Evelyn Cunningham foi uma jornalista americana envolvida em iniciativas das lutas negras e feministas, uma figura chave na disseminação de notícias durante o movimento dos direitos civis dos Estados Unidos nos anos 1960. Nos corredores da internet, aparecem referências a uma citação dela que diz mais ou menos assim: as mulheres são o único grupo oprimido do qual é socialmente exigido que amem, intimamente, seus próprios opressores.
Ao se falar dos usos políticos do cinema no momento atual, é natural que se caia na questão de filmar o inimigo (1), de como essa relação pode se dar através da câmera, de uma performance da imagem e som e da própria relação entre o eu e o outro que me fere. Essas questões estiveram muito presentes para mim no último Festival de Brasília, em especial com um dos longa-metragens em competição. Pode-se pensar que falo do filme Por trás da linha de escudos, de Marcelo Pedroso, mas não. O filme em questão é Construindo Pontes, da veterana diretora de fotografia Heloísa Passos em seu primeiro longa.
As discussões sobre filmar o inimigo em 2017 muitas vezes se concentraram em uma perspectiva macropolítica de pensar as grandes instituições que detém poder econômico, midiático, social, provavelmente também pelo momento de convulsão política mais óbvia que o país tem vivido nos últimos anos. Dentre os filmes recentes que se pode inserir nesse diálogo, um deles trata a questão da condição feminina de forma mais frontal: o longa-metragem Câmara de Espelhos, de Déa Ferraz (2), usa estratégia de dispositivo ao colocar homens que se voluntariam a opinar dentro de uma sala para assistir a fragmentos midiáticos e dar voz às suas percepções. Antes fosse curioso ou surpreendente este fato, mas não o é: as convicções e opiniões desses homens são parecidíssimas, o que leva a pensar no título do documentário. Apenas um dos homens, um infiltrado cuja posição política supostamente se alinha a da diretora, deve fazer a voz do “homem sensato”, e ainda assim não consegue. Não é capaz de se posicionar nem de apresentar dissenso que incentive debate diante daqueles homens e suas opiniões nocivas, o que é também sintomático.
A distância da diretora em relação aos personagens do documentário, em relação àquele ambiente que ela cria, pode ser quase alentadora se colocada em paralelo ao nosso cotidiano. Estar longe daquela sala fechada repleta de homens cheios de opiniões, presente através do ponto de escuta no ouvido do “homem aliado”, no controle das câmeras e dos microfones e da escolha dos vídeos a serem apresentados para aquele grupo. Uma situação de poder — digito, com ironia, pois esse poder só funciona em comparação ao des-poder usual. Fora do filme, aquelas pessoas não são meros desconhecidos: são colegas de trabalho, irmãos, pais, namorados, maridos, amigos.
Talvez aqui se encontre o ponto que me pegou no filme que leva a essa reflexão, o já mencionado Construindo Pontes, de Heloísa Passos. Heloísa filma um membro da família pelo qual é esperado que se tenha amor. Seu pai. Ela filma alguém que conhece bem, com quem conviveu intensamente durante infância e adolescência. Ela filma alguém que se beneficiou diretamente da ditadura militar brasileira, um engenheiro que trabalhou nas obras iniciadas pelo governo militar. Assistindo ao filme, eu tenho a impressão de que sei que ela sabe que a sua própria trajetória como diretora de fotografia está entrelaçada à vida que seus pais lhe proporcionaram. De forma irremediável, ela faz parte dessa história. (Todos fazemos). Heloísa – mulher de esquerda, artista, homossexual, branca, vinda de uma situação econômica confortável, personagem principal do documentário junto ao seu pai – está com raiva. E não sabe lidar.
