No ano passado, o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro foi um filme curto, apenas 80 minutos, que contava a história de duas mulheres que pouco falavam e, mesmo assim, conseguiram encapsular boa parte da história da Polônia pós-Segunda Guerra durante a ditadura stalinista no começo da década de 60.
A conversa ao entorno de Ida nas semanas que precederam a premiação, entretanto, girou em torno da fotografia estonteante da obra, que rendeu outra indicação ao filme, algo raro quando se trata de filmes estrangeiros e o Oscar. Sua capacidade de contar histórias que ultrapassam o individual para abarcar o coletivo, embora menos comentada, permanece notável. A diretora turco-francesa Deniz Gamze Ergüven exibiu uma habilidade narrativa semelhante este ano com seu primeiro longa-metragem, Cinco Graças, que concorre ao mesmo prêmio que Ida ganhou em 2015.
Ergüven nos apresenta cinco irmãs cheias de vida e liberdade. Órfãs, as cinco moram com a avó em uma pequena cidade do interior que, com crescente conservadorismo, observa o comportamento das meninas com reprovação. Após brincadeiras com garotos na praia, comentários maldosos chegam aos ouvidos do tio das meninas e ele obriga as irmãs mais velhas a passar por um teste de virgindade. Depois disso, as cinco são submetidas a mais uma série de situações humilhantes: grades são instaladas em toda a casa, elas param de ir a escola, casamentos começam a ser arranjados para as mais velhas.
A falta de direitos é especialmente amarga quando eles um dia nos pertenceram. O mais doloroso para elas ao lidar com sua nova situação é saber que antes eram livres. Felizmente, é essa mesma consciência que mantém a rebeldia viva dentro delas, andando de calcinha pelo quintal– mesmo sendo obrigadas a usarem vestidos “cor de cocô” do lado de fora – fugindo de casa para assistir a um jogo de futebol, fazendo sexo anal com o namorado para conservar o hímen intacto.
Contra a perda de direitos, as Cinco Graças ainda possuem algumas ferramentas com que lutar, mas a situação se agrava de forma preocupante quando elas se veem isoladas. A separação das irmãs é o que as debilita mais profundamente. A atmosfera da casa a que estão confinadas se torna cada vez mais opressora conforme elas são separadas uma das outras.
Ergüven nos mostra uma geração de mulheres turcas que está sendo reprimida, mas ao mesmo tempo nos dá esperança em sua união. Juntas elas são mais fortes. Vemos essas meninas serem submetidas a testes de virgindade e serem trancadas como princesas em suas torres, e quem as salvará não será nenhum príncipe. Elas só podem contar com elas mesmas e suas irmãs para sobreviver.
A Turquia foi um dos primeiros países do mundo em que mulheres conquistaram o direito ao voto, na década de 30, muito antes da França, por exemplo. O país possui uma população majoritariamente mulçumana e é oficialmente laico. Da década de 80 a 2000 o movimento feminista teve grande força no país e, desde 1983, o aborto até a décima semana de gestação é legal. Em 2003, entretanto, com a chegada do partido conservador AKP ao poder, muito do progresso que havia sido conquistado até então caiu por terra.
O atual presidente turco, Tayyip Erdoğan fez declarações públicas dizendo que métodos contraceptivos são traição e que ameaçam a linhagem turca. Desde 2012, a constante comparação entre o aborto e assassinato feita por Erdoğan tem incentivado hospitais públicos a se recusarem a realizar a operação, desafiando a lei vigente. Mesmo em grandes cidades como Istambul, existe uma grande dificuldade em conseguir o cuidado apropriado, o acesso a abortos seguros fica restrito a mulheres que podem pagar pelo procedimento em hospitais particulares. As mudanças no país, entretanto, podem se mostrar ainda mais profundas. Escolas que a princípio eram laicas estão sendo transformadas em colégios religiosos, a educação básica do país está reproduzindo ideais conservadores que podem significar décadas de retrocesso.
A Turquia se encontra profundamente dividida entre dois lados opostos, um progressista, outro retrógrado, não muito diferente do acontece aqui no Brasil e nos Estados Unidos. A ascenção de políticos como Jair Bolsonaro e Donald Trump marca um crescente conservadorismo ao mesmo tempo que grupos de resistência ficam mais fortes. O movimento feminista turco continua a existir e a lutar, e Cinco Graças dá a entender que as mulheres estão muito longe de desistir dos seus direitos sem uma boa briga.
