Em 1993, a pesquisadora Carol J. Clover cunhou um termo para caracterizar uma personagem típica dos filmes de serial killers que ficaram conhecidos como slasher. Tratava-se da Final Girl. Era ela quem, ao final do filme, permanecia viva.
Hoje, vê-se a Final Girl como uma espécie de heroína feminista, a última sobrevivente de um massacre, triunfante e vingada. E, embora algumas dessas características tenham algum fundamento, uma análise mais profunda nos permite ter uma visão mais completa. Enquanto Clover dedicou um longo estudo aos papéis de gênero nos filmes de horror, o conceito que ela criou parece ter se perdido com o tempo devido a sua apropriação pouco aprofundada pela cultura pop.
O horror tem um efeito tão forte sobre seus espectadores por comunicar medos e desejos reprimidos que temos como sociedade e, como os contos de fada, ele possui duas facetas: a que apoia as instituições vigentes (não vá para a floresta, não faça sexo, obedeça seus pais) e a anárquica, na qual tradições e regras são questionadas. Os filmes da Final Girl típica geralmente se encontram nessa primeira categoria. As últimas sobreviventes desses filmes são adolescentes que não fazem sexo, não se interessam pelas mesmas futilidades que as “outras garotas” e que muitas vezes possuem nomes andróginos e hobbies “masculinos”.
A Final Girl está ali na capacidade de vítima-herói. Herói por sobreviver até o final e, por vezes, por matar o vilão (mesmo que seja por puro acaso). Vítima por ter passado as últimas duas horas se escondendo, fugindo, caindo, sentindo dor, sendo perseguida, aterrorizada e vendo todos os seus amigos (especialmente as amigas) morrerem de forma brutal. Ela é “masculinizada” pelo seu nome, hobbies e, por vezes, aparência para que o espectador masculino possa se identificar com ela na capacidade de herói, mas ainda é uma mulher, e portanto pode ser torturada e vitimizada. A identificação com ela parte de um prazer sadomasoquista.
Com isso, não pretendo dizer que não há nada de subversivo sobre a Final Girl. A sua existência, que surgiu em filmes slasher marginalizados e de baixo orçamento dos anos 70, marcou uma presença feminina cada vez mais forte no cinema e permitiu o início de um debate muito pertinente sobre gênero no horror. Essa lista vem tanto para celebrar quanto questionar o papel da Final Girl no cinema.
Embora, oficialmente, a primeira Final Girl só tenha surgido em 1978 com Halloween, vários filmes de horror antes disso já traziam personagens com características que muito se assemelhavam ao que viria a ser a Final Girl clássica. Dentre elas podemos citar Sally do Massacre da Serra Elétrica (1974) e Lila de Psicose (1960) como um protótipo ainda mais conservador e distante da eventual Final Girl.
Jess, do filme canadense Noite do Terror, é um exemplo interessante. Como a Final Girl clássica, ela tem um nome que poderia ser masculino ou feminino e é a última sobrevivente de uma série de assassinatos que ocorrem dentro da casa onde ela e várias amigas moram. O que a diferencia é sua vida sexual ativa e sua gravidez revelada durante o filme. O fato de ela estar decidida a abortar é particularmente surpreendente e mostra a faceta anárquica da obra.
A primeira Final Girl foi imortalizada pela atriz Jamie Lee Curtis no papel de Laurie no filme Halloween. Diferentemente dos protótipos de Final Girls que vieram antes dela, Laurie foi uma das primeiras “última-sobreviventes” que teve um papel ativo e, em algum nível, bem sucedido na ação do filme. Ela não só se esconde aterrorizada, mas também procura se defender e ferir seu algoz.
