Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

5 JOVENS DIRETORAS NEGRAS DO CINEMA BRASILEIRO QUE VOCÊ DEVE CONHECER

O cinema é, além de uma forma de arte, uma ferramenta social e política. Ele pode ser uma ferramenta de opressão, de manutenção do status quo, mas também pode oferecer o contrário, resistência. Se a maior frequência de mulheres por trás da câmera é sinal de mudança, a presença de mulheres negras na cadeira de diretora é revolucionária.

Ao entrar nesse assunto, é impossível deixar de citar a primeira diretora negra a filmar um longa-metragem no Brasil, a cineasta Adélia Sampaio. Nos anos 70 e 80, Sampaio participou de diversas produções audiovisuais, dirigiu curtas-metragem, escreveu e co-dirigiu o documentário AI 5 – O Dia Que Não Existiu. Além disso, seu longa-metragem de ficção, Amor Maldito, foi o primeiro filme brasileiro com foco em um relacionamento lésbico. A narrativa do filme passa por questões de lesbofobia, saúde mental feminina, padrões de beleza — temas ainda hoje importantíssimos, ainda hoje negligenciados.

Desde então, a participação de mulheres negras que fazem cinema cresceu. Segundo a pesquisadora e curadora Janaína Oliveira, o cinema negro no Brasil atualmente é protagonizado por mulheres. Entretanto, resta ainda um longo caminho a ser percorrido: uma pesquisa que cobriu os longa-metragem brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2014 não apresentou nenhuma roteirista ou diretora negra. Os resultados da pesquisa sugerem que os filmes de maior orçamento seguem sendo realizados em sua maioria por homens brancos, o que nos lembra outro texto publicado aqui: Pague às mulheres [especialmente as mulheres negras e indígenas] o que elas precisam para construir a cultura.

Compilamos aqui uma breve lista com alguns nomes de jovens cineastas negras que reaparecem e têm se destacado pelos seus trabalhos audiovisuais e movimentado o cinema brasileiro contemporâneo acerca de suas questões. Elas têm curtas prestigiados na bagagem e estão sempre presentes nas mesas de debates, discussões, festivais. Muitas delas têm trajetórias e iniciativas artísticas para além do cinema. Esperamos que em breve tenhamos a oportunidade de assistir seus primeiros longas-metragens.

 

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Quantos Fulanos, quantos beltranos, quantos ciclanos estão na massa de uma multidão cotidiana contemporânea e que tem histórias de resistências e sobrevivências que não são reveladas?

A cineasta baiana Larissa Fulana de Tal homenageia já em seu nome artístico as pessoas comuns cujas histórias cotidianas se perdem no anonimato. Sua identidade e seu trabalho se misturam e se tornam afirmação. Mulher. Negra. Cineasta. Antes de dirigir seu primeiro filme, lhe perguntaram ‘você é cineasta sem filme?’ e ela percebeu sua insegurança: É possível fazer filmes quando se é negro? Viu a necessidade de ocupar os espaços ainda limitados, fundou o coletivo Tela Preta, dirigiu videoclipes e curtas-metragens. Em seu filme Lápis de Cor, falou de infância e pele, o cotidiano na criança negra, o que é, afinal, essa tal “cor de pele” na caixa de lápis de cor.

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O bairro em que moro (Getúlio Vargas, popularmente conhecido por “Caixa D’água”) tem poéticas particulares, eu sou composta dessa poética, sou resultado de seus atravessamentos mais agudos.

Nascida na Bahia e criada em Sergipe, Everlane Moraes carrega para o cinema sua formação em artes visuais em criações que discutem o cotidiano de uma forma existencial e social. Ela encontrou no documentário a possibilidade explorar perspectivas plurais e percebeu a tendência para abrir espaços de discussão e gerar debate. Realizou filmes em diversas funções, trabalhou com programas de TV e programas educativos e foi premiada em diversos festivais brasileiros por seus documentários autorais. Em 2015, foi selecionada no concorrido processo seletivo para o curso regular da Escuela Internacional de Cine y TV em Cuba, onde estuda o gênero documental.

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O cinema negro é transformado e transforma a cada contexto em que está inserido.

No curta-metragem O Dia de Jerusa, a também baiana Viviane Ferreira falou da solidão da mulher negra. Em um texto para o portal Geledés ela afirma: “uma representação justa das mulheres negras no cinema brasileiro depende do fortalecimento do pacto de sororidade entre as mulheres negras que fazem cinema”. Para Ferreira, produzir sozinha não basta. É necessário trazer outros negros, especialmente mulheres negras, para o cinema. Ela fundou sua própria empresa que tem como objetivo “realizar conexões entre as várias culturas”. Dividida em três núcleos, a Odun Filmes, Odun Formação e Odun Produção, a empresa produz filmes, projetos artístico-culturais ligados à música, ao teatro e às artes visuais e elabora conteúdos e metodologias pedagógicas para o ensino da arte e da cultura. Seu envolvimento com o cinema vai além da produção, abrangendo também a ideia de transmitir conhecimento para formar novos cineastas e a difusão do cinema feito por negros e negras.

Descobri que retratar toda pessoa negra em um lugar de opressão é enfraquecedor, deprimente e não combina comigo.

A cineasta Sabrina Fidalgo teve uma infância privilegiada: seus pais foram figuras emblemáticas do Movimento Negro e, além de ativistas, também artistas bem sucedidos no exercício de relacionar estética e política. Eles lhe deram a consciência e orgulho das suas origens africanas desde o início de sua vida. Sua filmografia vai do documentário à ficção científica afrofuturista, exibidos em festivais nacionais e internacionais. Recentemente, seu novo curta-metragem Rainha recebeu o prêmio de melhor filme pelo júri popular do Curta Cinema, um dos mais tradicionais festivais de curtas do Brasil.

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Precisamos criar um outro imaginário sobre o negro no Brasil. O cinema e a TV têm papel fundamental nisso.

O filme KBELA mal completou seu primeiro aniversário e já é um clássico. Lotou os quase 600 lugares da sala de cinema do clássico Cine Odeon por diversos dias seguidos, foi exibido em inúmeros festivais nacionais e premiado, levou a diretora a diferentes países para contar a sua história. O filme é uma experiência audiovisual experimental sobre “ser mulher e tornar-se negra”. Yasmin Thayná não pára. Esse ano já estreou o curta-metragem Batalhas, sobre a arte do passinho no Rio de Janeiro. Além disso, pesquisa sobre cinema negro e, percebendo a demanda e necessidade, criou o AFROFLIX, uma plataforma online que torna disponível o trabalho de cineastas negros. Thayná não está satisfeita em apenas fazer cinema, ela vê esse fazer como uma forma de pensar raça, gênero, arte, literatura, fazer conexões, gerar acesso, construir pontes.


Esta lista foi elaborada de forma colaborativa por Amanda D. e Glênis Cardoso.

ALICE GUY-BLACHÉ: PAPÉIS DE GÊNERO E FEMINISMO NO PRIMEIRO CINEMA

A presença de mulheres atrás das câmeras no cinema ainda é insatisfatória, apesar dos pequenos avanços comemorados a cada dia. Especialmente em funções de liderança, como direção e produção executiva, e em áreas em que a predominância masculina é quase inquestionável, como direção de fotografia.

Há carência de oportunidades e pouca divulgação, distribuição e memória dos filmes feitos por mulheres ao longo dos tempos – sobretudo mulheres marginalizadas ou em contextos pós-coloniais. Fica até difícil lembrar que no início do cinema existia muita produção feminina, quando os pequenos filmes ainda eram considerados experimentos e não tinham status artístico.

No contexto do primeiro cinema produzido no final do século XIX e início do século XX, a francesa Alice Guy-Blaché é reconhecida historicamente como a primeira mulher diretora. Alguns de seus filmes traziam temáticas ainda não inteiramente superadas nos dias atuais. Tão importante quanto o tema, no cinema, o olhar lançado sobre os filmes e através dos filmes de Alice também não está em completo desuso.

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É importante destacar que Alice se iniciou nas artes cinematográficas na época em que a discussão sobre o sufrágio feminino estava presente em muitos países ocidentais. No entanto, quando a cineasta se mudou para os Estados Unidos com o marido, o voto feminino era realidade em apenas alguns estados. E ainda assim, apenas para norte-americanas que eram consideradas cidadãs sem qualquer ressalva – a situação das pessoas negras, indígenas ou imigrantes nos EUA é comumente esquecida quando o assunto é primeira onda do feminismo.

Alice começou a fazer cinema após trabalhar como secretária em um estúdio de fotografia francês que fazia experimentos com os primeiros cinematógrafos. “A fada do repolho” (Le fée aux choux, 1896) marca o início de sua produção, que seria conhecida por tratar de assuntos ligados intimamente à vida das mulheres brancas e pequeno-burguesas de sua época.

A obra de Alice Guy-Blaché trazia temas como maternidade, trabalho doméstico e “travestismo” (ou a simples troca de papéis de gênero entre homens e mulheres, já que para ela não seria possível falar de transexualidade como o assunto é tratado atualmente). Por isso, foi rotulada ao longo da história, por olhares menos atentos, como “feminista”, já que a atenção a esses assuntos até hoje é preterida pela sociedade patriarcal ocidental, em favor de temas e olhares mais “importantes”. É lamentável notar que a simples existência dessas temáticas na tela pode fazer alguns espectadores olharem para direção contrária, até os dias de hoje.

Apesar do rótulo, Alice tinha relação ambígua com olhares feministas que estavam em desenvolvimento na sua época e não aprovava que mulheres tentassem assumir inteiramente lugares socialmente marcados como masculinos. Por acreditar em capacidades inatas aos sexos como, por exemplo, a “sensibilidade feminina”, defendia a aptidão das mulheres para o trabalho doméstico e artesanal. Curiosamente, o mesmo motivo a levou a acreditar que as mulheres seriam aptas ao trabalho cinematográfico:

Além de uma mulher se encontrar tão bem preparada para encenar dramas como um homem, ela ainda tem, sob diversas perspectivas, uma enorme vantagem sobre ele, graças à sua natureza. Muito do conhecimento necessário para narrar uma história e para conceber cenários faz absolutamente parte das competências de um membro do sexo frágil. Ela é uma autoridade em emoções.

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A reflexão da cineasta parece apenas preconceituosa e limitada nos dias de hoje, no entanto, Alice estava sugerindo que mulheres não só podiam como deviam fazer cinema, em uma época as mulheres mais privilegiadas da sociedade americana sequer podiam votar.

De fato, enquanto o cinema não tinha status artístico e era considerado apenas uma diversão barata para pessoas sem sofisticação, as mulheres tiveram papel assegurado nele, e muitas atuaram, por exemplo, como montadoras, uma atividade considerada inicialmente de segunda categoria e frequentemente associada ao artesanato. A ideia que se tinha era que montar o filme era apenas cortar e colar os pedaços, embora nos dias de hoje o primeiro cinema já seja reconhecido como um período de rica experimentação.

Com a sofisticação da linguagem cinematográfica nas décadas posteriores, as mulheres foram gradativamente perdendo espaço nessa e em outras funções, embora nunca tenham de fato se tornado ausentes.