Esses dois filmes, selecionados para a temporada de premiações de 2016, trazem um pouco de alívio por suas temáticas: filmes focados em mulheres, coisa rara de se ver, e sem serem imersos em violência ou tramas mirabolantes. Brooklyn conta a história de uma garota irlandesa, Ellis, que imigra para os Estados Unidos e fica dividida entre permanecer por lá ou retornar à Irlanda. A Garota Dinamarquesa conta a história de Lili Elbe, a primeira pessoa no mundo a ser submetida à cirurgia de redesignação sexual.
O que esses dois filmes têm em comum é a busca das protagonistas em se encaixar no modelo vigente de feminilidade. Ou melhor, a busca dos filmes por encaixá-las nele, e mostrar como o sucesso delas depende da correta performance dentro desse modelo.
Em Brooklyn, Ellis vive com sua mãe e irmã na Irlanda, e trabalha esporadicamente numa padaria. Sua pequena cidade não parece lhe oferecer boas perspectivas de emprego nem estudo, mas um padre amigo da família lhe arranja um emprego nos Estados Unidos. Ellis embarca para a viagem até o novo país e no navio conhece sua colega de quarto: uma jovem dondoca que, além de não ser muito afável em sua primeira interação, faz questão de reparar na pouca importância que Ellis dá para a própria aparência. Supondo ser por causa de ingenuidade e pouca experiência, ela adota Ellis como amiga temporária e lhe ensina como se arrumar e se portar para parecer confiante na hora da vistoria da imigração. A dondoca é caracterizada como uma mulher mais experiente, tanto pelos conselhos como pelo jeito de se vestir e agir: usa roupas elegantes e maquiagem forte, além de ser confiante, falar sem rodeios e se vingar quando necessário, como quando dá o troco nas vizinhas de quarto que trancaram o banheiro. Ao desembarcar em Nova York, Ellis tenta seguir os conselhos e se arruma, mas com um vestido um tanto cafona, que era tudo que ela tinha, e uma maquiagem leve, marcantemente diferente do de sua conselheira. A maquiagem, aliás, será um aspecto distintivo de Ellis ao longo do filme.
Ao passar com sucesso pela imigração, Ellis se instala em um pensionato onde moram mais outras várias mulheres. O filme então nos mostra diversas cenas de jantar, onde todas comem juntas com a proprietária. As mulheres são todas bastante tagarelas, gostam de fofocar, se arrumar e falar de seus namorados, frequentemente irritando a proprietária, que as condena pelo comportamento e agradece por Ellis ser diferente delas (mais tarde, Ellis é recompensada com um quarto maior em detrimento das outras justamente por ser uma “moça direita”). Novamente, essas mulheres usam maquiagem forte e batons em tons mais escuros. Inicialmente caçoam de Ellis, mas logo ajudam a embelezá-la para que ela possa completar o último passo que falta rumo à feminilidade perfeita. Sim, porque é assim que Ellis é caracterizada, com o reforço de vários personagens ao longo do filme. Ela é diversas vezes chamada de diferente em um tom positivo, “você não é como as outras garotas”, marcando a diferença entre a feminilidade vulgar e indesejada das outras mulheres, e a pura e comportada de Ellis. Ela é uma pessoa afável, embora um pouco tímida, obediente, inteligente e estudiosa. A única coisa que lhe falta é um toque na aparência, que ela soluciona usando roupas mais elegantes, mas não extravagantes, e uma maquiagem discreta, e não chamativa como a das outras. Agora sim, ela está pronta para ir atrás do que a sociedade acha que uma mulher precisa: um homem.