É louvável que um filme parta de um lugar tão honesto de conflito interno, não só pela coerência com o quê o move, mas por este ser um lugar de conflito que é pervasivo nesse momento histórico, especialmente para mulheres. No debate do filme durante o Festival de Brasília, comentaram que Heloísa era desagradável no filme, que ela era irritante, e que ele parecia um senhor muito gentil. Um crítico da plateia respondeu comentando que os piores tipos de pais abusivos são os que parecem ser muito gentis. Para além das possibilidades de percepção, parte de uma ética da diretora, das roteiristas e das montadoras expor a situação de uma forma que não delimite com exatidão heróis e vilões, ainda que esteja explícita a opinião e o sentimento da diretora-personagem. O filme permite que o próprio filme “dê errado”. Diversos dispositivos que a diretora propõe não se realizam, eles não funcionam, chegando ao ponto de o pai questionar a proposta da filha sobre o filme durante o próprio filme. O pai parece disfarçadamente se rebelar em relação aos pactos do filme, ao mesmo tempo em que colabora ativamente para o seu fazer: repete takes indefinidamente, aceita que a filha o acompanhe, aceita acompanhar a filha em uma viagem, mas se recusa a ceder a ou talvez sequer a enxergar o que ela espera do filme. E é nessa recusa, nessa impossibilidade de encontro, de resolução, que o filme se faz.
O nó de se colocar na posição de filmar uma relação de desequilíbrio de poder que existe na micropolítica, dentro de casa, dentro da intimidade é algo que me parece de extrema importância no exercício do cinema feito por mulheres. Parafraseando o texto de uma colega (3), “desconstruir” nossos pais/avôs/maridos/namorados/amigos não é militância, não é intolerância política e não é extremismo; é estratégia de sobrevivência. Heloísa saiu de casa pela dificuldade de convivência com o pai e fica a inferência no filme de que isso tem a ver com sua orientação sexual e afetiva. Ao voltar para fazer o filme, a diretora compreende que filmar inimigos hoje intenta talvez reconhecer em que medida podemos ser inimigos também. Fica, para mim, a impressão de que nenhuma ponte entre os dois é construída no filme, que a cada vez que uma começa a se esboçar é logo em seguida derrubada. Cada um olha para uma direção distinta. Se existe alguma ponte ali, ela só pode ser o próprio filme, este sim construído pelos dois. Que seja essa a ponte do título também não requer uma interpretação moralista e pacificadora; uma ponte é só uma ponte, é preciso atravessá-la.
(1) Como filmar o inimigo?, de Jean-Louis Comolli.
(2) Falamos sobre Câmara de Espelhos na época de sua exibição em outro texto do Verberenas
(3) http://www.deixadebanca.com.br/2016/05/desconstruindo-meu-namorado.html
O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.
No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.
Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.
Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).
O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.
Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.
Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.
O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.
Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.
A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.
O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.
O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.
Esse filme mexicano de 1992 foi dirigido por Alfonso Arau é adaptação de um livro homônimo escrito por Laura Esquivel. Conta a história de Tita (Lumi Cavazos), uma menina que ao nascer foi designada para cuidar da mãe (Regina Torné), como parte de uma tradição da família. Por isso, Tita não poderia se casar, mesmo assim, ela se apaixona por Pedro (Marco Leonardi) e é correspondida. A mãe, para impedir que os dois namorem, oferece a mão de Rousaura (Yareli Arizmendi), irmã de Tita para Pedro, que aceita no intuito de morar perto da amada. Assim, Tita tem de viver na mesma casa que os dois, escondendo seu amor. Além de Tita e Rosaura, mamá Elena, a mãe, tem mais uma filha, Gertrudes (Claudette Maillé), que foge e acaba se tornando a líder do exército revolucionário. O filme tem uma relação bem forte com a cozinha, local onde Tita nasceu e passou a maior parte da vida. Além disso, os sentimentos reprimidos da protagonista se concretizam e tomam forma por meio da comida.
Bom, vamos por partes, apesar de ser um filme com mulheres independentes e de família matriarcal (mamá Elena chega a dizer para o padre que “os homens não são tão importantes assim” quando ele a questiona sobre a falta de um em casa), ainda há uma grande valorização do amor Romântico (com letra maiúscula e direito a todos os clichês do Romantismo mesmo) e noção de que as mulheres de bem são as que sabem cozinhar e cuidar da casa. De fato, o filme separa as mulheres “para casar” e as “vadias”, algo que não fica tão incômodo porque acaba sendo uma crítica a esse modelo e ao pensamento da época. Ainda assim, mostram de maneira ridicularizada as mulheres que não sabem cozinhar, por exemplo. Um ponto positivo é que a maioria das personagens com falas são mulheres, quase todas elas são mulheres fortes e com personalidade, com exceção de Rosaura.
