Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

POR QUE AMOR MALDITO É IMPORTANTE PARA NÓS, CINEASTAS NEGRAS CHEIAS DE SONHOS

Nunca pensei em ser cineasta. Mesmo tendo crescido fascinada por imagens, sobretudo pela televisão, até eu entrar na faculdade nunca havia passado pela minha cabeça a possibilidade de trabalhar com cinema. Apesar de meus pais terem um amigo próximo cineasta, durante meus anos de formação escolar essa era a única referência de alguém de uma realidade parecida com a minha que fazia parte do “mundo mágico” do cinema. Nunca soube de nenhuma mulher, muito menos uma mulher negra, que tivesse alcançado esse status.

Não pretendo falar da minha trajetória dessa vez, gostaria de falar sobre possibilidades, sobretudo a possibilidade de transformar realidades através da invenção. Acredito que muito da crença na possibilidade de mudança vem daquela sensação de identificar em outras experiências caminhos que as tornem palpáveis, quase como:  “hum… bom, se fulana conseguiu, eu também consigo”. E no caso de uma menina negra da zona leste de São Paulo conhecer a trajetória de outras mulheres negras pobres que ousaram fazer filmes é manter a fé de que pode ser possível transformar realidades, nem que seja inventando nas telas novas formas de viver. Não ignoro as dificuldades materiais, nem as urgências do cotidiano que nos impedem de nos dedicarmos ao cinema, mas acredito que alimentar nossos sonhos é uma forma de alimentar nossas existências.

E aí que eu escrevo esse texto para você, jovem negra com poucos recursos, mas cheia de sonhos. E parto da experiência de uma cineasta, mulher, negra, pobre e muito ousada, mas também invisibilizada pelo racismo e machismo da cinematografia brasileira: Adélia Sampaio. Nascida em Minas Gerais, filha de empregada doméstica, Adélia foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, mas seu filme Amor Maldito, lançado em 1984, ficou quase trinta anos num ostracismo revelador das estruturas que sustentam o mundo das artes brasileiras.

Amor Maldito foi o título de uma reportagem do jornal carioca O Fluminense publicado no início dos anos 1980. A crônica jornalística trazia um caso que aconteceu no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, e narrava a história de duas mulheres lésbicas que haviam tido um relacionamento, e após seu fim, uma delas havia se suicidado. Entretanto, a ex-companheira da falecida foi acusada de assassinato e o caso levado a tribunal. O longa-metragem de Adélia, inspirado nesse acontecimento, narra a partir do julgamento de Fernanda (Monique Lafond), sua relação com a ex-companheira Suely (Wilma Dias) e traça um retrato da justiça e da sociedade brasileira a partir de figuras caricatas, como a família evangélica de Suely e o advogado sensacionalista da acusação.

Estamos falando de um filme produzido nos anos 1980 e pensar a trajetória de Amor Maldito nos convida a refletir sobre sexualidade, gênero e raça no contexto do cinema brasileiro e seus diálogos.  Amor Maldito pode ser visto como uma obra à frente do seu tempo, mas tanto a escolha certeira em sua abordagem temática quanto as questões ligadas a sua produção e distribuição marcam o retrato social de uma época: anos de ditadura militar, conservadorismo político e moral, e estruturas que mantém as desigualdades de gênero e raça. O filme teve de ser “fantasiado” de pornô para conseguir alguma visibilidade, e ganhou mais destaque pela atmosfera sexual que o rodeava, do que pelo debate que propunha, tendo seu conteúdo praticamente ignorado tanto pelo público, quanto pela crítica.

Numa breve historiografia do cinema nacional, podemos reparar nas dinâmicas, muitas vezes homofóbicas, que marcaram as construções narrativas em torno das vivências das pessoas LGBTs. Na época das chanchadas, populares nos anos 1940 e 1950, personagens homossexuais homens foram majoritariamente representados como estereótipos de gays afeminados, servindo à narrativa como alívio cômico ou travestidos de forma assexuada. Dessa forma ficava mais tragável para o público a aceitação desses personagens, pois suas subjetividades não eram postas na narrativa. A temática também foi deixada de lado pelo cinema novo, que preferia discussões sobre classes sociais, e encontrou um pouco mais de penetração no cinema marginal. Foi a partir dele que personagens homossexuais começaram a ocupar papéis centrais nas narrativas, ainda que ligando a homossexualidade à marginalidade.