As moças são todas encorajadas a irem aos bailes, onde há vários rapazes com quem dançar e, quem sabe, formar um par para a vida. Um dia Ellis recebe a incumbência de levar uma garota nova do pensionato a um dos bailes, mas a garota também é insuportável e Ellis não vê a hora de se livrar dela. Eis que surge um rapaz tímido e a chama pra dançar. Ela aceita, e eles acabam conversando no caminho pra casa depois de sair de fininho e deixar a outra garota sozinha no baile, coitada. Ellis e o rapaz continuam se encontrando nas semanas seguintes, e isso milagrosamente vai curando a saudade de casa com que ela sofria desde que chegou. Após começarem a namorar, isso também cura a timidez de Ellis, fazendo com que ela finalmente se saia bem no trabalho. Ela era vendedora em uma loja, e ao esperar a devolução do troco para as clientes, era encarregada de conversar com elas e fazê-las se sentir em casa. Porém, tinha muitas dificuldades com sua timidez, mas após o início desse namoro, isso finalmente é resolvido, para o espanto de sua chefe que vem perguntar o que aconteceu. A resposta: “estou namorando”. A chefe, que também é uma mulher elegante e fortemente maquiada, acaba dando mais dicas de beleza ainda para Ellis fisgar de vez o rapaz. E as do pensionato a ensinam a comer spaghetti corretamente para que ela não passe vergonha quando for jantar com a família dele, que é italiana. O sucesso de Ellis na vida se deve quase todo à sua capacidade de aprender a se comportar como o esperado.
Com o tempo, apesar do casal não ter muita química e Ellis não ter certeza sobre seus sentimentos por ele, os dois acabam se envolvendo bastante. Porém, um acidente com sua família na Irlanda faz com que ela tenha que retornar ao país por uns meses. Lá, ela passa um tempo com sua mãe e seus amigos, e a comunidade acaba tentando arranjá-la com outro rapaz local, que em breve vai herdar a propriedade dos pais e parece ser um bom partido. Além disso, a colocam no emprego que sua irmã não ocupa mais. Ela mesma fica impressionada em ver como não havia nada lá para ela antes de mudar de país, e agora parece que todas as portas se abriram. Um importante signo visual é a aparência de Ellis. Seu amadurecimento e experiências ganhas são mostrados através das roupas arrumadas que ela agora usa, e também, claro, a maquiagem clarinha. Tudo parece se abrir para ela, talvez não só por coincidência, mas por causa de sua nova confiança simbolizada pela nova aparência.
Começa aí o conflito do filme (quase perto do seu final!) onde ela fica dividida entre ficar na Irlanda ou voltar para a vida que começou a construir no Brooklyn. Infelizmente, ambas as opções são representadas pelo envolvimento com um homem. Voltar pra um ou ficar com esse outro? Mesmo que aparentemente nos anos 1950 mulheres não tivessem tantas opções para fugir do casamento, existem muitas histórias de mulheres dessa época que não precisam focar necessariamente nisso. Vide, inclusive, filmes ótimos feitos nesse mesmo período como A Malvada, e talvez até mesmo Crepúsculo dos Deuses. Incrível pensar como alguns desses filmes parecem mais progressistas do que os que fazemos hoje!
Nem tudo está perdido, porém. Apesar de toda a performance de feminilidade que tem que aprender, Ellis é representada como alguém mais ou menos livre para fazer suas próprias escolhas. Até mesmo a mãe, apesar de não concordar sempre, a deixa livre para isso. Ela também faz um curso de contabilidade em que é a única mulher da turma, e não é repreendida ou desmerecida em nenhum momento por isso. Pelo contrário, suas boas notas são comemoradas e parabenizadas pelas colegas. Ellis também não se apaixona perdidamente pelo rapaz do Brooklyn, ela demora mais a desenvolver sentimentos por ele e tem dificuldade em expressar o que sente, dando uma representação mais realista e justa do que mulheres podem passar, e que tão raramente aparecem em filmes como este.
É uma pena que tantas mulheres do filme sejam concebidas como contrastes a Ellis. Com exceção da mãe, irmã e melhor amiga (que pouco aparecem), as outras mulheres do filme são retratadas como superficiais e vaidosas, e as mais velhas como megeras. A chefe da padaria é uma velha malvada e cruel, e a dona do pensionato é uma velha conservadora e moralista. O alívio vem pelo menos em perceber que na primeira meia hora não aparece quase nenhum homem no filme. As interações são todas entre mulheres, sobre suas vidas e seu cotidiano. Os homens só aparecem mais tarde. Isso é tão raro em filmes que chega nos dá uma alegria ao encontrar um assim, que foque na vida de mulheres e as mostre interagindo verdadeiramente umas com as outras.