O desejo é quase como uma entidade, presente em todo filme. Assim também é com a repressão. Essas duas entidades se materializam nas personagens Tita e Elena. Tita que não pode viver seu desejo, o transfere para Gertrudes, que ao comer o que Tita cozinha, se sente excitada, se masturba, foge de casa… O desejo é retratado com a metáfora do fogo, é de um incêndio que Gertrudes corre pelada para o colo de seu amado. Gertrudes é uma personagem muito interessante, mas que infelizmente não é explorada na história. Ela volta como “generala” do exército revolucionário, é uma mulher imponente e temida pelos homens que participam da revolução, todos a obedecem de cabeça baixa, mas não sabemos o que ela fez nem por onde andou.
Se por um lado as representações femininas quebram estereótipos, por outro reforçam a noção deturpada de feminilidade ligada dotes culinários e do lar. Também há a manutenção da ideia de rivalidade entre mulheres – disputando um homem, nada novo sob o sol. Porém, essa relação de rivalidade fica restrita a Rosaura e Tita. A maior parte das mulheres no filme se ajudam e se fortalecem. Gertrudes, Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) apoiam Tita, porém sem coragem de se colocarem contra a matriarca. Gertrudes secretamente ensina Tita e evitar uma gravidez, por exemplo. As vizinhas/parentes da família também se mostram favoráveis ao amor de Tita. Uma das relações que mais gostei de ver ser desconstruída foi a relação de mãe e filha. Não existe no filme o amor maternal mágico. Também não existe amor incondicional à mãe. Tita chega a dizer para Elena que sempre a odiou, indo contra o final feliz comum em que as personagens se reconciliam e vivem todas felizes para sempre. Esse é um ponto bem interessante, porque o filme não retrata as mulheres como sensíveis e passivas a perdoar qualquer atrocidade que as acontece. O filme se passa entre 1910 e 1934, no México, então é normal que mostre como as mulheres eram criadas para odiar umas as outras, mas mostra sublimemente como essa criação pode ser burlada e como a união feminina é forte.
O filme não mostra empoderamento feminino nem contesta o papel da mulher na sociedade, mas escolhi falar sobre ele por ter personagens complexas com histórias próprias, que não dependem de um homem para acontecer. Na maior parte do filme, o corpo feminino não é tratado como objeto. Em alguns momentos, o filme sexualiza Tita, mas é interessante o fato de em alguns momentos sexualizar o corpo masculino também. Na verdade, em um momento só, quando Pedro chupa e passa gelo de maneira sensual pelo corpo. Também incomoda um pouco o fato de que o que preocupa Rosaura em relação ao casamento dela não é o fato de ter se aproveitado da situação vulnerável da irmã, mas sim a possibilidade de o marido não a desejar mais por causa de seu peso, seu hálito e seus gases. Fica ainda forte no filme o casamento como único destino para as mulheres. Mesmo Gertrudes, que fugiu e liderou uma revolução, acaba casada e com filha. Vale ressaltar que as mulheres no filme são em maioria brancas, com exceção de Chencha e Nacha que parecem ter origens indígenas.
O filme utiliza alguns recursos do realismo fantástico para construir situações visualmente inusitadas e expor tanto o sofrimento contido quanto a libertação sexual. Após reassistir para escrever essa crítica, me encantei menos que da primeira vez que tinha visto. As mensagens de esperança e de força feminina ainda estão ali, porém muitas problemáticas ficaram mais claras para mim, todas elas relacionadas ao amor romântico (agora com minúscula, mas englobando o Romântico maiúsculo também) e ao papel determinado para as mulheres nesse sistema. Desde crianças, as filhas de Elena são ensinadas a buscar um amor heterossexual como objetivo de vida. São sempre questionadas sobre quando e com quem querem se casar. Quando a filha de Rosaura nasce, uma das primeiras coisas que ouvimos sobre ela é a vontade que o filho do médico tem de se casar com a menina recém nascida. E, fatalmente, os dois se casam.
Até a protagonista se apaixona sem explicações razoáveis. Nunca é mostrada uma conversa sequer entre Tita e Pedro, mesmo assim ela se mostra perdidamente apaixonada pelo rapaz. É como se o amor fosse uma força inexplicável que vai fatalmente atingir a todas as mulheres. Isso fica claro desde o começo do filme, quando Elena diz a Tita que ela não vai poder se casar, Tita, ainda criança, se revolta e fica chateada com a notícia. Permanece a ideia de que, se não for o casamento, não resta mais nada a ela. A própria Elena guarda uma foto de seu amor do passado em um colar em formato de coração, ou seja, na concepção do filme, até a mais fria e rigorosa das mulheres é destinada a amar eterna e incondicionalmente alguém.