Em “As consequências do feminismo” (Les résultats du féminisme, 1906), Alice Guy Blachè retrata uma pequena sociedade em que os papéis de gênero foram trocados e os homens são vistos em atividades antes atribuídas às mulheres: passando roupas, cuidando de bebês e até mesmo usando vestidos. As mulheres, em contraposição, usam calças, fumam, bebem, humilham seus maridos e assediam maridos alheios. Os pobres homens logo se revoltam com as injustiças e promovem uma revolução.

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“As consequências do feminismo” é, à primeira vista, uma crítica aos anseios dos movimentos feministas que, ao buscarem igualdade de votos com os homens, trariam consigo o medo da “troca” de papéis de gênero e um consequente desequilíbrio da sociedade. Alice denunciou, tematicamente, que o feminismo só poderia levar à supremacia feminina e à castração dos homens, o que pode ser confirmado por seu discurso ambíguo em relação às possibilidades das mulheres no mundo. Porém, a efetiva representação visual da situação acaba expondo como o comportamento masculino era tóxico, injusto, abusivo e autoritário.

Como foi dito anteriormente, os olhares sobre os filmes e através dos filmes são tão importantes quanto sua temática, e nesse sentido a pesquisadora portuguesa Ana Catarina Pereira traz algumas possibilidades de leitura das representações do filme.

Nos cerca de seis minutos de duração da curta-metragem, o homem costura, cuida dos filhos, usa vestidos e age com delicadeza, promulgando uma essência feminina ultra-romantizada. A mulher fuma, bebe e tem um comportamento sexualizado; é grande, brutal, controla o espaço em que se movimenta, toma iniciativas e provoca acções. Elementos de ambos os sexos desempenham os papéis opostos aos rigidamente atribuídos pela sociedade, o que pode ser interpretado de diferentes formas:

a) uma acusação aos movimentos feministas e à tentativa de superiorização das mulheres (o antônimo de machismo);

b) uma representação grotesca dos medos masculinos diante da possibilidade de instituição de uma estrutura matriarcal;

c) uma visão feminista que encara a própria diferenciação de gêneros como supérflua.

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Seja qual fosse a intenção real de Alice Guy-Blachè ao gravar o curta-metragem, a lembrança da obra vale a pena para quem se interessa pelas representações cinematográficas que desafiaram e até hoje provocam nosso olhar para as questões de gênero. “As consequências do feminismo” é apenas um dos filmes da diretora que trata de assuntos relativos à vida das mulheres burguesas da época, e um dos mais de 600 filmes atribuídos a ela.

É sintomático que Alice seja até hoje única mulher que foi dona de um estúdio de produção de filmes, o Estúdio Solax e, portanto, a única mulher que foi realmente detentora de meios de produção para se realizar filmes de maneira industrial. Estima-se que o Estúdio Solax tenha produzido mais de mil obras durante sua existência, várias delas perdidas em razão de incêndios, quando os filmes ainda eram feitos com materiais extremamente inflamáveis.

No primeiro cinema houve lugar para tratar de algumas questões que surgiam entre as mulheres por ocasião da primeira onda feminista, como as possibilidades que nascem da simples ideia de que mulheres poderiam assumir lugares socialmente reservados aos homens. No entanto, a consolidação do cinema narrativo clássico nos Estados Unidos dali em diante não possibilitou o surgimento de outra mulher detentora dos meios para produzir filmes, como Alice Guy-Blachè, ainda que o cinema industrial norte-americano tenha enriquecido e produzido em larga escala.

Só podemos cogitar se é coincidência ou não o fato de grande parte dessas produções lidarem com as contradições expostas pelo feminismo com narrativas punitivas para mulheres desviantes, e neutralizadoras de qualquer ameaça à ordem patriarcal. Narrativas e olhares que encontraram grande expressão no cinema hollywoodiano na primeira metade do séc. XX, e que em parte sobrevivem até os dias atuaiscom mulheres ocupando espaço como musas, objetos, apoio ou desvio narrativo para que homens possam se desenvolver – à frente e atrás das câmeras.

(1): citação presente em Internacional female film directors: their contributions to the film industry and women’s roles in society.

(2): citação presente na tese de Ana Catarina Pereira, A mulher-cinesta: da arte pela arte a uma estética da diferenciação. Algumas informações sobre Alice Guy-Blachè também foram retiradas da tese.

5 MULHERES QUE SOBREVIVEM NO CINEMA DE HORROR

Em 1993, a pesquisadora Carol J. Clover cunhou um termo para caracterizar uma personagem típica dos filmes de serial killers que ficaram conhecidos como slasher. Tratava-se da Final Girl. Era ela quem, ao final do filme, permanecia viva.

Hoje, vê-se a Final Girl como uma espécie de heroína feminista, a última sobrevivente de um massacre, triunfante e vingada. E, embora algumas dessas características tenham algum fundamento, uma análise mais profunda nos permite ter uma visão mais completa. Enquanto Clover dedicou um longo estudo aos papéis de gênero nos filmes de horror, o conceito que ela criou parece ter se perdido com o tempo devido a sua apropriação pouco aprofundada pela cultura pop.

O horror tem um efeito tão forte sobre seus espectadores por comunicar medos e desejos reprimidos que temos como sociedade e, como os contos de fada, ele possui duas facetas: a que apoia as instituições vigentes (não vá para a floresta, não faça sexo, obedeça seus pais) e a anárquica, na qual tradições e regras são questionadas. Os filmes da Final Girl típica geralmente se encontram nessa primeira categoria. As últimas sobreviventes desses filmes são adolescentes que não fazem sexo, não se interessam pelas mesmas futilidades que as “outras garotas” e que muitas vezes possuem nomes andróginos e hobbies “masculinos”.

A Final Girl está ali na capacidade de vítima-herói. Herói por sobreviver até o final e, por vezes, por matar o vilão (mesmo que seja por puro acaso). Vítima por ter passado as últimas duas horas se escondendo, fugindo, caindo, sentindo dor, sendo perseguida, aterrorizada e vendo todos os seus amigos (especialmente as amigas) morrerem de forma brutal. Ela é “masculinizada” pelo seu nome, hobbies e, por vezes, aparência para que o espectador masculino possa se identificar com ela na capacidade de herói, mas ainda é uma mulher, e portanto pode ser torturada e vitimizada. A identificação com ela parte de um prazer sadomasoquista.

Com isso, não pretendo dizer que não há nada de subversivo sobre a Final Girl. A sua existência, que surgiu em filmes slasher marginalizados e de baixo orçamento dos anos 70, marcou uma presença feminina cada vez mais forte no cinema e permitiu o início de um debate muito pertinente sobre gênero no horror. Essa lista vem tanto para celebrar quanto questionar o papel da Final Girl no cinema.

A PRÉ-FINAL GIRL: Jess de Noite do Terror (1974)

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Embora, oficialmente, a primeira Final Girl só tenha surgido em 1978 com Halloween, vários filmes de horror antes disso já traziam personagens com características que muito se assemelhavam ao que viria a ser a Final Girl clássica. Dentre elas podemos citar Sally do Massacre da Serra Elétrica (1974) e Lila de Psicose (1960) como um protótipo ainda mais conservador e distante da eventual Final Girl.

Jess, do filme canadense Noite do Terror, é um exemplo interessante. Como a Final Girl clássica, ela tem um nome que poderia ser masculino ou feminino e é a última sobrevivente de uma série de assassinatos que ocorrem dentro da casa onde ela e várias amigas moram. O que a diferencia é sua vida sexual ativa e sua gravidez revelada durante o filme. O fato de ela estar decidida a abortar é particularmente surpreendente e mostra a faceta anárquica da obra.

A PRIMEIRA FINAL GIRL: Laurie de Halloween (1978)

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A primeira Final Girl foi imortalizada pela atriz Jamie Lee Curtis no papel de Laurie no filme Halloween. Diferentemente dos protótipos de Final Girls que vieram antes dela, Laurie foi uma das primeiras “última-sobreviventes” que teve um papel ativo e, em algum nível, bem sucedido na ação do filme. Ela não só se esconde aterrorizada, mas também procura se defender e ferir seu algoz.

Quando Halloween estreou, entretanto, a participação ativa feminina no filme não foi suficiente para convencer os críticos que isso significava uma mudança nos papéis das mulheres no cinema de horror. Andrew Tudor escreveu na época: “Mulheres sempre apareceram como vítimas no cinema de horror, então é esperado que elas pareçam mais proeminentes num período de centralidade da vítima. Se isso significa uma nova estrutura dos papéis de gênero nesse tipo de filme já é outra questão.” Felizmente, ele estava errado quanto a sua última afirmação e desde a primeira Final Girl o horror protagonizado por mulheres ativas se desenvolveu bastante. Por outro lado, não podemos ignorar seu primeiro comentário: a entrada das mulheres no protagonismo do horror se deveu a sua qualidade como vítima.

A FINAL GIRL E BECHDEL: Ripley de Alien, o Oitavo Passageiro (1979)

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Em Alien, o Oitavo Passageiro, a Final Girl  saiu do slasher para entrar na ficção científica. Subtenente Ripley é a última sobrevivente de um massacre que acontece na nave espacial Nostromo. Extremamente competente e racional, traços geralmente reservados para os personagens masculinos, Ripley permanece viva pela sua engenhosidade e inteligência. Sua androginia é reforçada também pelo fato de a conhecermos por sua patente e sobrenome (o que não impede que ela seja objetificada em cenas que aparece de camiseta e calcinha).

Alien foi mencionado em uma tirinha de Alison Bechdel em 1985 como um exemplo de filme que possui duas mulheres que falam entre si sobre algo que não seja um homem. Desde então, o que se consagrou como o “Teste de Bechdel” tem marcado presença na discussão sobre representação feminina no cinema. Passar no teste não significa que determinado filme é feminista, afinal, se trata de uma piada em um quadrinho que não tinha nenhuma pretensão de se tornar uma referência científica, mas é a própria simplicidade do teste que nos ajuda a perceber a pequena presença de mulheres nos filmes. Deveria ser fácil encontrar duas personagens que não existam em função de um homem em uma história, mas o número assombroso de filmes que não passam no teste demonstra o contrário.

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A ANTI-FINAL GIRL: Jay de A Corrente do Mal (2014)

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Mais de trinta anos depois da concepção da Final Girl, vivemos um novo momento do cinema de horror. Como de costume, o horror continua a tratar dos nossos medos e desejos recônditos, logo, conforme os medos e desejos da sociedade se desenvolvem e se modificam, o horror também o faz. Podemos ver isso claramente em A Corrente do Mal. O filme conta a história de Jay, uma garota que começa a ser perseguida por uma assombração após fazer sexo com um rapaz. Se isso parece uma trama conservadora, não se preocupe, a solução não é: Jay tem de fazer sexo novamente para passar a assombração para outra pessoa. Mas se a pessoa morrer, a assombração se voltará para ela mais uma vez.

Diferentemente dos filmes slasher, com seus vilões impotentes e sua ansiedade ao redor da sexualidade feminina, em A Corrente do Mal percebemos outras questões. O sexo aqui pode significar tanto morte quanto vida, a intimidade e a característica líquida das relações contemporâneas são possíveis temas. O filme também se opõe aos slashers pela sua protagonista. Jay faz sexo casual, apresenta características consideradas femininas e seus amigos não morrem e não fogem, permanecem com ela até o fim. Ela é a anti-Final Girl.

