O Irã talvez seja um dos países mais surpreendentes em termos de produção audiovisual. Desde o final da década de 60, quando o cinema iraniano ingressou em sua primeira onda de renovação, os realizadores iranianos têm se destacado por sua linguagem poética e seu olhar contemplativo. A surpresa, entretanto, não está no fato de se tratar de um país mulçumano de terceiro mundo produzindo obras de qualidade artística e estética, mas por essa qualidade ter se desenvolvido e amadurecido sob um regime ditatorial e religioso. Para o aclamado diretor Mohsen Makhmalbaf, esses dois fatos, embora aparentemente contraditórios, têm uma relação causal.
Segundo Makhmalbaf, “o motivo por trás da renovação do cinema iraniano – um dos mais importantes – foi a proibição de filmes de Hollywood. Essa foi a única coisa positiva da censura no Irã. O resto do tempo, ela só causou estrago. Eles não os deveriam ter banido completamente, apenas criado cotas nacionais. Por que ficar de braços cruzados? E a nossa voz? O que é esse monólogo? Por que 90% dos cinemas estão nas mãos de Hollywood? Outros países não têm pensadores ou imagens? Sonhos, tristezas? Por que alguns países não têm realizadores? Por que apenas um país deveria sonhar por nós e impor seu modo de vida?”
O que significa, então, fazer cinema em um país em que quase todas as salas são reservadas para a produção nacional, mas cuja censura limitava as liberdades artísticas de seus realizadores? Bom, primeiro, significava que, com algum incentivo financeiro por parte do governo, uma nova e prolífica geração de cineastas começaria a surgir. Segundo, que esses artistas deveriam encontrar temas que não afrontassem – ou, ao menos, não aparentassem afrontar – os preceitos do governo ditatorial. Assim como os músicos brasileiros durante a ditadura militar, os cineastas iranianos encontraram na censura um desafio criativo que não os impediu de produzir uma obra rica e fascinante.
É nesse contexto que o diretor Abbas Kiarostami se tornaria um dos maiores e mais influentes realizadores do país e, eventualmente, do mundo. Além de seus filmes apresentarem as características mais marcantes do cinema iraniano como o uso de alegorias, protagonismo infantil, e uma estética documental e realista, Kiarostami desenvolveu um estilo próprio.
Podemos notar ao longo de sua filmografia um forte interesse por explorar a distância entre a realidade e a ficção ao tratar do tema em si, como em Close-up (1990), e por utilizar com enorme frequência não-atores em seus filmes. Essa reflexão sobre os limites do real e do fictício não deixam de ser também uma reflexão sobre o cinema em si. Como Godard e outros diretores da Nouvelle Vague, Kiarostami por vezes denuncia para o público o fato de que estamos vendo um filme. Isso acontece até mesmo – ou, talvez, especialmente – em momentos em que as emoções estão elevadas.
Em Gosto de Cereja (1997), sr. Badii (Homayoun Ershadi) tem três conversas dentro de seu carro tentando convencer diferentes pessoas a ajudá-lo a se suicidar. Ao final do filme, depois que Badii deita em sua cova esperando a morte, o filme termina com um plano da equipe de Kiarostami rodando o filme. Em Cópia Fiel (2010), um homem (William Shimmel) e uma mulher (Juliette Binoche) se conhecem numa cidade italiana e discutem a autenticidade de obras de arte e a originalidade da cópia. Em determinado momento, uma senhora se confunde ao pensar que os dois são casados, e a partir daí eles são de fato um casal. Ficamos sem saber se aquele era apenas um jogo de um marido e uma mulher tentando reavivar um casamento ou de dois estranhos ensaiando uma intimidade inexistente. Tanto o que é real quanto o que é fabricado se confundem e os sentimentos evocados por ambos não são mais ou menos verdadeiros.
Um episódio interessante ilustra a sensibilidade de Kiarostami não necessariamente para a realidade, mas para o que há de genuíno nas pessoas: um dia, parado em um semáforo em uma rua de Teerã, Kiarostami viu Homayoun Ershadi em outro carro e percebeu que ele deveria representar o sr. Badii em seu próximo filme, Gosto de Cereja. Ershadi, que até então nunca havia atuado, concordou em fazer parte do filme e tempos depois revelou que ele estivera, de fato, considerando o suicídio quando conheceu o diretor.
Gosto de Cereja e Cópia Fiel apresentam outra característica marcante da filmografia de Kiarostami: longos diálogos dentro de carros em movimento. O carro é um espaço híbrido, privado e público, interno e externo. Ele possibilita conversas íntimas, mas não que as pessoas se olhem nos olhos. Em 10 (2002), vemos uma das experiências mais ambiciosas do cineasta. Uma mulher tem dez conversas dentro do carro enquanto dirige por Teerã, entre seus interlocutores/passageiros temos seu filho, sua irmã, uma prostituta e uma senhora.
Além de tecnicamente radical (o filme se passa inteiramente dentro do veículo e o diretor deixava os atores sozinhos no carro durante as filmagens), ele apresenta um comentário ácido sobre a posição da mulher na sociedade iraniana. A misoginia no discurso do filho da protagonista é claramente um eco das palavras do pai menino, que por sua vez reproduz o machismo enraizado na cultura do país. Mais importante que apontar a misoginia, entretanto, a preocupação do filme em apresentar diferentes mulheres – divorciadas, jovens, velhas, melancólicas – em um espaço público/privado, interno/externo, íntimo/distante é por si só um desafio às estruturas sociais.
Alguns anos depois de 10, Kiarostami exploraria novamente o feminino em um lugar híbrido. Shirin (2008) é o filme com mais atrizes profissionais e com a trama mais tradicional do diretor. Trata-se de uma história que remonta ao século VII e que originou um famoso poema persa intitulado Khosrow e Shirin, sobre o romance entre a rainha armênia Shirin e o rei iraniano Khosrow. A surpresa, contudo, não está no enredo do filme nem no fato de Kiarostami não ter optado como de costume por amadores. O inesperado é que, ao longo de uma hora e meia, podemos apenas ouvir a história de Shirin enquanto vemos mais de cem atrizes assistirem ao filme em uma sala de cinema. Mais que espectadores, nós somos voyeurs da emoção dessas mulheres que se encontram vulneráveis ao nosso olhar, é a partir das expressões de seus rostos que a história que escutamos ganha dimensão.
Outros experimentos nesse sentido – o estudo da espectatorialidade – foram feitos antes, como em Janela Indiscreta (1954) de Hitchcock, onde vemos o protagonista ser testemunha de um possível crime enquanto se encontra imobilizado, e em Viver a Vida (1962) de Godard, onde assistimos ao rosto coberto de lágrimas de Anna Karina espelhando o da Joana D’Arc da tela do cinema. Ambos esses filmes falam de uma curiosidade e, ao meu ver, de um verdadeiro amor pelo cinema, que eu percebo também em Shirin.
A morte de Abbas Kiarostami no começo de julho não veio exatamente como choque – sabia-se que ele enfrentava um câncer – mas isso não serviu de alívio ou conforto. Seu dois últimos filmes, Cópia Fiel e Um Alguém Apaixonado, foram gravados longe de casa e o último numa língua que ele sequer entendia. Mas os sentimentos, o que há de sincero no mundo, o que Kiarostami insiste em explorar, não se limita a uma única cultura ou língua. As questões que ele trouxe ao longo da sua carreira para a tela ainda estão lá. Sua delicadeza, sua poesia, elas ainda estão lá.
Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.
A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.
A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.
O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.
Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.
Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.
Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.