A Garota Dinamarquesa, por sua vez, fala sobre feminilidade também como performance, mas sob o ponto de vista da quebra da norma binária representada pela transgeneridade. Ambos os filmes foram dirigidos por homens, mas isso se torna um problema muito maior em A Garota Dinamarquesa por diversos motivos. O primeiro, é que o diretor Tom Hooper parece realmente não saber muito sobre o tema que está retratando, a começar por escalar um ator cis, Eddie Redmayne, em um papel que poderia ter ido para uma mulher trans. Fala-se demasiadamente sobre a importância de minorias terem chance de contarem suas histórias e se verem representadas, portanto colocar um ator cis para representar a história de uma mulher trans é equivalente ao tempo em que mulheres eram interpretadas por homens no teatro shakesperiano porque eram proibidas de atuar, ou no começo da era hollywoodiana em que atores brancos faziam blackface enquanto proibiam negros de atuar. Colocar atores cis em filmes como esse é impedir que atrizes trans possam contar e interpretar suas próprias histórias. Homens e mulheres cis ganharam Oscars por esses papéis, vide Jared Leto e Hilary Swank, mas até hoje pessoas trans mal são consideradas nos castings. Só quando atrizes e atores trans tiverem espaço e reconhecimento suficientes é que isso deixará de ser um problema. Se Tom Hooper tivesse pesquisado suficientemente sobre o tema de seu filme, certamente saberia disso.
O segundo motivo é que o filme foi claramente pensado para o público cis. Não poderia ser diferente, já que Hooper provou não ter feito o dever de casa mesmo (e não à toa muitas pessoas trans mostraram sua indignação com o filme). O filme começa com o casal feliz Lili e Gerda, ambas pintoras residentes de Copenhagen, mas antes da transição de Lili. Elas tem inclusive uma vida sexual ativa e proveitosa como casal heterossexual, e o trabalho de Lili é mais valorizado que o de Gerda, embora estejam na mesma profissão. Um belo dia, Gerda pede para que Lili substitua uma modelo para que ela possa terminar o quadro que está pintando, e Lili então se deleita silenciosamente com as vestimentas femininas. Isso evolui para brincadeiras em que Lili aparece assumindo a identidade feminina e indo como mulher a festividades. Logo, Lili mostra que isso não é só uma brincadeira, mas sua real identidade, para o desespero de Gerda.
Embora alguns diálogos entre o casal mostrem que Lili não foi uma coisa que começou agora, a trama é composta de forma que leva o espectador a interpretar dessa forma, de que um evento impulsionado por Gerda deu início à transição de Lili, e não que ela sempre foi assim, embora reprimida de se manifestar. E o pior: isso é mostrado por meio da performance da feminilidade padrão, associada a roupas e trejeitos. O filme mostra que Lili é uma mulher não porque ela se sente como tal, mas porque ela admira e acaricia roupas femininas, e observa cuidadosamente gestos femininos para imitá-los. Lili só passa a ser uma mulher quando ela pode performar feminilidade tal qual uma mulher cis. Ela começa a perguntar se está bonita o bastante, e a sorrir timidamente escondendo o rosto, enquanto busca por aprovação. Começa a largar a pintura sem nenhum motivo, ainda mais visto que era considerada uma boa pintora, e vai trabalhar numa loja vendendo artigos femininos. Além disso, ela passa a não ter mais interesse nas relações sexuais com Gerda, que magicamente antes da transição iam muito bem, o que é ou uma falha lógica do roteiro em não mostrar o desconforto que Lili talvez sempre tenha sentido nessa relação, ou não explica porque a partir da transição Lili começou a considerar sua relação com Gerda incompatível se antes ia tão bem.