Quando Halloween estreou, entretanto, a participação ativa feminina no filme não foi suficiente para convencer os críticos que isso significava uma mudança nos papéis das mulheres no cinema de horror. Andrew Tudor escreveu na época: “Mulheres sempre apareceram como vítimas no cinema de horror, então é esperado que elas pareçam mais proeminentes num período de centralidade da vítima. Se isso significa uma nova estrutura dos papéis de gênero nesse tipo de filme já é outra questão.” Felizmente, ele estava errado quanto a sua última afirmação e desde a primeira Final Girl o horror protagonizado por mulheres ativas se desenvolveu bastante. Por outro lado, não podemos ignorar seu primeiro comentário: a entrada das mulheres no protagonismo do horror se deveu a sua qualidade como vítima.
Em Alien, o Oitavo Passageiro, a Final Girl saiu do slasher para entrar na ficção científica. Subtenente Ripley é a última sobrevivente de um massacre que acontece na nave espacial Nostromo. Extremamente competente e racional, traços geralmente reservados para os personagens masculinos, Ripley permanece viva pela sua engenhosidade e inteligência. Sua androginia é reforçada também pelo fato de a conhecermos por sua patente e sobrenome (o que não impede que ela seja objetificada em cenas que aparece de camiseta e calcinha).
Alien foi mencionado em uma tirinha de Alison Bechdel em 1985 como um exemplo de filme que possui duas mulheres que falam entre si sobre algo que não seja um homem. Desde então, o que se consagrou como o “Teste de Bechdel” tem marcado presença na discussão sobre representação feminina no cinema. Passar no teste não significa que determinado filme é feminista, afinal, se trata de uma piada em um quadrinho que não tinha nenhuma pretensão de se tornar uma referência científica, mas é a própria simplicidade do teste que nos ajuda a perceber a pequena presença de mulheres nos filmes. Deveria ser fácil encontrar duas personagens que não existam em função de um homem em uma história, mas o número assombroso de filmes que não passam no teste demonstra o contrário.
Mais de trinta anos depois da concepção da Final Girl, vivemos um novo momento do cinema de horror. Como de costume, o horror continua a tratar dos nossos medos e desejos recônditos, logo, conforme os medos e desejos da sociedade se desenvolvem e se modificam, o horror também o faz. Podemos ver isso claramente em A Corrente do Mal. O filme conta a história de Jay, uma garota que começa a ser perseguida por uma assombração após fazer sexo com um rapaz. Se isso parece uma trama conservadora, não se preocupe, a solução não é: Jay tem de fazer sexo novamente para passar a assombração para outra pessoa. Mas se a pessoa morrer, a assombração se voltará para ela mais uma vez.
Diferentemente dos filmes slasher, com seus vilões impotentes e sua ansiedade ao redor da sexualidade feminina, em A Corrente do Mal percebemos outras questões. O sexo aqui pode significar tanto morte quanto vida, a intimidade e a característica líquida das relações contemporâneas são possíveis temas. O filme também se opõe aos slashers pela sua protagonista. Jay faz sexo casual, apresenta características consideradas femininas e seus amigos não morrem e não fogem, permanecem com ela até o fim. Ela é a anti-Final Girl.
Colocar Thomasin como uma Final Girl pode ser uma decisão polêmica da minha parte, mas me permita justificar minha escolha. Apesar de A Bruxa não fazer parte do gênero slasher e se passar numa época muito diferente de todos os outros filmes em que temos uma Final Girl, ele tem como tema central a ansiedade em torno da sexualidade feminina e uma protagonista que sobrevive enquanto todos ao redor dela morrem. É por isso que a considero uma pós-Final Girl: ela ainda possui as características fundamentais da personagem, mas ela expandiu o alcance da Final Girl para outras épocas e gêneros dentro do horror.
Mais importante que essa migração do gênero slasher – que já havia acontecido antes com Ripley em Alien, o Oitavo Passageiro – em A Bruxa temos um filme que definitivamente vai contra as instituições estabelecidas. Se as Final Girls anteriores eram desencorajadas a fazer sexo, em A Bruxa, Thomasin é levada a buscar refúgio na perversidade justamente porque, o que quer que ela faça, será condenada. Apesar do título do filme, a verdadeira vilã da história é a sociedade conservadora em que Thomasin vive.
Damned if you do, damned if you don’t.