A PÓS-FINAL GIRL: Thomasin de A Bruxa (2015)

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Colocar Thomasin como uma Final Girl pode ser uma decisão polêmica da minha parte, mas me permita justificar minha escolha. Apesar de A Bruxa não fazer parte do gênero slasher e se passar numa época muito diferente de todos os outros filmes em que temos uma Final Girl, ele tem como tema central a ansiedade em torno da sexualidade feminina e uma protagonista que sobrevive enquanto todos ao redor dela morrem. É por isso que a considero uma pós-Final Girl: ela ainda possui as características fundamentais da personagem, mas ela expandiu o alcance da Final Girl para outras épocas e gêneros dentro do horror.

Mais importante que essa migração do gênero slasher – que já havia acontecido antes com Ripley em Alien, o Oitavo Passageiro – em A Bruxa temos um filme que definitivamente vai contra as instituições estabelecidas. Se as Final Girls anteriores eram desencorajadas a fazer sexo, em A Bruxa, Thomasin é levada a buscar refúgio na perversidade justamente porque, o que quer que ela faça, será condenada. Apesar do título do filme, a verdadeira vilã da história é a sociedade conservadora em que Thomasin vive.

Damned if you do, damned if you don’t.

DIRIGINDO ATORES NO CINEMA – PRÉ PRODUÇÃO E ENSAIOS

Dando continuidade ao primeiro texto sobre direção de atores no cinema, trago agora algumas sugestões mais específicas para trabalhar com atores em cada fase da produção de um filme. São dicas para diretores iniciantes – tanto estudantes quanto pessoas de outras áreas do cinema que queiram se aventurar na direção de filmes live action.

ROTEIRO

Como diretora, você deve conhecer muito bem a história que vai trazer à vida nas filmagens. Se for dirigir o roteiro de outra pessoa, converse com ela para descobrir os detalhes do que ela tinha em mente para o filme. Alguns diretores preferem não ter esse contato com a roteirista, e fazem o filme do jeito que visualizam apenas lendo o material. Acho legal ter essa curiosidade de entrar mais na mente da roteirista, mesmo que você não necessariamente vá seguir as ideias dela à risca. Você decide qual abordagem te agrada mais. Para os iniciantes, acredito que quanto mais trocas com outras pessoas, mais enriquecedor será o aprendizado.

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A diretora Anna Muylaert no set de Durval Discos.

Fazer um esboço dos pontos-chave da história e escrever a função das cenas ajuda a ter uma visão maior da estrutura narrativa. Diretores mais experientes podem fazer isso de cabeça, mas para os iniciantes escrever ajuda a visualizar mais facilmente a estrutura do filme, que nem sempre é tão clara para nós quanto pensamos. Em seguida, identifique qual a função de cada personagem na história e que tipo de relacionamento eles tem uns com os outros. E, logo após, uma das partes mais importantes para a direção de atores: tente escrever um breve backstory (história pregressa) para os personagens. Não precisa ser algo extremamente elaborado ou definitivo. Mas algo que te dê alguma noção de quem são aquelas pessoas, e o que elas viveram até o momento em que o filme se passa.

Essas informações do backstory não necessariamente precisam estar visíveis no filme. Elas funcionam mais como um guia para os atores entenderem o personagem, e para que você possa guiá-los. Também podem ser incluídos traços de personalidade, a relação que o personagem tem com outras pessoas, e outras coisas que você acredite que possam contribuir para a construção do personagem. Quando o roteiro for escrito por outra pessoa, essas informações podem já ter sido estabelecidas. Mas quando estão em aberto, ou quando o roteiro é seu, vale a pena criá-las.

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Atrizes no set de Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira.

Uma opção interessante também é deixar essa parte do backstory para ser construída pelos próprios atores. Se você tiver tempo para ensaiar com eles e desejar ir por esse lado, eles podem trazer um frescor com novas propostas e te surpreender com ideias muito interessantes. O que você precisa é conhecer bem a história que quer contar, e saber avaliar quais ideias funcionam e quais não. O ensaio, afinal, serve para testar tudo isso.

Outra coisa importante: decupe o seu roteiro, isto é, liste os planos que pretende fazer em cada cena, escolhendo quais enquadramentos serão usados, quais ângulos, qual abertura, se terá planos gerais, closes, planos sequência, se a câmera será fixa ou na mão, etc. Entender de montagem em geral é uma necessidade para o diretor. Te ajuda a planejar melhor o filme e a calcular o tempo necessário para a filmagem. Além disso, os enquadramentos influenciam completamente como os atores serão percebidos pelo público.

Alguns diretores não gostam de decupar e preferem pensar nos planos na hora de filmar, algo que não recomendo aos iniciantes. A decupagem também pode influenciar em algumas decisões de direção de atores. Por exemplo, se você filma alguma cena com os atores improvisando, será muito difícil cobri-la em mais de um plano sem ter duas câmeras simultâneas, pois dificilmente o atores repetirão as mesmas performances no take seguinte, comprometendo a continuidade dos cortes. Pensar a montagem com antecedência traz mais controle sobre o resultado final.

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A diretora Tata Amaral.

ENSAIOS

O tipo de ensaio vai depender do tempo que você tem disponível, do filme que você está fazendo, e até de seu método de trabalho. No começo do ensaio, sugiro conversar com os atores sobre a história. Alguns deles tem uma abordagem mais intelectual, gostam de analisar o comportamento do personagem, suas motivações, etc. Outros são mais intuitivos e não tem tanta desenvoltura verbal para expressar tudo o que apreenderam, mas isso não quer dizer que não tenham entendido o personagem. Eles apenas trabalham de uma forma diferente. Você perceberá isso pela performance, se eles entregarem a atuação de acordo com as orientações que você deu. Alguns filmes também exigem o entendimento do contexto específico em que se passam, e você pode usar essa conversa para promover pequenos debates e fornecer material de pesquisa para os atores estudarem.

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Marat Descartes e Helena Albergaria em Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas.

Após a conversa, você pode propor alguma dinâmica de aquecimento. O corpo é o instrumento do ator, então alongamentos, exercícios vocálicos e às vezes até aeróbicos fazem parte da preparação física para iniciar a parte prática do ensaio, e muitos atores já fazem um aquecimento individual antes de começar. Você pode propor algum exercício desses em grupo, e até mesmo você e seus assistentes podem participar, afinal, é sempre bom se alongar.

Você pode fazer em seguida algum exercício de imersão (colocando a mente dos atores no clima da cena). Alguns livros de cinema trazem sugestões de vários exercícios para experimentar. Obviamente, escolha os que tenham mais a ver com o filme que você está fazendo. Se é um filme cômico, escolha exercícios mais energéticos, que coloquem seu elenco no estado de espírito desejado. Se o filme é dramático, escolha os que tragam a densidade que você pretende, e assim por diante. Improvisações costumam ser muito boas para esse propósito também, e ajudam os atores a entrar em seus personagens.

A próxima etapa é passar o texto, com os atores lendo o roteiro e interpretando. É até desejável que eles ainda não tenham decorado suas falas no primeiro ensaio, pois fica mais fácil para você fazer ajustes nos diálogos, caso seja necessário. Porém, já que eles estarão lendo, você também não verá a atuação como ela realmente será, pois os atores estão olhando para o papel e não uns para os outros. Se você tiver a possibilidade de fazer vários ensaios, comece com a leitura, e perto dos últimos peça para os atores decorarem o texto, e aí sem o papel você poderá ajustar maiores detalhes na performance deles.

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A diretora Katia Lund no set de Cidade de Deus.

Uma dica importante é filmar os ensaios. É interessante ter um assistente que faça isso, para você poder prestar atenção nos atores. Quando chegar em casa, assista o material, você poderá notar coisas que passaram despercebidas na hora.

Os direcionamentos aos atores é uma das partes mais importantes de se praticar nos ensaios. É comum que diretores iniciantes não saibam expressar sua visão e deem instruções confusas. Evite falar coisas do tipo “nesta cena você tem que estar feliz como se tivesse acabado de ganhar seu primeiro neto”, se isso não tem nada a ver com a cena. Se o personagem é tomado por uma imensa felicidade porque conseguiu um desconto na academia, procure fazer o ator entender porque o personagem entrou nesse estado de espírito.

Dar direcionamentos em forma de perguntas costuma ser muito eficaz, porque força o ator a pensar e se conectar mais ao personagem: “Por que esse desconto é tão importante para você?”. Ao que ele pode responder “Porque meu personagem está desempregado há meses e essa foi finalmente uma oportunidade dele sair do marasmo, fazendo uma atividade por um preço acessível”. Aí você pode investigar junto ao ator o peso do desemprego na vida do personagem, a importância da atividade na academia, e chegar ao entendimento de qual tipo de felicidade ele deve expressar ao conseguir o desconto.

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Cena do filme Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira.

Uma coisa muito tentadora é tentar demonstrar a performance que você espera do ator para que ele te imite, mas recomendo evitar. Preste atenção nos detalhes físicos da performance. É comum atores de teatro projetarem muito a voz, por exemplo, pois são treinados para tal. Em uma cena de discussão, um ator teatral pode acabar aumentando muito o volume da voz sem perceber. Às vezes os atores também fazem algum gesto corporal que você quer eliminar, mas eles tem dificuldade de notar e corrigir o tal gesto. Ou o contrário, você quer que o ator gesticule mais, mas ele continua muito contido.

Para isso, eu costumo usar a técnica do espelho. Alguns atores tem resistência a olharem para si mesmos, com medo de mecanizar a ação, mas esse método costuma ser bem eficiente sempre que o uso. Fazendo a cena diretamente para o espelho, seja no ensaio ou em sua própria casa, o ator consegue visualizar sua expressão corporal e identificar mais facilmente o que você quer que ele mude. Quanto à voz, se o ator está com dificuldade de perceber onde está o problema, você pode filmar ou gravar a cena e mostrar para ele em seguida.

Elogios também fazem parte do processo. Receber feedback positivo é bom para os atores saberem quando estão acertando. Porém, uma boa dica é fazer elogios gerais, e, quando tiver críticas, apontar coisas específicas. Dessa forma, o ator não viciará em um gesto que você achou genial (ele pode querer ficar repetindo o mesmo elemento para te agradar) e também saberá especificamente onde estão as falhas para corrigi-las. Se a crítica for geral, o ator pode pensar que a performance inteira está comprometida. Claro que se o ator também perguntar “esse elemento específico aqui ficou bom?” você pode ser sincera e dizer que sim, se tiver gostado.

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A diretora Vera Egito no set de Amores Urbanos.

Por fim, é bom prezar pela a concentração. Atores podem ser pessoas bastante sociáveis, e muitas vezes se dão bem uns com os outros e com a equipe de filmagem, o que é ótimo. Mas você também deve estar atenta para a concentração, que pode ser facilmente perdida em momentos como erros de falas, em que todos riem, ou em curtas pausas que acabam virando momentos de descontração mais longos do que deveriam. É importante ter alguns intervalos se os ensaios forem longos. Mas procure ter horários mais ou menos definidos para eles, para que o ensaio tenha uma rotina e os atores se acostumem a cumpri-la.

A dinâmica do set de filmagem é muito fragmentada, com muitas distrações, a equipe fazendo mil coisas a todo momento, e se os atores perderem a concentração entre os takes, pode-se perder tempo precioso de filmagem. Atores e equipe mais experientes costumam saber disso, mas é comum em filmes universitários ambos acabarem negligenciando essa questão. Se isso ocorrer com frequência nos ensaios, procure chamar o foco de volta para os exercícios e para a cena. Já no set de filmagem, você terá muito mais coisas para lidar, podendo delegar essa função para a assistente de direção.