A temática lésbica, entretanto, ganhou apelo nos filmes da pornochanchada, que valorizava o desejo e a curiosidade do homem heterossexual, trazendo personagens com pouca ou nenhuma afetividade e complexidade. O lesbianismo era apenas um estágio na história pela qual a mocinha passava para levá-la a ficar com um homem. Além da falta de sutileza com a qual era inserida, normalmente a “lésbica real” da história — a corruptora da mocinha — se torna uma assassina, serial killer, ou seja, o verdadeiro obstáculo a ser combatido. Um exemplo dessa representação pejorativa é encontrada em As Intimidades de Analu e Fernanda (1980), de José Mizziara, com atuação de Monique Lafond.

Monique Lafond foi atriz de diversos filmes pornôs e viveu a personagem Fernanda em Amor Maldito, a executiva acusada do assassinato de sua ex-companheira. Já Wilma Dias, que interpretou Suely, era a “garota da banana” que aparecia na abertura do programa Planeta dos Homens (1976), da TV Globo, cuja imagem tinha um forte apelo sexual. Na busca por reportagens, notícias e críticas sobre o longa de Adélia foram encontradas menções ao filme quando vinculados às suas atrizes. O que chamava atenção para Amor Maldito era a atmosfera sexual que o rodeava, mais do que a visão crítica que da sociedade brasileira e de como ela condenava as relações homossexuais na época.

Amor Maldito é um dos filmes que aborda o lesbianismo de forma mais positiva na produção nacional, sendo um retrato social da época. Inovou não na linguagem, mas na abordagem sensível e crítica de uma temática marginalizada, porém a dificuldade em sua distribuição – atrelada ao preconceito homofóbico e as barreiras impostas a uma mulher negra – não o tornou conhecido do grande público. À época de sua produção, a Embrafilme era a empresa responsável pela regulação das políticas públicas e incentivos financeiros para a produção e circulação de filmes nacionais. Dentro do contexto político e social da ditadura militar e do forte conservadorismo no que diz respeito às relações sexuais, a empresa chegou a reduzir o orçamento da produção até chegar a zero, afirmando que não compactuava com uma obra que perpetuasse e fosse vista como panfletagem de uma “doença”. Em busca de alternativas para produção, Adélia liderou um sistema de cooperativa, prática muito comum no teatro (onde ela trabalhou durante anos) para que o filme tomasse corpo.

No Brasil, quando da exibição de Amor Maldito em salas de cinema, o filme foi recusado por diversos exibidores que se negavam a dar espaço para esse tipo de debate. Até que o longa foi apresentado a um exibidor, conhecido como Magalhães, que se interessou pelo tema e viu nele a oportunidade de circulação desde que fosse vendido como filme pornô. E foi assim que Amor Maldito estreou na Galeria Olido, em São Paulo, em 13 de maio de 1984, em meio programações de filmes pornôs e cartazes sexualmente apelativos.

Mesmo que suas opções estéticas gerem controvérsias, principalmente devido às encenações exageradas e caricatas, o filme é bastante ousado e bem-intencionado, mas no meio da pornochanchada, não há espaço para boas intenções. Amor Maldito foi visto à época de seu lançamento como um intermediário entre uma obra-prima e as concessões aos apelos eróticos, o que o fez ficar sem público. O filme pouco tem desse apelo, na verdade: Adélia busca explicar a bestialidade que enreda a patética mitologia do sexo descartável, e oferece uma antologia de sexo com sentimentos de culpa.

“Só uma cineasta ousada é capaz de tornar reais coisas que a sociedade condena, como o casamento de Monique e Vilma”. Essa foi a descrição usada por Ailton Assis em sua crítica sobre Amor Maldito publicada na Tribuna da Imprensa de 1983. E Adélia é de fato uma vanguardista, uma cineasta sensível a temas marginalizados socialmente. Durante sua carreira esteve envolvida com outros temas das minorias representativas, e atrás das câmeras contava com presença massiva de mulheres em sua equipe. Antes de dirigir Amor Maldito, a cineasta já havia produzido dezenas de filmes do cinema novo e marginal, mas um episódio significativo de seu trabalho e que diz muito sobre as relações raciais no cinema brasileiro chama atenção: a presença do filme Parceiros da Aventura de José Medeiros no Festival de Gramado em 1980 que ficou conhecido como o “filme dos negrinhos”. Na ocasião, Adélia atuou como diretora de produção do filme, que apesar de ter chamado grande atenção do público, esbarrou na resistência racista dos jurados do festival, que não o premiaram por considerá-lo negro demais.

