrafa uruguaia Barbara Alvarez. Ela se arriscou mais aqui pela fluidez formal do que no longa anterior de Muylaert, Que Horas Ela Volta?, filme enrijecido pelo rigor da composição do quadro, capaz de sublinhar as relações de poder no ambiente de trabalho da empregada doméstica Val (Regina Casé).
Apesar das motivações serem completamente distintas, é possível encontrar ressonâncias entre Pierre/Felipe, de Mãe Só Há Uma, e a Jéssica (Camila Márdila), de Que Horas Ela Volta?, na medida em que ambos os personagens desestabilizam a ordem de uma cena constituída de onde eles não pertencem. No caso de Pierre/Felipe, a casa dos pais biológicos, que insistem no bom comportamento do jovem como o filho ideal, principalmente o pai conservador Matheus (Matheus Nachtergaele). No caso de Jéssica, a casa dos patrões de sua mãe empregada, com todas as regras tácitas de uma vida burguesa.
Ao longo da narrativa, o filme nos entrega um segundo protagonista: o irmão biológico caçula Joca (Daniel Botelho), que enfrenta conflitos amorosos na sua pré-adolescência e demonstra certo desconforto com o comportamento de sua família tradicional. Se de início existe uma distância natural entre Pierre/Felipe e Joca, os dois irão se aproximar por essa sensação de deslocamento. A direção de Muylaert tem a perspicácia de não anunciar isso logo de imediato, de ir compondo aos poucos, dando grandeza a um personagem que até então parecia ser secundário.
Outra estratégia importante da direção é ter dado a uma só atriz (Dani Nefussi) o papel das duas mães: Aracy, a mãe que criou, e Glória, a mãe biológica. Ainda que o espectador não perceba (até porque a excelente caracterização das personagens procura deixá-las bem distintas), é algo que redimensiona literal e psicanaliticamente o título para além do ditado popular de que “mãe só há uma”. Estamos novamente diante de um filme de/sobre mãe, mas agora acalentado pela perspectiva de um filho que se descobre, ao mesmo tempo em que conhece seu próprio mundo.