Na próxima parte deste texto falarei sobre direção de atores no set de filmagem – que costuma ser muito mais frenética e desafiadora que nos ensaios – e também na pós-produção. Você pode ler a primeira parte do texto, com dicas mais gerais, clicando aqui. E em breve haverá outro texto falando também sobre como preparar castings (audições para escolha do elenco).


Ilustração por Morgue.

DIRIGINDO ATORES NO CINEMA – DICAS GERAIS

Uma coisa que me chamou atenção estudando cinema no Brasil e nos Estados Unidos foi que alguns cursos de cinema não dão tanta atenção para a direção de atores. Além de oferecerem poucas aulas (ou nenhuma) sobre o assunto, os departamentos de audiovisual e de artes cênicas em geral conversam pouco entre si e não possuem aulas em comum. Os estudantes de cinema acabam aprendendo a lidar com os atores somente na prática, ou indo atrás de informações por conta própria.

No Brasil há o fenômeno do preparador de elenco, e alguns estudantes acreditam que esse profissional deve substituir a função do diretor na comunicação com os atores, ou até mesmo que ele é necessário em todos os filmes. Na Universidade de Brasília, onde estudei, era comum os alunos incluírem alguém na equipe somente para preparar o elenco, mesmo quando ele era formado por atores bons e experientes. Como foi uma das coisas que mais estudei durante a graduação, trago aqui algumas dicas sobre direção de atores para estudantes que desejam dirigir filmes live action, e também para pessoas que trabalham com cinema em outras funções e queiram passar para a função de direção.

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Anna Muylaert dirigindo Glória Pires em  “É Proibido Fumar”

Primeiramente, acredito na premissa de que ter alguma experiência como atriz ajuda na hora de dirigir atores. Você estará do outro lado, terá que analisar as informações sobre o personagem e como expressá-las, vai experimentar como é ser dirigido por alguém, como é interagir com outro ator na cena, como memorizar falas, e também entender o esforço corporal e vocal que a atuação exige. Portanto, sugiro que quem tem interesse em dirigir procure experimentar alguns cursos ou oficinas de atuação. Eles também ajudam a adquirir algum repertório de exercícios, o que pode ser bastante útil em ensaios com o elenco.

Segundo, é importante saber escolher seu elenco. Pretendo escrever posteriormente um texto com dicas específicas para casting (produção de elenco). Embora grande parte da escolha dos atores dependa da intuição da diretora, existem algumas técnicas específicas para identificar se o ator realmente se encaixa no papel pretendido, se sabe seguir direcionamentos, se é bom em improvisação, se é responsável e pontual. São coisas que, acredite, podem fazer a diferença no set de filmagem.

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Ava DuVernay discute a cena com o ator David Oyelowo no set de “Selma”

Escolha pessoas que trabalhem bem com você. Não tem problema chamar seus amigos para atuar, principalmente nos trabalhos de faculdade, em que você não tem muito tempo e precisa de pessoas que sejam fáceis de trabalhar. Porém, é bom ter em mente que fazer cinema demora e envolve muitas repetições – deixe seus amigos cientes disso, para eles não te abandonarem no meio do set! Além disso, não perca a chance de trabalhar com atores que conhecem técnicas de atuação, sejam estudantes de artes cênicas ou profissionais. Já vi colegas que resolveram atuar eles mesmos em alguns trabalhos de faculdade, abrindo mão da chance de treinar direção de atores com pessoas que realmente estudam pra isso.

Outra maneira de escolher atores é por meio de convite, quando você já conhece o trabalho da pessoa e imagina que seria uma boa opção para um papel em seu filme. Já trabalhei com indicações às cegas também, quando eu não conhecia a atriz e confiava na recomendação de amigos da área, mas indico essa prática mais para trabalhos universitários com prazos curtos, onde você não tem muito tempo para ir atrás do elenco e precisa de soluções rápidas (embora eu sempre tenha tido sorte com ótimas indicações).

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Sofia Coppola com Scarlet Johansson no set de “Encontros e Desencontros”

Quanto a ensaios, é uma coisa que você deve tentar fazer o máximo que puder durante a faculdade. Incrivelmente, pode ser uma coisa bem difícil de se conseguir. Só quem já teve que conciliar a agenda de várias pessoas sabe o inferno que é conseguir um dia em que todos estejam livres. Porém, para diretores inexperientes essa é uma das partes mais importantes. É no ensaio que você vai testando suas habilidades com os atores, vendo como eles respondem, quais técnicas dão certo e quais não. Existem vários livros com exercícios que podem ser feitos, dependendo do que seu filme precisa, do seu elenco, e do nível de energia e de atuação que você deseja alcançar.

Se não for possível ensaiar com os atores que contracenam, ao menos converse individualmente com cada um sobre seus respectivos personagens. Claro que direção é uma função que necessita de habilidades amplas. Algumas diretoras tem mais afinidades com outras áreas, fotografia, direção de arte, etc. Mas parte da tarefa de direção é inevitavelmente dar algum direcionamento aos atores, e é nessa hora dos ensaios onde se pode praticar. No cinema profissional (ou mesmo no universitário) nem sempre se tem a oportunidade de ensaiar antes de filmar. Quando você tiver que dirigir atores que nunca se viram antes do dia da filmagem, essa experiência adquirida previamente vai fazer a diferença.

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Laís Bodanzky dirigindo Caio Blat no set de “As Melhores Coisas do Mundo”

Existem diversos tipos de atores: os que são bem seguros com o texto e decoram as falas certinho, os que gostam de improvisar, os que preferem um forte direcionamento, os que gostam de intervir na construção do personagem, e outros mais. Veja o quanto você está disposta a deixar o ator construir o personagem com você. Eu particularmente gosto de dar essa abertura, e em alguns trabalhos deixo os atores construírem boa parte do texto. Isso nem sempre é possível, depende do tempo disponível na preparação e do filme que você está fazendo. Alguns diretores preferem que os atores entreguem fala por fala do jeito que está no roteiro. Outros permitem que os atores improvisem na hora da filmagem. Com a prática você acaba descobrindo com qual forma gosta mais de trabalhar.

Porém, tenha em mente que é preciso saber conciliar a performance de atores que usam métodos diferentes, quando eles vão contracenar. A diretora Anna Muylaert já comentou em entrevistas que em seu filme Durval Discos, a atriz Etty Fraser decorava fala por fala, e precisava da deixa específica do outro ator para entregar sua parte do diálogo. Já Ary França, que contracenou com Etty, gostava mais de improvisar, e não seguia à risca o roteiro. Anna trabalhou com os dois para que Ary conseguisse incluir a deixa ao final das improvisações, para que Etty não se perdesse. Esse é um exemplo claro, mas no geral essa “conciliação” entre os atores se dá de forma mais sutil, no nível de equilibrar as intensidades das atuações, o tempo de aquecimento, e até mesmo o conforto de um com o outro em cena.

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Etty Fraser e Ary França em “Durval Discos”

Falando em tempo de aquecimento, isso também é um deta

lhe importante na hora de filmar. Existem atores que chegam à performance ideal muito rápido, começam bem aquecidos, vão cansando com o tempo, e sua performance cai de acordo. Outros demoram algum tempo até “dar no tranco” e entregar a atuação ideal. Prefira começar filmando os closes do ator que aquece mais rápido. Há também os atores mais seguros, que conseguem manter uma boa performance por bastante tempo, que geralmente são os mais experientes. E há os que são bastante instáveis, mas que em lampejos de genialidade conseguem entregar uma atuação espontânea e emocionante. Esses últimos, embora fascinantes, são dos mais desafiadores de se trabalhar, já que o cinema tem uma particularidade que precisa ser praticada: a repetição. É preciso bastante observação para descobrir que técnicas funcionam melhor com esses atores para mantê-los no pique. Vários atores de teatro também não estão tão acostumados a repetir pequenos pedaços de cena com a frequência exigida em algumas filmagens. Isso pode ser bem cansativo, e também entediante para o ator, o que afeta sua performance. Nesse caso o problema não está na direção, mas na falta de familiaridade do ator com a rotina de sets de filmagem.

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Laís Bodanzky no set de “As Melhores Coisas do Mundo”

No cinema é muito comum filmar fora da ordem do roteiro. Os atores tem de saber localizar qual é o estado do personagem em cada cena. Muitas vezes se filma cenas do começo e do fim do filme no mesmo dia. O ator deve estar preparado para fazer esse salto na atuação, e você como diretora também tem de saber muito bem as especificidades da cena e do personagem para saber orientá-lo.

Outro fator que também afeta a atuação é o conforto. Alguns sets ou cenas podem ser cansativos ou incômodos: um dia muito frio, ou debaixo do sol, ou uma cena que exija muito trabalho físico ou emocional. É sempre bom verificar se há algo que possa ser feito para preservar um mínimo de conforto para o elenco. Sempre tenha assistentes com água por perto, agasalhos, guarda-sol, cadeira, chinelos, e outras coisas a que eles possam recorrer entre os takes. Já tive que trabalhar com atores se queixando de dor de cabeça, cansados, com frio, com fome. São coisas que certamente prejudicam a performance. Porém, sabemos que set de cinema é corrido sempre, e os atores também fazem (ou devem fazer) uma força para trabalhar mesmo com alguns incômodos. Isso faz parte do trabalho, e também depende de treinamento.

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Sofia Coppola dirigindo Bill Murray em “Encontros e Desencontros”

É importante ressaltar: o ator não é sua marionete. Abusos de poder são bastante comuns em relações hierárquicas de todo tipo. Nesse caso, o diretor pode se valer da vulnerabilidade inerente ao exercício da atuação. Pergunte a qualquer ator, vários serão capazes de citar experiências em que o diretor fazia jogos constrangedores não consentidos como “técnica” para impulsionar a performance, gritava com o elenco, não escutava o que o ator tinha a dizer, era autoritário, enfim. Eu, que comecei como atriz em teatro, passei por vários desses. E vejo algumas das mesmas práticas sendo perpetuadas no cinema. Muitas de forma velada e sutil também, mas não menos desrespeitosas.

Há os casos famosos: quem nunca ouviu falar de Lars Von Trier torturando suas atrizes? Ou Kubrick? Ou Hitchcock? Ou David O. Russel dando chilique no set? Só pra citar alguns dos mais conhecidos. Existe um viés de gênero digno de ser ressaltado: as atrizes sempre muito mais sujeitas a abusos. Posso citar também os métodos de Fátima Toledo, a preparadora de elenco mais famosa do Brasil, como uma dessas técnicas “viscerais” que mexem fortemente com o psicológico dos atores. Muitos atores gostam delas, principalmente por serem bastante desafiadoras. Mas a popularidade de Fátima e algumas técnicas do Método americano, dentre outros (vide a glamourização de Edward Norton, Jared Leto e outros que fazem loucuras para “entrar no papel”) de uma certa forma contribuem para a difusão da ideia de que atores são pessoas que só funcionam quando manipuladas. Que você pode livremente tentar usar uma técnica mais “dura” ou invasiva em nome da arte. Minha dica: não seja essa pessoa. Atores estudam, praticam, e trabalham muito para atingir excelência na sua profissão. Não é por meio de manipulação ou gritos que eles chegam lá. Embora esse tipo de atitude seja bastante tolerada sobretudo quando vem de diretores homens, ela apenas mascara, a meu ver, um desejo autoritário e sádico do diretor.