Quanto ao título, se refere ao ponto de ebulição da água. É uma expressão usada no México, já que para fazer chocolate a água deve estar fervendo. No livro, essa expressão é usada para demonstrar que Tita estava sempre com raiva das situações que lhe eram impostas, desde seu futuro predestinado, até a indignação com o comportamento de Pedro, porém no filme isso não fica tão claro. Tita é retratada como uma moça tolerante e carinhosa. Provavelmente, no livro, por ser escrito por uma mulher, as perspectivas de amor e a personalidade da protagonista são diferentes.
Ilustração da dominicana Gaby D’Alessandro
O Verberenas começou depois de uma conversa num grupo de Facebook que foi criado com o objetivo de gerar diálogo entre as mulheres que estudavam e estudaram Audiovisual na Universidade de Brasília. Em outras palavras: o Verberenas nunca teria existido não fosse por uma rede de minas se apoiando. E este site não foi o único fruto da nossa articulação. Desde a criação do grupo, tivemos diversas reuniões, as alunas e ex-alunas foram capazes de se unir contra situações machistas e abusivas dentro da Faculdade, criamos um projeto de zine chamada Minas Fazem Filmes com nossos trabalhos e participamos de uma feira feminista para expor filmes, quadrinhos e zines. Esses são apenas algumas das nossas conquistas concretas e contabilizáveis, mas eu acredito que o mais importante que nasceu a partir do grupo é justamente algo mais abstrato e intangível: o sentimento de apoio e sororidade que encontramos ali.
É estranho pensar que conquistamos tantas coisas através de algo tão simples: a união de mulheres com outras mulheres. É importante lembrar também que isso dificilmente teria acontecido sem a existência da Internet. Essa é a realidade para muitos movimentos sociais que temos na atualidade, a Internet abriu o debate, possibilitou o encontro e permitiu a organização de pessoas que provavelmente nunca teriam se conhecido. Isso, é claro, vale para o outro lado também.
Com quase oito meses desde a criação do Verberenas, traduzimos um artigo da Kiva Reardon sobre o panorama da crítica feminista atual. Trazemos esse texto afim de enriquecer as discussões que temos visto nos últimos meses sobre a invisibilidade das mulheres nos quadrinhos, no cinema e na literatura, agora pela perspectiva não de mulheres produzindo cultura, e, sim, consumindo e analisando. Nosso papel é prosseguir dando espaço para as artistas que, como nós, estão fazendo arte à margem.
“Uma das características constantes da revista feminista em qualquer cultura é que ela existe fora do modo capitalista dominante de publicação.” Em 1989, escrevendo para a Borderlines, a falecida crítica literária canadense Barbara Godard mandou a real sobre a história de periódicos feministas. Em 2015, essas palavras foram twitadas pela cléo, uma revista feminista digital da qual eu faço parte com um coletivo de mulheres. Como uma publicação autofundada, a cléo se encaixa perfeitamente na definição de Godard. Suas palavras, entretanto, são reflexo de uma realidade pré-internet.
Na era digital, o “modo capitalista dominante de publicação” se tornou mais obscuro. A crítica cinematográfica feminista foi, no passado, um produto quase exclusivamente acadêmico ou de pequenas publicações, com um alcance limitado e poucos leitores, firmemente enraizada fora da (e em oposição à) maior parte das escritas cinematográficas e culturais mainstream*. Agora, ela pode adentrar conversas mainstream com um clique, @ ou compartilhamento. Isso pode agir como um corretivo sobre a cultura de crítica cinematográfica que é cegamente branca e exaustivamente masculina. Mas também apresenta um desafio para a crítica feminista: a perda da sua postura marginal conforme ela é incorporada a própria indústria contra a qual ela um dia se definiu.