É essa resistência racista, em reconhecer o trabalho de artistas negros em prol da manutenção de uma estrutura que enaltece a produção de cineastas brancos, um dos fatores que influenciou o ostracismo no qual caíram Adélia e seu filme. O papel da Embrafilme, por exemplo, foi fundamental para os caminhos que levaram Adélia ao esquecimento. Enquanto seu filme não recebia apoio nenhum, filme dirigidos por homens brancos cujas temáticas favoreciam a manutenção do status quo recebiam financiamento e apoio para distribuição (cenário que não é completamente diferente de hoje, mas isso é assunto para um outro texto). Assim, eu questiono:  Terá sido só a temática que fez de Amor Maldito um filme esquecido pelo público e crítica? Como esse mesmo público e crítica olharam para um filme dirigido por uma mulher negra nos anos 1980? E como esses olhares moldaram sua trajetória?

Talvez a trajetória de Amor Maldito tivesse terminado aí, se não fosse sua redescoberta no começo dos anos 2010, por outra mulher negra. Em 2013, Edileuza Penha de Souza realizou tese de doutorado pela Universidade de Brasília chamada Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, Narrativas de Amor, Afeto e Intimidade. Ainda que esse não seja o foco da tese, a pesquisadora propõe uma discussão acerca do que é conceitualmente o Cinema Negro e faz um levantamento dos realizadores e realizadoras negras do cinema nacional, citando o pioneirismo de Adélia Sampaio.

A tese de Edileuza faz parte de um contexto maior de estudos e políticas afirmativas e identitárias que conquistaram espaço público no Brasil com mais força a partir dos anos 2000. Fruto das mobilizações sociais do movimento negro, organizado no Brasil desde os anos 1970, a implementação de uma política de cotas raciais nas universidades e órgãos públicos brasileiras tem mudado não só a composição racial dos cursos, mas tem transformado a produção de conhecimento com o surgimento de trabalhos nas mais diversas áreas, que tratam das relações raciais e de gênero a partir da perspectiva dos sujeitos negros. Este é um movimento que tem ganhado corpo no Brasil, em diálogo com outros países da diáspora africana, e encontrado reverberações na cultura digital, na política e também nas artes.

Desde que a figura de Adélia ressurgiu na pesquisa de Edileuza e foi difundida, sobretudo entre realizadores, curadores, militantes e pesquisadores negros, uma nova reescritura da história do cinema nacional tem sido proposta, sobretudo pelas mulheres negras. De 2015 para cá, Adélia Sampaio e Amor Maldito circularam pelo país num movimento de reconhecimento do trabalho de uma cineasta, mulher e negra, que foi propositalmente deixado de lado durante tantos anos. As reivindicações pelo reconhecimento do cinema feito por mulheres negras no Brasil tem pipocado, sobretudo desde 2016, e nos feito questionar, repensar e mover certas estruturas.

A redescoberta do filme acaba por escancarar a necessidade de reescrever a história desse cinema e está fortemente ligada aos movimentos organizados por pessoas negras. O reconhecimento do pioneirismo de Adélia traz à luz a discussão sobre os processos de invisibilidade das pessoas negras na sociedade brasileira, sobretudo em espaços tão elitizados quanto o cinema, e nos faz refletir sobre a influência dos debates públicos atuais na repercussão dos filmes. Mas, acima de tudo, destaca a necessidade de construção de um ambiente de possibilidades para que outras mulheres negras, como eu e você, enxerguemos no fazer cinema uma alternativa para inventar novas formas de viver e transformar as realidades que nos cercam.

CAFÉ COM CANELA, POR UMA ESPECTADORA NEGRA ENTRE A FRUIÇÃO E A CRÍTICA

Assistir aos filmes, desenvolver o olhar

Peguei-me refletindo no que mais pode ser dito sobre Café com Canela, longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa que estreou há pouco em algumas capitais brasileiras, depois do costumeiro percurso em festivais. Já li toda sorte de elogio, de enquadramento a maioria merecidos –, debates despertados. Meu texto talvez se fragmente então entre a descrição da minha experiência como espectadora negra, alguns conceitos que me vêm quando penso nisso tudo, e algumas cutucadas atiradas livremente.