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Ava DuVernay abraçando suas atrizes mirins: seja essa pessoa.

Por fim, tente sempre ouvir o que os atores tem a dizer. Alguns deles apenas seguem sua orientação, outros contestam mais, ou trazem visões diferentes sobre o personagem e a história. E muitas vezes eles podem ter razão. Ouça e reflita sobre as opiniões deles. Caso discorde de algumas, lembre-se que quem tem a palavra final é você. Do mesmo jeito que você não deve ser autoritária e impor sua visão a qualquer custo, também não precisa ceder a opiniões dos atores e da equipe se discorda delas. No fim, a diretora é quem tem a responsabilidade artística da obra, e as escolhas do filme serão atribuídas majoritariamente a você.

Nas próximas partes desse texto falarei sobre técnicas específicas para serem usadas nos ensaios, trabalho no set e até mesmo na pós produção, além de um futuro texto com dicas sobre como preparar e executar castings.

Leia aqui a segunda parte do texto: SOBRE DIRIGIR ATORES NO CINEMA – PRÉ PRODUÇÃO E ENSAIOS 


Ilustração por Morgue.

 

POR QUE DAMOS NOMES FEMININOS A ROBÔS?

A Inteligência Artificial é o sonho humano do serviçal perfeito: uma máquina que aja como nós, mas não tenha as necessidades mundanas que tanto dificultam a escravidão de outros humanos e animais. Uma entidade que não precise ser alimentada, não precise dormir, não tenha desejos e não anseie por liberdade. Queremos máquinas inteligentes e eficientes para identificar nossas necessidades e satisfazê-las, mas será possível desenvolver uma inteligência consciente que não possua sentimentos e sensações?

Desde o começo da Revolução Industrial, histórias sobre o medo de máquinas que tomam consciência própria e aniquilam seus criadores começaram a povoar o imaginário popular. O cinema também representou inúmeras vezes essa ansiedade humana. O modo como a figura feminina é implementada nessas máquinas, e a visível associação na vida real de assistentes eletrônicas a um gênero feminino chamou a atenção da escritora Laurie Penny. Traduzimos abaixo o seu texto sobre o assunto.

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Por que existem tantos robôs projetados para se assemelhar a mulheres? A pergunta está se tornando inevitável ao passo em que mais e mais Inteligências Artificiais (IAs), que não precisam ter um gênero, aparecem no mercado com vozes e rostos femininos, incluindo Cortana da Microsoft, Alexa da Amazon e uma nova onda de estranhas robôs sexuais comercializadas quase que exclusivamente para homens. Enquanto entramos em uma nova era de automação, a tecnologia que estamos criando diz muito sobre a maneira que a sociedade vê as mulheres e o trabalho.

Este mês, a Microsoft lançou Tay, robô com rosto e maneirismos de uma garota adolescente que foi projetada para aprender e interagir com usuários no Twitter. Dentro de horas, Tay tinha sido bombardeada com abuso sexual e foi ensinada a defender Hitler, que é o que acontece quando você dá ao Twitter um monstrinho para criar. O jeito que Tay foi tratada pelos usuários do Twitter foi abominável, mas não sem precedentes – os primeiros robôs e assistentes digitais foram projetados para parecer femininos, em parte para que usuários, presumidamente homens, pudessem explorá-los sem culpa.

Isso faz sentido quando consideramos que boa parte do trabalho que estamos antecipando que será feito um dia por esses assistentes é atualmente feito por mulheres e meninas, por salários baixos ou sem pagamento algum. Semana passada, um relatório da ONS (IBGE britânico) finalmente quantificou o valor anual da “produção econômica doméstica” – a manutenção doméstica, cuidado com os filhos e tarefas organizacionais feitas em sua maioria por mulheres – em 1 trilhão de libras, quase 60% da economia “oficial” (do Reino Unido). Desde enfermeiras, secretárias e profissionais do sexo a esposas e namoradas, o trabalho emocional que mantém a sociedade funcionando é ainda feminizado – e ainda estigmatizado.

Neste momento, enquanto antecipamos a criação das IAs para servir a nossas necessidades particulares, organizar nossas vidas e tomar conta de nós, e fazer tudo isso de graça e sem reclamações, é fácil ver quantos designers talvez se sintam mais confortáveis com essas entidades tendo vozes e rostos femininos. Se IAs forem projetados como masculinos, usuários podem ser tentados a tratá-los como iguais, reconhecê-los como humanos de alguma forma, talvez até oferecê-los um salário de nível inicial e um drink depois do trabalho.

Na imaginação pública, robôs humanóides tem sido por muito tempo substitutos para classes exploradas. Até mesmo a palavra “robô” é derivada da palavra tcheca para “escravo”. A filósofa Donna Haraway observa em Um Manifesto Ciborgue que “a divisão entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica”, e a história das robôs femininas em filmes é quase tão longa quanto a história do cinema em si. Em quase toda encarnação de robôs femininas na tela, de Metrópolis de Fritz Lang à obra prima moderna Ela, a mesma questão surge: IAs são realmente pessoas? E, se sim, podemos viver com o que fizemos a elas?

Em estórias como Blade Runner, Battlestar Galactica e Ex Machina, robôs femininas são estupradas por homens e os espectadores são convidados a ponderar se esses estupros foram realmente criminosos, baseados na nossa avaliação de se a robô tem consciência suficiente para merecer autonomia. Esta é a mesma avaliação que juízes homens ao redor do mundo estão tentando fazer sobre mulheres humanas hoje.

Toda a repetição da estória romântica é também uma estória de horror. O protagonista, que é geralmente frustrado sexualmente e rabugento, passa por agonias tentando definir se seu crush de silicone é realmente consciente. Se ela é, é certo ele explorá-la, ser servido por ela, dormir com ela? Se ela não é, pode ele realmente se apaixonar por ela? Isso importa? E – o mais aterrorizante de tudo – quando ela define sua própria posição, ela vai se rebelar? Como ela pode ser impedida?

Essas são questões que a sociedade em geral tem feito por séculos – não sobre robôs, mas sobre mulheres. As permutações ansiosas são familiares para a maioria das mulheres que namoram homens. Nós podemos vê-los, lentamente, tentando decidir se somos realmente humanas, se realmente pensamos e sentimos como eles.

Essa não é uma questão acadêmica abstrata. A ideia de que afro-americanos eram menos humanos que pessoas brancas estava consagrada na constituição dos Estados Unidos até 1868. Da mesma forma, a noção de que mulheres são menos humanas que homes tem sido usada desde os tempos de Aristóteles para justificar a privação de seus direitos básicos. Até mesmo hoje, encontramos homens argumentando que mulheres e meninas são menos inteligentes que homens, ou “programadas pela natureza” para uma vida de submissão e plácida reprodução. Por muitos séculos, a primeira tarefa filosófica das pessoas oprimidas tem sido convencer tanto a si mesmas quanto seus opressores – assim como as IAs em nossas ficções culposas – que eles são seres vivos, pensantes, e com sentimentos, e portanto merecem liberdade.

Consideremos a cena clímax em Ex Machina, onde o gênio megalomaníaco Nathan é mostrado colecionando corpos nus de modelos antigos de robôs femininas em seu quarto. Para Nathan, a consciência de suas escravas sexuais está fora de questão: de carne ou de metal, mulheres nunca serão realmente humanas. Para as robôs femininas, os homens que as possuem – quer seja o louco bilionário Nathan, ou o doce desafortunado Caleb – são obstáculos a serem vencidos, com violência se necessário.

Quando os ciborgues dominarem as máquinas, os homens ainda importarão? Na ficção, como na vida, uma maneira das pessoas oprimidas se libertarem é usando tecnologia para tomar o controle das máquinas que os fizeram. “O maior problema com ciborgues, claro, é que eles são a prole ilegítima do militarismo e do capitalismo patriarcal”, escreve Haraway. “Mas prole ilegítima é frequentemente infiel às suas origens. Seus pais, afinal, são não-essenciais”.

A triste paranóia que está no cerne dessas visões do futuro é que, um dia, IAs seriam capazes de se reproduzir sem nós, e sumariamente decidiriam que somos irrelevantes. Desde Metropolis até Matrix, o pesadelo é o mesmo: se andróides tiverem acesso aos meios de reprodução, nada os deterá. Isso é, coincidentemente, o medo básico que os homens tem nutrido em relação às mulheres desde o nascimento do feminismo, e particularmente desde o advento da contracepção e da tecnologia reprodutiva. Esse medo é a raiz de muito da opressão feminina atual.

Alan Turing, o pai da robótica, se preocupava que “máquinas pensantes” pudessem ser exploradas porque não eram conscientes do mesmo modo que “seres humanos reais” são. Nós ainda não decidimos, como espécie, que mulheres são conscientes – e enquanto mais e mais robôs femininas aparecem em nossas telas e nossas estórias, nós devíamos considerar como nossa tecnologia reflete nossas expectativas de gênero. Quem são os usuários, e quem é usado? A menos que possamos recalibrar nossa tendência a explorar uns aos outros, a questão pode não ser se a raça humana pode sobreviver a era das máquinas – mas se merece.


Tradução de Carol Lucena e ilustração por Deixadebanca

DECADÊNCIAS DO CONVÍVIO: O PÂNTANO

O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.

No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.

Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.

Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).

O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.

Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.

Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.

O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.

Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.

A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.

O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.

O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a  diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.

SOBRE O QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DA MULHER CONFINADA

Há séculos, o tema da mulher confinada tem sido explorado pela ficção. Somos presas em torres guardadas por dragões, em casas governadas por madrastas tiranas, em quartos minúsculos e sem luz, em abrigos subterrâneos. Dentre as versões audiovisuais desse pesadelo, podemos citar A Maçã de Samira Makhmalbaf, O Quarto de Jack de Lenny Abrahamson, As Virgens Suicidas de Sofia Coppola, Mad Max: Estrada da Fúria de George Miller, Cinco Graças de Deniz Gamze Ergüven, Rua Cloverfield 10 de Dan Tratchenberg e até mesmo a série cômica da Netflix, The Unbreakable Kimmy Schmidt.

O confinamento tem uma série de significados recorrentes e também particulares a cada filme, livro ou conto de fadas em que ele aparece. Ele muitas vezes representa ambientes familiares abusivos, parceiros ciumentos, uma sociedade que limita a mulher ao ambiente doméstico, o pânico quanto a sexualidade feminina e a redução da mulher a suas funções reprodutivas. O aprisionamento das “noivas” de Immortan Joe em um cofre é infantilmente simples em sua conotação: mulheres são vistas como objetos de grande valor, mas ainda objetos. A mãe de O Quarto de Jack – no livro – não possui nome, só a vemos ser chamada de “ma”. Encarcerada com seu filho, todas as suas ações são tomadas em função dele, o livro compara a redução da mulher à maternidade com a angústia do confinamento ao mesmo tempo que explora uma certa idealização do que o tempo ilimitado gasto com uma criança – total atenção, zelo, proteção – o mito da mãe sempre presente. Quando “ma” e Jack finalmente escapam, ela já não sabe mais quem é. Fora do quarto, sem ser mãe 100% do tempo, “ma” tem problemas pra encontrar sua identidade.