O cinema está profundamente ligado ao capitalismo. Não se trata apenas do custo de fazer um filme, mas como o capital é usado para definir o sucesso de um filme: a bilheteria. Enquanto a venda de álbuns na lista de mais vendidos do New York Times traçam quem está ganhando dinheiro em seus respectivos meios, as discussões, em geral, não giram em torno quantos milhões custou para que um produto cultural fosse realizado em relação a que lugar da lista ele se encontra. Quando se fala em filme, os lucros são frequentemente centrais à discussão, independentemente do valor. (Pegue o Tangerine, o queridinho independente devidamente celebrado de 2015, que se tornou assunto de discussão não apenas pela sua narrativa sobre personagens trans e o fato de ter sido todo filmado por iPhones, mas também porque ele custou cem mil dólares para ser realizado). Não é surpreendente que essa relação próxima desde o ponto de partida tenha afetado a natureza da crítica cinematográfica também. O cinema mudo viu o nascimento de revistas entusiastas que foram incorporadas ao maquinismo da indústria com a criação do star system*. O prazer voyeurístico de um artigo de tabloide vende uma revista que então impulsiona o poder de venda de ingressos de uma estrela de cinema, e assim por diante, até hoje, como um Ouroboros insaciável. Conforme o cinema se fortalecia dentro da cultura popular e jornais e outras publicações passavam a contratar críticos de cinema, a jornada da crítica cinematográfica mainstream se tornou um trabalho de dentro para fora, para as margens. Ao invés de enaltecer os atores e admirar as novas tecnologias, ela envolvia disputas sobre gosto, e, fundamentalmente, o firme posicionamento contra o princípio de que a mágica do cinema podia ser quantificada pelo seu lucro.
A crítica cinematográfica feminista, por outro lado, possui origens diferentes, distante do poder invasivo da indústria: a segunda onda do feminismo. Vamos tomar como exemplo a avó do periódico cinematográfico feminista, Camera Obscura, que foi lançada em 1976 a partir de uma discussão de um grupo de pós-graduandos da Universidade da Califórnia em Berkeley e que agora é publicada pela Duke University. Sua primeira edição afirma que o conceito para a publicação “evoluiu da constatação da necessidade de estudo teórico em cinema [nos Estados Unidos] da perspectiva feministas e socialista.” Em seus 40 anos de história, a Camera Obscura permaneceu fiel a esse princípio, publicando artigos pelas estrelas robustas de seminários de pós-graduação como Kaja Silverman, Contance Penley, Mary Ann Doane e Wendy Hui Kyong Chung. Seu trabalho estava de acordo com a ideia de que “análise fílmica feminista reconhece que o filme é um produto cultural específico, e tenta examinar a forma como a ideologia burguesa e patriarcal está inscrita em filme.” Contudo, embora Camera Obscura tenha nascido à margem, ela enfrenta um problema que desafia a academia independentemente do assunto: com assinaturas caras e distribuição limitada das edições em capa dura, a Camera Obscura só alcança a margem. Crítica como essa no geral é fornecida a um certo grupo privilegiado. Meu primeiro contato com escrita feminista sobre filmes foi na universidade. Em uma matéria sobre a Nouvelle Vague francesa, ensinada pela brilhante acadêmica Alanna Thain, os ícones da história cinematográfica Jean-Luc Godard e François Truffaut eram desmantelados através de uma perspectiva feminista; obras de diretoras como Agnès Varda eram consideradas centrais. Ao mesmo tempo, eu era introduzida a bell hooks e seu livro teórico fundamental sobre gênero, raça e estudos mediáticos, Reel to Real (sem tradução oficial para o português), e o trabalho de Tania Modleski sobre Alfred Hitchcock, que me permitiu manter o meu amor pelos filmes não muito amigáveis com mulheres do diretor. Eu devo muito a essa época dos meus estudos – e não só às ideias as quais eu fui exposta, mas também aos meus pais, que me ajudaram a pagar as caras apostilas que viriam a me moldar.
Caso eu tivesse nascido alguns anos antes, as coisas poderiam ter sido diferentes: eu havia perdido o auge da cultura das zines auto-publicadas dos anos 90. Essas publicações eram radicais, mas efêmeras. As zines não se preocupavam, como a cultura literária ocidental se preocupa, com ocupação de espaço físico a fim de estabelecer um legado – zines tinham exemplares limitados, eram vendidas em shows e mandada pelo correio para amigos. Pesquisando sobre zines feministas específicas sobre cinema, encontrei alusão a elas em uma coleção pertencente a Amy Mariaskin, que agora é parte da Duke University’s Culture Zine Collection. Sem PDFs nem exemplares escaneados, eu não posso lê-las a menos que eu vá de carro para North Carolina. O acesso se tornou, mais uma vez, um problema. A internet supostamente consertaria isso, mas o processo de digitalização também é hierárquico – não está além da influência das estruturas de poder dominante que privilegiam o registro de histórias de certas raça, orientação sexual e gênero.