Assisti ao filme pela primeira vez no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado (2017) e me lembro dos suspiros finais, das risadas com Cidão, uma das personagens, senti no rosto algumas lágrimas, mas a impressão final foi de confusão. Não consegui montar com exatidão um mapa da minha apreciação.

“Gostei, mas…” e aí? Ver tantos filmes ao longo de vários dias e encontrar amigas e amigos logo após a sessão com inquisitivos “achou bom?” põe a mente numa disposição que nem sempre privilegia a fruição. E aliás, quem é que está no festival para fruir? Tanto quanto está estampado nos rostos presentes o amor pelo cinema, estão também as tensões todas, políticas, de representação, de espaço, as disputas. Pelo menos no Festival de Brasília, que acompanho há anos, tem sido assim, cada vez mais. De modo ambíguo e um tanto triste, quase sinto falta de quando ignorava todos os discursos que atravessavam as sessões, de quando era só uma estudante de ensino médio que ia ao festival para descobrir filmes que sabia que não seriam exibidos na televisão. Era uma chance e eu aproveitava ao máximo, muitas vezes sem saber se haveria ônibus para voltar para casa.

Mas eu disse quase. Porque se outros conflitos – ainda que até então apenas internos – não me atravessassem, talvez não estivesse aqui, escrevendo sobre cinema, tentando participar (com alguma discrição) dos debates atuais. Foram anos e anos desafiando os filmes com o olhar, tentando entender porque as ausências tornavam as presenças mais fracas e menos saborosas. Daí: universidade, faculdade de cinema, bell hooks, olhar para si, testar-se cineasta, fazer cinema, fazer cinema negro e feminista, perguntar-se que é afinal cinema negro. De lá pra cá a fruição muitas vezes ficou em segundo plano, em função do olhar oposicional e do cultivo crítico. Ainda amo cinema? É claro que sim, ou não despenderia tanto esforço.

Em 1992, bell hooks publicou Black Looks: Race and Representation e daí vem um de seus mais famosos ensaios, O Olhar Oposicional: Espectadoras Negras (1). Entre as tantas contribuições maravilhosas desse texto, bell hooks explica o olhar oposicional, o olhar crítico e aplicado das mulheres negras sobre o cinema, um olhar outro que não o da identificação, da objetificação, do voyerismo, ou tudo que a teoria feminista queria descortinar, mas que não nos abrangia por completo. Mais que um conceito a ser aplicado de maneira automatizada (como aliás vem sendo ultimamente na academia), é claro para mim como o olhar oposicional descreve o estado mental que muitas mulheres negras aprenderam a cultivar para simplesmente estar nas salas de cinema, ver e assistir tantos filmes em que nossa ausência declarada em imagem e discurso poderia ter sido, anos após anos, uma completa mensagem de desistência.

Que mulheres negras não tenhamos desistido do cinema – após décadas do mais absoluto desprezo por nós – é o atestado empírico do que dizia bell hooks. Há algum poder no olhar, por menor que seja, e nos apegamos a ele com muita força, sem nem saber bem para onde nos poderia levar. Aguardamos, eventualmente chegamos a pequenas ilhas, lugares maravilhosos, como Café com Canela. E treinada, habituada ao olhar oposicional, crítico, construtivo, na companhia de colegas que fazem o mesmo, como é num festival de cinema, nem sempre consigo habitar com plenitude a ilha de um cinema tão raro para mim.

 

 

Café com Canela, a travessia

Rara também é esta experiência dúbia, então. De um lado, o olhar oposicional, que me permitiu possuir o cinema sem ser por ele possuída, de maneira que pudesse me encantar com o que está na tela, mesmo com a plena consciência do quase institucionalizado desprezo por imagens negras, e imagens negras femininas ainda mais. Com esse olhar assisti Café com Canela no festival, deixei-me atravessar por algumas emoções de maneira organizada, quis pescar referências, analisar linguagem, chegar a um veredicto, acompanhar esse importante momento político, uau, um filme desses, co-dirigido por uma mulher negra, não só selecionado como vencedor do prêmio do júri popular. Mas não me deixei possuir e nem me dei conta que podia.