Em As Virgens Suicidas, Cinco Graças e A Maçã, irmãs são trancafiadas dentro de casa para sua “própria proteção”, pretexto apoiado por convicções religiosas (católicas e islâmicas) que mal escondem a real motivação: o despertar da sexualidade feminina em adolescentes deve ser sufocado a qualquer custo. As Virgens Suicidas ressalta o estranhamento do feminino, elas são observadas pelos meninos da vizinhança com interesse, mas nunca compreensão. Elas exercem fascínio pelo mistério que as mantém distante do mundo, desconexas e perdidas. Cinco Graças busca representar a perda de direitos das mulheres turcas com a chegada ao poder de um partido fundamentalista, o encarceramento das cinco irmãs refletem ideias conservadoras alimentadas pelo cenário político do país.

É interessante observar que o confinamento em algumas histórias não se dão atrás de portas trancadas. No conto de fadas Barba Azul e na compilação de histórias populares As Mil e Uma Noites, em nenhum momento somos informados de que as protagonistas estão confinadas, mas, apesar de correrem risco de vida, nunca nem passa pela cabeça do leitor ou das mulheres que elas deixem seus maridos e famílias. Tratava-se de um confinamento baseado na dependência. A mulher não possuía nenhum tipo de autonomia financeira, não eram treinadas para ou bem-vindas no mercado de trabalho, a família em si era um encarceramento inescapável. Essa realidade, entretanto, não está tão distante quanto gostaríamos. Ainda existem mulheres no mundo que são impedidas de estudar, em alguns países mulheres tem os mesmos direitos legais de um menor de idade.

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A Maçã (1998)

Em cada história, as protagonistas apresentam diferentes formas de lidar com suas situações. Em filmes de ação, as mulheres são engenhosas ou fisicamente fortes e tentam escapar a todo custo. Em Rua Cloverfield 10, vemos Michelle afiar uma muleta de madeira para lutar contra seu captor já nos primeiros minutos do filme, em Mad Max: Estrada da Fúria, as “noivas” arriscam suas vidas para fugir com Imperator Furiosa numa alucinante perseguição. Embora seja revigorante ver mulheres enfrentarem seus algozes, é importante lembrar que situações abusivas são muito complexas e perigosas. Não é à toa que muitas mulheres permaneçam com seus parceiros abusadores e não é, como alguns dizem, porque elas gostam de apanhar, e sim, porque elas temem pelas próprias vidas. É irracional tratar de uma questão estrutural como individual. Esperar que mulheres sejam as únicas responsáveis pelo seu bem-estar dentro de uma sociedade que violenta mulheres é um pensamento simplista. Individualmente, as mulheres usam as armas que elas necessitam para sobreviver.

O conto de fadas da Gata Borralheira ilustra bem essa questão mesmo que inadvertidamente. Cinderela é encorajada pela mãe moribunda a permanecer gentil e afável. O que muitas vezes é interpretado como fraqueza e falta de personalidade é o que permite que Cinderela sobreviva aos abusos perpetuados pela madrasta e suas filhas durante toda a sua vida. O Quarto de Jack também mostra como a necessidade de sobreviver faz com que “ma” aja de forma submissa, demonstrando a consciência de que suas melhores chances para proteger a si e Jack estão na docilidade. Ela consegue escapar, e, apesar da tentativa de suicídio, sobrevive, enquanto outras não tem a mesma sorte. Em As Virgens Suicidas, as irmãs Lisbon estão todas mortas ao final do filme. Em Cinco Graças, duas das irmãs casam obrigadas, uma se mata e duas fogem, mas têm poucas perspectivas. Em A Maçã, as duas filhas que ficaram presas por onze anos dentro de casa apresentam sérios problemas de desenvolvimento, mal falam ou andam.

A recorrência do confinamento na ficção fala de um encarceramento maior e invisível, mulheres que são presas pelas amarras de uma sociedade que decreta como elas devem agir, mas não podemos esquecer que encarceramentos reais ainda acontecem. Não acredito que seja coincidência que os dramas que encaram o confinamento de forma mais realista sejam dirigidos por mulheres ou que as histórias mais desesperadoras venham de diretoras de países periféricos. A Maçã foi baseado em fatos reais e a maior parte dos atores viveram os acontecimentos retratados no filme, misturando o documental e a ficção e nos lembrando: embora possamos ver a mulher confinada como uma metáfora, não podemos escapar do fato que ela existe no mundo real.


Ilustração da Morgue.

RIVALIDADE E FORÇA FEMININA: COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

Esse filme mexicano de 1992 foi dirigido por Alfonso Arau é adaptação de um livro homônimo escrito por Laura Esquivel. Conta a história de Tita (Lumi Cavazos), uma menina que ao nascer foi designada para cuidar da mãe (Regina Torné), como parte de uma tradição da família. Por isso, Tita não poderia se casar, mesmo assim, ela se apaixona por Pedro (Marco Leonardi) e é correspondida. A mãe, para impedir que os dois namorem, oferece a mão de Rousaura (Yareli Arizmendi), irmã de Tita para Pedro, que aceita no intuito de morar perto da amada. Assim, Tita tem de viver na mesma casa que os dois, escondendo seu amor. Além de Tita e Rosaura, mamá Elena, a mãe, tem mais uma filha, Gertrudes (Claudette Maillé), que foge e acaba se tornando a líder do exército revolucionário. O filme tem uma relação bem forte com a cozinha, local onde Tita nasceu e passou a maior parte da vida. Além disso, os sentimentos reprimidos da protagonista se concretizam e tomam forma por meio da comida.

Bom, vamos por partes, apesar de ser um filme com mulheres independentes e de família matriarcal (mamá Elena chega a dizer para o padre que “os homens não são tão importantes assim” quando ele a questiona sobre a falta de um em casa), ainda há uma grande valorização do amor Romântico (com letra maiúscula e direito a todos os clichês do Romantismo mesmo) e noção de que as mulheres de bem são as que sabem cozinhar e cuidar da casa. De fato, o filme separa as mulheres “para casar” e as “vadias”, algo que não fica tão incômodo porque acaba sendo uma crítica a esse modelo e ao pensamento da época. Ainda assim, mostram de maneira ridicularizada as mulheres que não sabem cozinhar, por exemplo. Um ponto positivo é que a maioria das personagens com falas são mulheres, quase todas elas são mulheres fortes e com personalidade, com exceção de Rosaura.

O desejo é quase como uma entidade, presente em todo filme. Assim também é com a repressão. Essas duas entidades se materializam nas personagens Tita e Elena. Tita que não pode viver seu desejo, o transfere para Gertrudes, que ao comer o que Tita cozinha, se sente excitada, se masturba, foge de casa… O desejo é retratado com a metáfora do fogo, é de um incêndio que Gertrudes corre pelada para o colo de seu amado. Gertrudes é uma personagem muito interessante, mas que infelizmente não é explorada na história. Ela volta como “generala” do exército revolucionário, é uma mulher imponente e temida pelos homens que participam da revolução, todos a obedecem de cabeça baixa, mas não sabemos o que ela fez nem por onde andou.

Se por um lado as representações femininas quebram estereótipos, por outro reforçam a noção deturpada de feminilidade ligada dotes culinários e do lar. Também há a manutenção da ideia de rivalidade entre mulheres – disputando um homem, nada novo sob o sol. Porém, essa relação de rivalidade fica restrita a Rosaura e Tita. A maior parte das mulheres no filme se ajudam e se fortalecem. Gertrudes, Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) apoiam Tita, porém sem coragem de se colocarem contra a matriarca. Gertrudes secretamente ensina Tita e evitar uma gravidez, por exemplo. As vizinhas/parentes da família também se mostram favoráveis ao amor de Tita. Uma das relações que mais gostei de ver ser desconstruída foi a relação de mãe e filha. Não existe no filme o amor maternal mágico. Também não existe amor incondicional à mãe. Tita chega a dizer para Elena que sempre a odiou, indo contra o final feliz comum em que as personagens se reconciliam e vivem todas felizes para sempre. Esse é um ponto bem interessante, porque o filme não retrata as mulheres como sensíveis e passivas a perdoar qualquer atrocidade que as acontece. O filme se passa entre 1910 e 1934, no México, então é normal que mostre como as mulheres eram criadas para odiar umas as outras, mas mostra sublimemente como essa criação pode ser burlada e como a união feminina é forte.

O filme não mostra empoderamento feminino nem contesta o papel da mulher na sociedade, mas escolhi falar sobre ele por ter personagens complexas com histórias próprias, que não dependem de um homem para acontecer. Na maior parte do filme, o corpo feminino não é tratado como objeto. Em alguns momentos, o filme sexualiza Tita, mas é interessante o fato de em alguns momentos sexualizar o corpo masculino também. Na verdade, em um momento só, quando Pedro chupa e passa gelo de maneira sensual pelo corpo. Também incomoda um pouco o fato de que o que preocupa Rosaura em relação ao casamento dela não é o fato de ter se aproveitado da situação vulnerável da irmã, mas sim a possibilidade de o marido não a desejar mais por causa de seu peso, seu hálito e seus gases. Fica ainda forte no filme o casamento como único destino para as mulheres. Mesmo Gertrudes, que fugiu e liderou uma revolução, acaba casada e com filha. Vale ressaltar que as mulheres no filme são em maioria brancas, com exceção de Chencha e Nacha que parecem ter origens indígenas.

O filme utiliza alguns recursos do realismo fantástico para construir situações visualmente inusitadas e expor tanto o sofrimento contido quanto a libertação sexual. Após reassistir para escrever essa crítica, me encantei menos que da primeira vez que tinha visto. As mensagens de esperança e de força feminina ainda estão ali, porém muitas problemáticas ficaram mais claras para mim, todas elas relacionadas ao amor romântico (agora com minúscula, mas englobando o Romântico maiúsculo também) e ao papel determinado para as mulheres nesse sistema. Desde crianças, as filhas de Elena são ensinadas a buscar um amor heterossexual como objetivo de vida. São sempre questionadas sobre quando e com quem querem se casar. Quando a filha de Rosaura nasce, uma das primeiras coisas que ouvimos sobre ela é a vontade que o filho do médico tem de se casar com a menina recém nascida. E, fatalmente, os dois se casam.

Até a protagonista se apaixona sem explicações razoáveis. Nunca é mostrada uma conversa sequer entre Tita e Pedro, mesmo assim ela se mostra perdidamente apaixonada pelo rapaz. É como se o amor fosse uma força inexplicável que vai fatalmente atingir a todas as mulheres. Isso fica claro desde o começo do filme, quando Elena diz a Tita que ela não vai poder se casar, Tita, ainda criança, se revolta e fica chateada com a notícia. Permanece a ideia de que, se não for o casamento, não resta mais nada a ela. A própria Elena guarda uma foto de seu amor do passado em um colar em formato de coração, ou seja, na concepção do filme, até a mais fria e rigorosa das mulheres é destinada a amar eterna e incondicionalmente alguém.

Quanto ao título, se refere ao ponto de ebulição da água. É uma expressão usada no México, já que para fazer chocolate a água deve estar fervendo. No livro, essa expressão é usada para demonstrar que Tita estava sempre com raiva das situações que lhe eram impostas, desde seu futuro predestinado, até a indignação com o comportamento de Pedro, porém no filme isso não fica tão claro. Tita é retratada como uma moça tolerante e carinhosa. Provavelmente, no livro, por ser escrito por uma mulher, as perspectivas de amor e a personalidade da protagonista são diferentes.