No seu sentido mais utópico, a auto-publicação digital prometia trazer ideais das margens para a massa. Eu levava esse ideal a sério. Eu sabia que eu havia perdido os anos 90 e queria fazer parte de algo parecido. Com a cléo, eu queria criar algo desafiador, como a Camera Obscura, mas algo que estivesse aberto para qualquer um que quisesse encontrá-la pelo Google. E eu não estou sozinha neste impulso – existem agora uma miríade de sites dedicados a mulheres no cinema: algumas focam no lado da indústria como a Women in Hollywood, que trabalha para destacar as vozes das mulheres que surgem numa indústria aparentemente equipada para ignorá-las. Temos Bitch Flicks e Black Girl Nerds, que têm um papel crucial em destacar a cegueira da cultura popular quanto a raça e gênero. (Vejam o twit questionador das Black Girl Nerds sobre a capa só com atrizes brancas do exemplar de novembro de 2015 Hollywood Reporter). Outros sites estão mais investidos no espírito de empoderamento através da auto-publicação, como a Curtsies and Hand Grenades da Willow Maclay.
Embora inspirada pelo pensamento radical da academia e da época do “faça você mesmo” das zines, a crítica feminista cinematográfica na internet se diferencia pelo seu potencial de alcance. Pra parafrasear, a diferença agora é a disseminação. Anos atrás, eu criei um blog quando tinha vinte e poucos anos porque queria que outras pessoas lessem o que eu escrevia e queria que alguém me contratasse. O segundo motivo não tem nada de vergonhoso, todos tem o direito de ganhar o seu sustento. Mas também significa que a crítica cinematográfica feminista se tornou escorregadia na era digital. Enquanto a internet tornou a escrita feminista mais acessível (isso é, para aqueles a que a internet é acessível, é claro), ela também está ligada ao modo dominante de lucro capitalista – a própria internet. E, para aproveitar a deixa de outro grande crítico canadense, o meio está começando a prescrever a mensagem.
A semelhança entre escrita acadêmica e cultura das zines é a sua desconsideração das massas. Por outro lado, na internet, números e alcance falam mais alto – especialmente num panorama no qual, cada vez mais, reembolso acontece na forma de “exposição”. E é difícil, mesmo na auto-publicação, não considerar quais filmes e tópicos vão atrair mais visualizações. Perguntas que não deveriam ter nenhum peso em publicações anti-instituição – Isso vai alienar os meus leitores? Muito difícil? Muito obscuro? – estão pra jogo novamente. Torna-se uma discussão do ovo e da galinha, o que veio primeiro: a quantidade de cliques numa matéria feminista sobre Star Wars ou a perspectiva feminista sobre Star Wars?
Não falo isso para dizer o que deve ou não ser escrito quando falamos de cultura cinematográfica. (Podem soltar suas visões sobre Star Wars!) Mas meu medo é que numa corrida por cliques, a crítica cinematográfica feminista perca sua posição marginal. Ela vai ser, pela primeira vez, parte da indústria ao invés de tentar desconstruí-la.
“Bolsas de estudo em cinema feminista”, observa Sophie Mayer em Political Animals: The New Feminist Cinema, “têm sido essenciais para manter vivo o conhecimento da existência de filmes inacessíveis ao invés de procurar torná-los parte do cânone.” Em um espaço digital, apesar de todas suas aparentes liberdades, a crítica fílmica feminista está em risco de se unir as conversas institucionalizadas ao redor de alguns filmes – os grandes, os blockbusters, mas necessariamente os audazes. Está em risco de servir ao mainstream ao invés do de expor o que nós (literalmente) não vemos. Mais vozes abafando as mesmas velhas vozes masculinas é um som bem-vindo as meus ouvidos. Mas, e posso parecer paranoica ao dizer isso, nós precisamos estar alertas para que as conversas que nós estamos re-enquadrando não sejam simplesmente acrescentadas ao mesmo sistema que vai em direção às bilheterias. Publicar outro artigo sobre Star Wars, afinal de contas, ainda ajuda a vender mais ingressos para Star Wars.