O que é pouco discutido é o que leva as mulheres e homens trans a buscarem tanto o encaixe nessa performance, a fim de conseguirem o reconhecimento sobre seu gênero. Ora, não basta nem para pessoas cis nascerem com um determinado sexo para serem consideradas “mulheres de verdade” ou “homens de verdade”. As sociedades criam definições específicas e, de uma certa forma, bastante arbitrárias de como cada um deve se comportar a fim de performar seu gênero da forma esperada e considerada correta. Mulheres e homens são constantemente ensinados e policiados para se comportar e aparentar o modelo desejado, tal como vemos nas tantas lições de feminilidade dadas a Ellis em Brooklyn. Ellis não pode ser uma mulher tímida e desarrumada. Ela tem que aparentar e se comportar de uma determinada maneira ideal esperada de uma mulher, para poder funcionar em sociedade sem ser importunada. Para Lili e outras pessoas transsexuais, essa é uma tarefa duplamente árdua. As sociedades mostram pouca tolerância a alguém que nasceu com um genital mas não procura a performance associada a ele. É aí que surge a importância tão grande que é dada à cirurgia de redesignação sexual. No senso comum das pessoas cis, o que uma pessoa transexual mais quer é fazer a cirurgia e aí então poder viver como uma mulher ou homem completos. (Há uma entrevista bem interessante onde a cartunista Laerte fala sobre isso). Não é concebível nesse senso comum que uma pessoa se sinta plenamente confortável em um gênero e tenha um genital associado a outro. Só é considerado que uma mulher trans pode ser concedida o título de mulher de verdade se ela tiver aparência de mulher cis, comportamento de mulher cis e genital de mulher cis. Só passando por cirurgia para conformar seu genital é que a sociedade normativa pode pensar em reconhecê-la como tal. Apesar disso, como sempre, os filmes tratam esses assuntos como problemas internos dos indivíduos, nunca investigando o papel social nessa conformação.
E o pior pecado deste filme é desviar o foco de Lili para Gerda. Ao invés de focar em Lili e seus pensamentos e conflitos, o filme se preocupa muito mais em mostrar como suas decisões afetam sua esposa. Isso mostra claramente o ponto de vista do filme, por quem e pra quem ele foi feito, e com quem devemos nos identificar: a pessoa cis que é afetada pelas decisões da pessoa trans. Enquanto Lili se olha no espelho e sorri timidamente pelos cantos, é Gerda quem tem o arco narrativo do filme, que entra em conflito, aprende, cresce e se modifica. Em um momento, Gerda é até chamada de “uma garota dinamarquesa”, emulando o título do filme e nos fazendo crer que é ela a garota do título. O filme rouba Lili do protagonismo de sua própria história e a coloca sob o ponto de vista estrangeiro que ela nunca deveria ter.
Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.
A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.
A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.
O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.
Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.
Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.
Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.
Ou, pelo menos, é o que diz Brian Sewell, ignorando nomes como Georgia O’Keefe, Louise Bourgeois, Frida Kahlo e muitas outras. É verdade que Sewell estava apenas sendo misógino, mas sua fala nos lembra que o lugar da mulher na arte é sempre de resistência e marginalização. Aquele lugar pelo qual elas tiveram que lutar com unhas e dentes. Ainda assim, nunca serão vistas como merecedoras dele – elas nunca serão consideradas “grandes artistas”.
A ideia de dar as costas a esse conceito de “grande” em que só cabem homens me atrai cada vez mais.
Este é um espaço negativo. Por “espaço negativo”, refiro-me ao que está em volta do objeto, o que está vazio, em branco. O espaço positivo já está cheio demais, saturado, por isso procuramos um lugar para nós, mesmo que ele esteja além da margem do que é considerado importante, na esperança que as nossas vozes se juntem a outras e outras e outras… até que, juntas, nos tornemos algo maior.
Estamos cansadas do que é definido como “universal”, do papo que se aproveita de uma suposta neutralidade para transmitir ideias e estéticas que certamente são, também, políticas. Não esperamos que abram-se magicamente portas para nós, vamos nos fazer ouvidas, nossas críticas, nossas obras de arte, nossos filmes, nossas análises estão aqui para ficar. Somos mulheres, realizadoras, escritoras, queremos ocupar espaço, queremos escutar outras vozes e queremos ser ouvidas também, queremos mais cores, mais tamanhos, mais formas de olhar e mais formas de ser, queremos fortalecer e queremos ser fortalecidas.
Enfim, queremos mais do que nos foi dado, mais do que herdamos, mas sem esquecer das nossas raízes e o que nos tornou o que somos hoje. Assim, abrimos nosso Verberenas, um espaço negativo que deseja ser visto.
(o título desse post foi inspirado neste artigo e nessa notícia)
Esse texto foi escrito de forma colaborativa por Glênis e Amanda.