Ilustração da dominicana Gaby D’Alessandro

RELAÇÕES DE PODER E BELEZA: A BELA E A FERA

A animação musical sobre a Bela e a Fera lançada pela Disney em 1991 foi um tremendo sucesso. Foi a primeira animação a ser indicada ao Oscar de melhor filme e fez parte da infância de uma geração inteira, justamente a minha. Podemos até nos considerar sortudas de termos pego essa fase de “revival” da Disney, onde ela lançou algumas das suas melhores animações e atualizou um pouco suas lições de moral, antes bastante antiquadas.

Agora, tínhamos protagonistas um pouco menos passivas e que sonhavam com outras coisas além de romance, embora isso acabasse quase sempre fazendo parte da vida delas de alguma forma no final. Bela é uma das personagens favoritas de muita gente, principalmente por se mostrar apaixonada pela leitura. Entretanto, com o passar do tempo comecei a ler mais sobre o filme e perceber mensagens bem problemáticas em meio a todas as outras qualidades da história.

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O filme começa nos apresentando ao feitiço jogado sobre a Fera. Ele era um príncipe egoísta que vivia em seu castelo curtindo sua riqueza enquanto o resto da França arava o solo e puxava água do poço, até que um belo dia uma velha senhora bateu à sua porta e ele se recusou a ajudá-la por causa de sua aparência não muito agradável. Então a senhora se revelou uma bela feiticeira e o condenou a viver como uma fera horrenda até que ele aprendesse a amar alguém de verdade e fosse retribuído. Como bônus, ela jogou o feitiço no resto do pessoal que morava no castelo, os transformando em objetos domésticos.

Só nesses primeiros minutos de filme já temos alguns problemas. Pra começo de conversa, por que ele tem que aprender a “amar alguém”, no sentido mais amor romântico possível? Ele não deveria aprender a respeitar as pessoas em suas diferenças? Qual a revolução em amar alguém totalmente padrão-de-beleza-europeu como a Bela? E o fator “retribuição” complica mais ainda as coisas, pois trata receber amor como questão de merecimento. Isso poderia fazer sentido na medida em que, pela aparência monstruosa, a pessoa que o amasse o faria ignorando/aceitando a aparência. Mas isso não quer dizer que ele necessariamente se tornou uma pessoa boa.

O filme considera que ele só irá receber amor se começar a se comportar bem e tratar as pessoas com respeito, mas sabemos bem que na vida real isso está longe de ser verdade, e as coisas são bem mais arbitrárias do que gostaríamos. Nem sempre as pessoas são amadas porque merecem, mas filmes como esse podem incutir a ideia de que se você sofre uma rejeição, é porque a culpa é sua, você não se esforçou o bastante.

Em segundo lugar, por que a feiticeira se transformou numa bela mulher em vez de continuar como uma velha senhora? Coincidência ou não, o príncipe só se desculpou depois disso. Será que o filme está nos querendo dizer algo sobre sobre a relação entre aparência e poder? Como o tema central do filme é esse, penso que talvez não seja só uma coincidência.

Em terceiro lugar, a feiticeira transforma o príncipe em uma criatura horrenda para que ele sinta na pele o que é ser discriminado. A princípio isso parece ser um bom castigo, mas é na verdade algo mais complexo, que pode esconder uma perpetuação da discriminação aí no meio. Existem alguns outros filmes que tratam do mesmo tema, como Distrito 9 e Shrek, mas somente no último essa questão é realmente resolvida. Em Shrek, o personagem-título consegue ser aceito pelos outros como realmente é, justamente porque o filme se propõe a subverter contos de fadas. O mesmo não acontece em A Bela e a Fera.

O feitiço serve não como uma lição para o príncipe aprender a respeitar os outros, mas como uma punição. Ele não aprende a amar e respeitar sua nova aparência, e sim a buscar de tudo para se livrar dela. No máximo, o príncipe pode ter aprendido que ele não deve destratar os outros para não correr o risco de se tornar um deles! Isso é problemático quando vemos essa dinâmica aplicada de fato na vida real, quando vemos pessoas sugerindo que chupar uma r*** é solução para homofobia, ou desejando que uma pessoa racista se torne negra pra ver o que é sofrer. Essas pessoas não percebem que estão tratando homossexualidade e cor da pele como punição, justamente o caminho contrário ao da aceitação.

Em seguida, somos apresentados à protagonista da história: Bela, uma jovem que se mudou para uma vila no interior da França com seu pai inventor. Bela gosta de ler e é bondosa com todos, mas vive entediada com a rotina sem graça da vila e se sente tremendamente deslocada das pessoas de lá. A multidão canta, numa belíssima canção que serve como exposição sobre Bela, que ela é estranha e só vive com a cara enfiada num livro, “definitivamente diferente de nós”.  Bela até tenta conversar com alguns, mas o único que dá a mínima bola pra ela é o dono da livraria onde ela aluga livros repetidos, porque já leu todos os disponíveis.

O filme sugere sutilmente que a diferença entre Bela e os habitantes da vila é intelectual, eles são ignorantes e fofoqueiros, ao passo que Bela cuida da sua própria vida e gosta de ler. Porém, podemos entender que a diferença também pode envolver alguma certa arrogância de classe. Apesar disso não ficar explícito, temos essa noção ao ver as diferenças entre as maneiras rudes do resto da vila e o refinamento de Bela, assim como o gosto pela leitura indica um maior acesso à educação, algo relacionado à situação financeira. Além do mais, os únicos com quem Bela finalmente se identifica e consegue formar laços são os habitantes do castelo da Fera, muito mais bem-de-vida que os da vila.

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Em musicais existe o que chamamos de “I Want Song”, onde o personagem canta sobre suas aspirações na vida. (Lembram que o que Simba mais queria era ser rei? Pois é, essa é a “I Want Song”.) Na de Bela, ela canta que quer “viver num mundo bem mais amplo” e achar “alguém pra me entender”. Só que infelizmente essa primeira aspiração é bem vaga, e acaba nunca se concretizando de fato. A menos que consideremos “amplo” o mundo fechado do castelo. Quando o pai de Bela se perde na floresta a caminho de uma feira, acaba se tornando prisioneiro da Fera. Por sorte, o cavalo, Felipe, volta para avisar Bela e a conduz até o paradeiro do pai (sempre me questionava quando criança como Bela e o cavalo conseguiam se comunicar desse jeito tão preciso. Ela fala “me leve até meu pai” e o cavalo entende!).

Ao chegar ao castelo, Bela se voluntaria para virar prisioneira no lugar do pai. A Fera aceita, contanto que ela fique para sempre! Todos no castelo notam logo o quanto ela é bonita e começam a pensar que ela pode ser a salvação para o feitiço, se conseguirem fazê-la se apaixonar pela Fera. A Fera inicialmente a trata com ataques de fúria, a obrigando a jantar com ele, não muito diferente de Gaston. Bela o enfrenta e se recusa a jantar, mas ele se vinga ordenando que os criados a deixem passar fome. O comportamento extremamente abusivo da Fera infelizmente é minimizado pelo filme, tratado por todos os personagens como meros ataques de nervos que ele pode aprender a controlar se se esforçar o bastante. Para ser mais eficiente, os criados aconselham a Fera a ser gentil com Bela, e conquistá-la com cavalheirismo e presentes. E assim ele faz.

Outro problema que surge aí é que o filme trata os novos gestos da Fera como românticos. Quando analisamos com atenção, podemos ver que a Fera está claramente tentando comprar os afetos de Bela. A biblioteca? O ápice da compra. No fim, eles acabam mesmo se apaixonando um pelo outro. Mas isso é mera conveniência da história. Misturando os gestos da Fera com o “apaixonamento” dos dois, o filme confunde as atitudes como românticas, e nos faz considerá-las bem intencionadas e benéficas. Não esqueçamos que a Bela é prisioneira no castelo, e a tal Síndrome de Estocolmo é o motivo pelo qual essa história é mais criticada.

Bela não tem poder de decidir nada ali dentro, nem de ir embora. O filme ameniza essa noção de prisão nos mostrando que Bela é autorizada a andar pelo castelo, faz amizade com os funcionários, e inclusive dança e canta com eles. Em várias cenas eles também tentam animá-la dizendo que não vai ser tão ruim assim, como se ela fosse uma criança chateada porque acabou de mudar de escola, e não uma prisioneira. Lumiere também fala isso algumas vezes durante o filme “ela não é nossa prisioneira, é nossa convidada”. De fato, o filme tenta disfarçar o tempo todo a condição de prisioneira de Bela, nos fazendo crer que ela tem muitas liberdades lá dentro, e até alguns luxos, como os vestidos chiques que eles magicamente arranjam para ela. Ela até toma algumas liberdades, como quebrar a regra mais severa que a Fera impôs: “jamais vá à Ala Oeste”.

Eu, particularmente, gosto bastante desse lado curioso e rebelde da Bela, principalmente porque ela enfrenta homens que tentam impor suas vontades sobre ela. Porém, logo depois que a Fera a pega no flagra na Ala Oeste, ela sai correndo e foge do castelo PELA PORTA DA FRENTE. Ela simplesmente abre os portões e sai correndo. Oras, se ela podia fugir tão facilmente, porque ela não tentou isso antes? Cenas como essa são péssimas porque nos passam a impressão de que mulheres permanecem em situações de abuso porque querem. No caso de Bela, ela deu sua palavra prometendo que iria ficar para sempre, mas nem num desenho animado essa justificativa é fácil de acreditar. Isso poderia servir como motivo para culpá-la pela situação, afinal ela “escolheu” trocar de lugar com o pai. Mas, na verdade, essa foi uma solução desesperada que ela encontrou em um momento de estresse, onde não havia muitas escolhas a serem feitas. Pra piorar, ela é atacada por lobos durante a fuga. A Fera aparece e a salva, e ela retorna ao castelo e cuida das feridas dele como gratidão. Parece muito com uma briga de casal, não?

Quando eu era criança, inclusive achava ruim a atitude de Bela na Ala Oeste. Ali era claramente o “quarto” da Fera, onde ele guardava seus pertences mais íntimos, a pintura de sua forma humana rasgada, o espelho, a rosa do feitiço. E Bela sai tocando nas coisas, mexendo em tudo, quase estraga a rosa sem saber que ela tem uma importância tão grande para a Fera. Eu achava essa atitude dela meio abusada e invasiva. Mas só depois entendi que, mesmo a Fera tendo direito de não gostar dela bisbilhotando suas coisas, ele não tinha direito de agredi-la. Claro que, por ser um filme infantil, a Fera “apenas” grita com ela e quebra tudo no quarto, o que pode não parecer tão grave quanto machucá-la fisicamente, mas não deixa de ser uma atitude muito agressiva, e que infelizmente sabemos o quanto é comum na vida real, e geralmente precursora das agressões físicas em si.

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A partir daí os dois aprendem algumas lições válidas sobre os limites que devem respeitar e passam a se dar bem melhor. Entretanto, a Fera continua tratando Bela como prisioneira. Cadê a gratidão por ela ter voltado para cuidar dele? Ela podia tê-lo largado lá, ferido na neve, e voltado pra casa. E ele nem sequer agradece pelos cuidados ou considera libertá-la em retribuição. Ela é quem agradece por ele ter salvado sua vida, ao que ele responde “disponha”. Arrogância pouca é bobagem. Os dois começam a passar mais tempo juntos, principalmente porque agora a Fera a trata melhor. Mas não podemos esquecer que, embora enfeitado, Bela ainda habita um cativeiro.