Isso também nos leva a pergunta: enquanto veículos de comunicação parecem estar ativamente procurando escritoras mulheres e pessoas de cor – vejam a chamada de 2015 da Sight and Sounds em busca de mais mulheres para escrever críticas – por que o quadro de funcionários dos periódicos, tanto impressos quanto digitais, não tiveram uma mudança drástica? Por que precisamos de uma chamada radical como a hashtag #GiveYourMoneyToWomen (#DeemSeuDinheiroAMulheres) da Bardot Smith pra desafiar, como ela diz, a “noção de que nós temos que procurar justiça, segurança e igualdade de salários através […] do mundo coorporativo dominado por homens”? Ou, nesse contexto, por que a legitimação, como uma crítica mulher, tem que vir através da escrita em publicações que se rendem perante as vontades das indústrias e predileções patriarcais? Ou através da escrita sobre filmes que são reconhecidos por eles? Para mim, essas perguntas demonstram que a leitura e os hábitos de publicação digitais imitam os impressos. Apesar de toda aquela conversa sobre a ampliação do mundo graças à internet, aqueles em posição de poder no final das contas ainda estão procurando ideias e perspectivas com que eles estão confortáveis como escritores, editores e como seres humanos.
Existe um certo orgulho em resistir a atração do palco principal – aquele velho impulso adolescente de rebeldia contra a norma. Mas mais importante, além de qualquer ideia de autossatisfação, é o fato de que as margens são lugar ideal para a crítica, permitindo uma posição estratégica para observar tudo que há de errado (e, suponho, ocasionalmente o que há de certo) com a sociedade. “Enquanto o espectador ativo faz conexões dentro do filme, o espectador ativista conecta o filme ao mundo.” Isso foi dito, mais uma vez, por Mayer, e eu escrevi essa citação e colei na minha escrivaninha. É um lembrete para a pergunta: em um mundo que coloca infinito acesso e conhecimento, o que eu, sabendo ou não, não estou vendo, procurando ou lendo? É um lembrete, mais do que qualquer coisa, para voltar para as margens. É frustrante estar aqui, e algumas vezes, solitário, mas vale a pena lutar pela vista.
Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.
A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.
A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.
O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.
Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.
Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.
Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.
Ou, pelo menos, é o que diz Brian Sewell, ignorando nomes como Georgia O’Keefe, Louise Bourgeois, Frida Kahlo e muitas outras. É verdade que Sewell estava apenas sendo misógino, mas sua fala nos lembra que o lugar da mulher na arte é sempre de resistência e marginalização. Aquele lugar pelo qual elas tiveram que lutar com unhas e dentes. Ainda assim, nunca serão vistas como merecedoras dele – elas nunca serão consideradas “grandes artistas”.
A ideia de dar as costas a esse conceito de “grande” em que só cabem homens me atrai cada vez mais.
Este é um espaço negativo. Por “espaço negativo”, refiro-me ao que está em volta do objeto, o que está vazio, em branco. O espaço positivo já está cheio demais, saturado, por isso procuramos um lugar para nós, mesmo que ele esteja além da margem do que é considerado importante, na esperança que as nossas vozes se juntem a outras e outras e outras… até que, juntas, nos tornemos algo maior.
Estamos cansadas do que é definido como “universal”, do papo que se aproveita de uma suposta neutralidade para transmitir ideias e estéticas que certamente são, também, políticas. Não esperamos que abram-se magicamente portas para nós, vamos nos fazer ouvidas, nossas críticas, nossas obras de arte, nossos filmes, nossas análises estão aqui para ficar. Somos mulheres, realizadoras, escritoras, queremos ocupar espaço, queremos escutar outras vozes e queremos ser ouvidas também, queremos mais cores, mais tamanhos, mais formas de olhar e mais formas de ser, queremos fortalecer e queremos ser fortalecidas.
Enfim, queremos mais do que nos foi dado, mais do que herdamos, mas sem esquecer das nossas raízes e o que nos tornou o que somos hoje. Assim, abrimos nosso Verberenas, um espaço negativo que deseja ser visto.
(o título desse post foi inspirado neste artigo e nessa notícia)
Esse texto foi escrito de forma colaborativa por Glênis e Amanda.