Do outro lado, o que experimentei ao rever o filme na sala de cinema, eu e a tela, sem a pressão do veredicto, sem precisar me opor. Nos primeiros minutos de exibição, ainda nas cenas em que Margarida assiste a vídeo de aniversário do filho morto, escutei as risadas, vi a bicicleta, era meu aniversário. O tio dorminhoco que sequer segura o copo, talvez bebum, talvez cansado depois do trabalho, era meu tio. Margarida não parece minha mãe, mas de alguma forma é minha parente. Talvez uma tia-avó risonha que tenho. Risonha mas sofrida. O bolo do flamengo, a cervejinha, meu pai. Coxinha, bombom, rosa, toda sorte de alimento também para a memória.

Fui entrando, me acomodando. Foi fácil. A tristeza não trouxe desconforto. O filho morto são as duas filhas da minha avó, que tão cedo também morreram. Cidão é uma tia-avó minha que é uma figura. Ivan não é meu parente, mas é uma mistura de vários amigos, inteligentes, doces, engraçados, gays. Margarida e Violeta são tantas, e ao mesmo tempo são linguagem. Violeta é o próprio espírito do filme, o corpo/imagem pelo qual passaram depressão, renascimento, fome, nutrição, o jogo de equilíbrio que se fez veículo para a travessia espiritual em vida de Margarida.

E que promoveu também a minha travessia por onde nem sei, ali no escuro do cinema, diante de tão pungente representação daquelas experiências. Morte, impermanência, busca por sentido que não se encerra enquanto há vida, estava tudo ali. Ao final do filme, estava em lágrimas, pensei em tantas coisas sem nem saber que estava em ebulição. Senti que passara por uma sessão de fruição, pura e simples, guardei a oposição no bolso, não precisei me opor.


Política, enfim

Café com Canela é um filme fácil, e isso não é pejorativo. É facilmente reconhecível no cinema que se propõe a fazer, algo pelo qual estamos sempre aguardando, havia lugar para aqueles sons & imagens no meu eu espectador, certamente no de muitas pessoas, negras ou não. Se para mim a maior facilidade/felicidade residiu na fruição, para outros infelizmente talvez possa residir no encaixotamento. “É um retrato negro” seguido de vários bonitos adjetivos soa como reconhecimento, mas há um burburinho que denuncia certa condescendência.

É triste, a condescendência. Muitas vezes denuncia que aquele espaço está sendo aberto à força, digamos, duma voluntária aceitação do material artístico por valores outros que não o da arte. Ainda que as discussões internas já tenham superado essa falsa dicotomia arte/política (superaram?) é fato que existe um público que quer se emocionar, fruir, e espera, até mesmo sem saber, poder guardar no bolso qualquer nível de olhar oposicional que possam ter cultivado para não precisar abrir mão de gostar de cinema.

Se Café com Canela é um “bonito retrato negro”, talvez seja porque negra também é a vida, negra também é a arte, negros são também os espectadores. Isso é apenas um lembrete. Vale se esforçar mais nas definições, na descoberta do próprio olhar resistente que a crítica branca muitas vezes não sabe que tem, mas tem. Nesse caso, o olhar que não procura as profundezas da condição humana em narrativas negras. É um olhar que se imagina num lugar em que pode ditar o coeficiente artístico de uma obra, porque entende a função da arte e olha (de cima) para os filmes de pessoas negras/sobre pessoas negras como ainda carente, ainda por ser.

É o olhar que foge à sensibilidade – sensibilidade, não certeza – de que “o objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar a alma”, como disse Tarkovsky (2), e que ao cinema feito por/com/sobre pessoas negras não falta nada além de espaço, respiro, tempo e alimento para se desenvolver sempre e mais como cultivo da alma que é, e será. Se resta dúvida, sugiro assistir Café com Canela de novo. E de novo.

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Para pensar sobre os rumos e possibilidades do cinema negro no Brasil atual, sugiro dois textos que alimentaram minhas reflexões e que possuem a virtude de expandir questões em vez de encaixotá-las. São eles: O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018, de Heitor Augusto, e a resposta de Juliano Gomes, Carta ao Heitor (ou Desculpe a bagunça ou Ao mesmo tempo).

(1): Uso o termo olhar oposicional presente na tradução do texto de Raquel D’Euboux Couto Nunes para o livro Traduções da Cultura (org. Izabel Brandão). Na tradução de Maria Carolina Morais, disponível no blog Fora de Quadro (de Carol Almeida), o termo usado é olhar opositivo.

(2): reflexão presente em Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovsky, no capítulo “Arte: Anseio pelo ideal”.