Portugal em crise econômica. Teresa chega à casa de Francisca para uma temporada em Belo Horizonte. O que sabemos de seu passado está contido em apenas uma foto, em um único plano. A cidade onde envelheço, de Marília Rocha, ganhador na categoria melhor filme no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é um filme sobre o presente.
“A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa.
Os conflitos culturais aparecem nas falas de Francisca que se incomoda com a audácia brasileira em pedir cigarros o tempo todo, ou mesmo com a falta de senso estético em relação aos azulejos do banheiro: cada um em um tom diferente de azul. Nessas minúcias, encontramos o que seria o imaginário de cada país. Mas de novo, o singular se coloca enquanto paradoxal: Teresa não vê problema na aleatoriedade dos azulejos, tampouco em chegar de madrugada fazendo barulho na casa da sua anfitriã.
As relações Brasil-Portugal são pano de fundo para uma história que, na verdade, trata-se de afeto, de amizade, de amor. Entretanto, as implicações pertencentes aos imigrantes estão expostas, de forma sutil, porém realista. O sentimento de saudade é compartilhado, já que a palavra existe unicamente na língua portuguesa. A sensação de não-pertencimento também aparece. Teresa corre pela rua e conseguimos ver os espaço da cidade, o concreto, enquanto a personagem narra uma carta destinada a um parente ou amigo em Lisboa. Nela, a portuguesa fala mais sobre suas impressões do que as ações de fato. O estado concreto das coisas não existe. Quando se é estranho a algum lugar, as impressões são mais primordiais do que os fatos em si.
A chegada da amiga assusta Chica, a princípio, que teme perder a sua liberdade e individualidade por morar só no centro de BH. Teresa vai se aconchegando ali naquele apartamento, bem como a própria câmera que também se aconchega entre os afetos rememorados e recém-construídos entre as duas. São vários planos-sequências que no desenrolar da trama vão ganhando aspectos cada vez mais naturalistas, assim como a amizade das moradoras, que de início é permeada por certos constrangimentos, mas ao conquistar os espaços de intimidade torna-se carinhosa.
Neste sentido, a atuação das duas protagonistas ganha notoriedade. Foram poucos ensaios, com participação da atrizes também na criação do roteiro, a linguagem, assim, torna-se um tanto documental e consegue trazer tons de intimidade ao longo da narrativa.
Este favorecimento do estar junto, do encontrar o outro e partilhar com ele o uso dos prazeres, das emoções, dos sentimentos é o que vai ser o explorado no longa. Poderíamos falar sobre um estilo calcado no presentismo. No entanto, bem diferente do romântico carpe diem – “aproveite o dia, pois ele é belo”. A cidade onde envelheço não só enquanto temática, mas em termos de linguagem e de estética, nos fala muito sobre nossos tempos. O presentismo é aqui calcado numa espécie de materialismo espiritual: só o presente existe, e não nos resta nada mais a não ser aproveitá-lo. É por isso que amizade e as relações talvez pareçam ser mais sinceras, pois não há outro momento para que o afeto aconteça. Muitos colegas que assistiram ao filme tiveram a mesma sensação: “fiquei esperando o momento que as duas iriam se pegar”, mas isso não acontece. O carinho e o afeto de Chica e Teresa poderiam muito bem se misturar com a sexualidade, no entanto, a preocupação é outra: por que não vivemos na materialidade do sentimento? O que impede uma amizade de ser tão afetuosa? Sendo assim, ela logo denotaria o interesse sexual? A amizade, neste sentido, é vivida em sua maior intensidade.
Para além da relação entre as duas protagonistas, o filme busca retratar a subsistência estética em outros aspectos da vida. Quando partem de Lisboa para o Brasil, Chica e Teresa não estão em busca de viver uma vida bem sucedida nos termos do senso comum. Elas buscam mesmo sobreviver. E sobreviver não significa mais do que sentir.
No final, a predileção pelo presente aparece de novo. Francisca vai voltar para Lisboa, mas não avisou a amiga de antemão. Afinal, o futuro existe? O que é certo é que, tanto para Francisca quanto para Teresa, a busca pelo sentido da experiência é um objetivo.
“A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.”
— Fernando Pessoa como Bernardo Soares no Livro do Desassossego
São Paulo, início dos anos 80. Uma menina menstrua pela primeira vez e sonha em visitar a Califórnia. Assim começa o novo filme de Marina Person, uma história de formação com uma forte nostalgia alimentada pelo universo musical da década de 80. A atmosfera saudosista do filme, entretanto, não é pelo Brasil de outrora, mas sim por um Outro Lugar que, no caso, é representado pela costa oeste Estados Unidos que nunca vemos ao longo do filme. É uma saudade de algo que não se conhece, um simples querer estar em um lugar que não aqui.
No fundo, tudo é fuga. Estela, a protagonista, como muitos adolescentes, sente-se deslocada e reprimida pelo pai conservador. Para Estela, a Califórnia é o tio gay, subversivo, irreverente, a Califórnia é o rock, rebelde, a música das pessoas que não se encaixam. É um baque enorme, então, quando o tio volta pro Brasil, doente, derrotado. A AIDS representa muito mais que uma doença, é um perigo que se corre quando fogem-se às regras.
Aqui, permita-me fazer um pequeno e infame jogo de palavras, chegamos à grande fuga do filme: as regras (menstruais). A menarca significa, em muitas culturas, a entrada da mulher na vida adulta e não é à toa que o filme comece com a visão da calcinha suja de sangue de Estela dois anos antes dos acontecimentos do resto do filme. Não sabemos o que acontece com Estela no tempo entre sua primeira menstruação e seus 17 anos, mas ao a reencontramos, não vemos uma adulta. Fica clara a intenção de Person de diferenciar o que marca a maturação de uma mulher para o mundo e o que é de fato essa maturação – um caminho complexo que não pode ser resumido a processos biológicos. Quando vemos Estela aos 17 anos ainda no começo do filme, vemos uma criança. Seus pais não conversam abertamente com ela, ela está passando pelas tribulações de um primeiro amor, e ela eventualmente descobre que não está pronta para começar sua vida sexual.
A adolescência é uma fase confusa e contraditória, ao mesmo tempo que Estela não se sente preparada para encarar a vida adulta, ela deseja a liberdade que ela proporciona desesperadamente. Tio Carlos, ao ir para os Estados Unidos, fugia do que era ser um homem gay no Brasil durante a ditadura militar, mas a realidade bate à porta de todos, e, no final, ele tem de retornar. Estela, também, não pode continuar a sonhar com o Outro Lugar.
Ao longo da história, nossa jovem protagonista tem que encarar suas próprias transformações. Decepções amorosas, livros complexos, uma viagem para a praia, a doença e morte do tio fazem parte da sua jornada de maturação. Ao final, vemos enfim uma mulher capaz de tomar decisões sobre seu próprio corpo, fechando um ciclo. No começo, tínhamos uma menina sonhando em encontrar o tio na Califórnia, no final, uma mulher que troca cartas com um amante na Índia. Ela ainda está no mesmo lugar, no Brasil, se correspondendo com homens em fuga, mas a ditadura militar está chegando ao fim, ela é uma mulher adulta e está preparada para ficar.