Logo após a dança, Fera pretende se declarar, na esperança que Bela faça o mesmo e assim quebre o feitiço. Mas ela se mostra triste e diz sentir saudade do pai. Fera empresta o espelho mágico pra que ela possa ver como o pai está e matar a saudade. Mas o pai está doente e ela se desespera. A Fera então fica com dó e resolve finalmente libertá-la para que ela possa cuidar do pai, como se ele estivesse fazendo o maior favor do mundo, o maior ato altruísta abrindo mão de quebrar o feitiço por ela. Ela vai embora e ele entra em depressão. Os serviçais do castelo ficam tristes também, com sua única esperança de voltar a serem humanos indo embora. Isso reflete um conceito bastante recorrente no imaginário ocidental de que amar significa se sacrificar pelo outro. A Fera só demonstra que realmente ama Bela quando é capaz de abrir mão de seus interesses por ela. Sem tocar no fato de que seus planos são totalmente escusos, esses atos de auto-sacrifício são complicados ao reforçar a noção de que, para provar seu amor, uma pessoa deve abrir mão de seus planos e interesses pela outra, pressão que geralmente cai mais sobre as mulheres na vida real. Muito frequentemente, esse sacrifício também é representado com o personagem arriscando a própria vida para salvar o outro. Bela se sacrifica várias vezes também, principalmente pelo pai, o que o filme considera como prova de seu amor por ele.

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O ruim dessa história toda é que todos armam o maior complô para que Bela se apaixone, e nunca abrem o jogo com ela, nem mesmo no final. Aparentemente, ninguém nem nunca explica o feitiço para ela, nem mesmo quando ela estranha os objetos do castelo serem animados. Nunca ficamos sabendo se ela descobre que há um feitiço ou se ela simplesmente aceita que aquele castelo é meio maluco mesmo. Pelo visto no final ela descobre, mas nunca a vemos questionar sobre isso, nem vemos ninguém contando a ela. De qualquer forma, não iria adiantar alguém contar “precisamos que você se apaixone para quebrar nosso feitiço”, até porque paixão não funciona desse jeito. Mas a situação não deixa de ser super problemática, Bela envolta em uma armação que nem sabe que está acontecendo. Ela é literalmente usada, mas o filme não nos faz enxergar dessa forma. O clima de romance disfarça tudo.

Enfim, ao voltar pra casa para cuidar do pai, Bela é surpreendida por uma emboscada de Gaston. Ao saber da Fera, ele lidera um grupo de aldeões em direção ao castelo, para matar a Fera como um animal de caça. Só que a Fera está deprimida e não reage, talvez pensando que deve ser melhor morrer do que continuar vivendo como fera. Mas os criados do castelo resistem e enfrentam os invasores. Bela vai atrás da Fera, e só ao vê-la é que ele ganha forças pra reagir contra Gaston, que acaba caindo no penhasco após escorregar. É bom mostrar Gaston morrendo “sozinho”, sem a Fera agir deliberadamente contra ele com esse propósito. Porém, morte como solução para acabar com vilões não parece algo tão bom de ser mostrado em filmes infantis, ao invés de algum tipo de prisão, em que vilões como Gaston seriam responsabilizados por seus atos.

Por outro lado, uma das qualidades do filme é justamente a caracterização do vilão. Gaston em outro filme seria o típico herói: branco, fortão, convencionalmente bonito, que deseja resgatar a mocinha das garras do monstro que a sequestrou. Neste filme, Gaston é o vilão, e inclusive encarna uma representação bastante realista de homens da vida real, que assediam mulheres, não aceitam “não” como resposta, e estão dispostos a usar violência para conseguir o que querem. Felizmente, o filme mostra essas atitudes como condenáveis. Gaston assedia Bela, a persegue pela rua, desdenha de seu intelecto, e não escuta absolutamente nada do que ela diz. Arranja um casamento com ela sem consentimento, e chega ao cúmulo de chantageá-la, ameaçando internar seu pai num asilo caso ela não aceite casar com ele.

É até curioso que Gaston seja um personagem tão caricato, mesmo sendo um dos vilões da Disney com as atitudes mais parecidas com pessoas da vida real. Nas cenas em que Gaston aparece assediando Bela ou tramando planos para conquistá-la, somos levados a achar graça de seu pouco intelecto, e rimos do estereótipo do cara musculoso burrão. Gaston não parece tão ameaçador nessas cenas, ainda mais porque Bela o enfrenta todas as vezes.

O único momento em que Gaston é retratado como uma pessoa realmente ameaçadora é quando ele resolve perseguir e matar a Fera. Animações infantis são oportunidades incríveis de introduzir e discutir temas importantes para crianças, e para adultos também. Apesar de acertar fazendo de Gaston um vilão e nunca endossar seu comportamento, o filme poderia se beneficiar de tratar suas atitudes como algo um pouco mais sério e ameaçador. E apesar de ser positivo o fato de Bela sempre enfrentá-lo sozinha, seria muito benéfico mostrá-la pedindo ajuda e obtendo o apoio de outros para se livrar dele. Quando Bela o trata como uma simples chateação, somos levados a subestimar a gravidade da perseguição de Gaston. E também temos a falsa ideia de que enfrentar um cara desses sozinha não traz consequências tão graves. Incentivando a busca de ajuda, estamos ensinando crianças desde cedo a buscar ajuda, e também encorajando outros a apoiar mulheres e outras pessoas nessas situações.

Voltando ao final do filme, a Fera cai ferida, Bela diz que o ama, o feitiço é quebrado bem a tempo, pra aumentar a dramaticidade. Todos voltam a ser humanos, e a Fera volta a ser um príncipe loiro de olhos azuis, quebrando justamente a mensagem central do filme. Teoricamente, a lição de moral é que você deve julgar as pessoas apenas pelo que elas são por dentro, mas o filme usa a aparência exterior como parâmetro de caráter o tempo inteiro, com exceção de Gaston. O exterior monstruoso da Fera indica seu caráter rude e agressivo, e quando ele se recupera, sua aparência “boa” é resgatada. A beleza suave de Bela indica sua bondade e pureza, e até com Lumiere e Horloge rola uma vibe cômica à la o gordo e o magro.

Inclusive, o caso de Bela é ainda mais notório. Sua beleza é ressaltada o tempo inteiro pelos outros personagens. Seu próprio nome se refere à sua beleza. E, claro, ela está totalmente dentro do padrão estético europeu, inclusive com sua cintura impossivelmente fina, característica de todas as princesas Disney. Ninguém elogia Bela pelo seu intelecto ou por sua integridade moral, apesar do filme apresentar essas características como qualidades. Gaston se apaixona por ela apenas por causa da beleza, e a Fera idem, é a única coisa que mencionam sobre ela. E parece ser a que mais importa.

Além disso, a mensagem se confunde na execução posta pelo filme. Em vez de a Fera ter que aprender a amar as pessoas apesar da aparência delas, ele é que tem que conquistar o afeto dos outros apesar de sua própria aparência. Será que deveria ser tarefa de quem é discriminado convencer os outros a gostarem dele? E, de qualquer forma, Bela não demonstra rejeitar a Fera por causa disso. Ela o rejeita por causa de seu comportamento agressivo. Passado o choque inicial após vê-lo pela primeira vez, a aparência da Fera nunca parece ser um empecilho real para ela se envolver com ele.

Na canção “Something There” (ou em português “Alguma Coisa Aconteceu”), Bela percebe a mudança de comportamento da Fera: “ele foi bom e delicado, mas era mau e era tão mal educado”, “Como ele está mudado”, etc, e isso é o que realmente importa para ela. Quando a Fera para de se comportar agressivamente, a aparência parece não oferecer também barreira nenhuma, e Bela se sente confortável para se aproximar dele. Mesmo quando começa a se apaixonar, Bela nunca questiona “nossa, mas ele é meio animalesco né…isso não vai funcionar”. Se o único obstáculo da Fera na história é o comportamento, é reforçada a noção de que a aparência animalesca está ali apenas para refletir esse caráter interior. Ao se curar, ele é recompensado com sua bela aparência novamente, que agora reflete seu novo espírito.

Se ele pudesse permanecer como fera e ainda assim ter um final feliz, a mensagem faria sentido, mas não é o que acontece. O filme conduz todo mundo a interpretar a mensagem final como algo exatamente oposto ao que ele realmente transmite. Na verdade, o filme está nos dizendo que beleza importa sim, e muito. Discursos sobre aceitação proferidos apenas por pessoas convencionalmente bonitas são palavras vazias, afinal essas pessoas já são aceitas facilmente na sociedade. Basta lembrar que em O Corcunda de Notre Dame, o Corcunda não fica com a garota no final, refletindo o que a Disney realmente pensa.

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O fato de Bela quebrar o feitiço também incorre naquela velha história que é bastante prejudicial às mulheres: a de que elas conseguem mudar um cara com amor. Isso é uma verdadeira armadilha psicológica que faz mulheres aceitarem atitudes abusivas na esperança de que conseguirão modificar o cara com o tempo, e se sentirem culpadas caso ele não mude. O filme nos faz crer que a Fera se tornou uma pessoa melhor porque foi tocado pelo amor de Bela. Infelizmente, nada poderia ser mais diferente da realidade.

Por fim, um dos aspectos mais tristes do filme é perceber o destino de Bela. Ela queria encontrar um mundo mais amplo, em que pudesse viver aventuras e encontrar pessoas que a compreendessem. Mas sua “aventura” acabou se resumindo a ser prisioneira e cuidar dos outros. Ela se sacrifica várias vezes para cuidar de seu pai e da Fera, indo de encontro ao que ela realmente quer. E no fim ainda se casa com seu algoz. Numa embalagem bonitinha tudo nos parece maravilhoso.

Claro que o filme tem várias qualidades, traz muitas lições positivas em relação ao que vinha sendo feito antes, mas ainda deixa a desejar em muitos aspectos. Um dos maiores méritos está na parte artística, coisa que a Disney sempre dominou muito bem. Animações de longa-metragem costumavam levar 4 anos para serem feitas, mas A Bela e a Fera foi feita em apenas 2 anos, e ainda conseguiu apresentar todo o capricho visual que podemos constatar, com destaque para os detalhes da arquitetura gótica no castelo da Fera.

As músicas e trilha compostas por Alan Menken também são um ponto alto do filme, nos envolvendo com uma beleza magnífica. Bastava modificar alguns (muitos) aspectos tão problemáticos da história, para que A Bela e a Fera se tornasse um filme sublime. E, para quem se pergunta se os problemas vem da história original, basta lembrar que a Disney costuma modificar tudo a seu bel-prazer, vide o mais recente Frozen, que, embora considerado uma adaptação, apresenta quase nenhuma correspondência ao conto original.

E se a Fera se arrependesse de prender Maurice, se desculpasse e o soltasse logo em seguida? E se Bela voltasse ao castelo por contra própria e iniciasse um relacionamento saudável com a Fera e os criados, talvez quebrando o feitiço de forma espontânea, e não egoistamente calculada por eles? E se conseguissem achar a feiticeira e mostrar pra ela o quão inadequado foi o feitiço que ela jogou no castelo? São possibilidades que, infelizmente, vão ficar só na nossa imaginação.