Ainda, ouvir ainda a sua terna respiração,
e assim viver sempre – ou decair à morte.
- John Keats
Foi apenas em 1878, mais de meio século depois da morte de John Keats, que o público descobriu enfim quem era a misteriosa noiva do poeta e a inspiração para seu famoso poema Bright Star. Frances Lindon casou-se, teve três filhos e morreu aos 65 anos, mas, em 1819 ela ainda era Fanny Brawne ou apenas “my dearest girl” nas cartas de Keats.
Reveladas anos após as mortes de Frances e de seu marido Louis Lindon, as cartas do poeta são consideradas algumas das mais belas escritas na língua inglesa, mas na época em que foram descobertas causaram grande indignação. Keats mostrava faces da sua personalidade que o público não estava preparado para conhecer, sua vulnerabilidade e ciúmes tornavam o idolatrado poeta em um ser humano comum. Essa indignação logo tomou a forma de ódio pelo objeto de afeto de Keats, Fanny Brawne, vista como indigna do seu amor.
As cartas de Brawne para Keats nunca foram encontradas e sabia-se muito pouco sobre como ela correspondia àquela paixão desenfreada, a ideia de que ela era paqueradora e brincava com os sentimentos de Keats foi muito disseminada. É um tanto quanto irônico perceber que as musas dos poetas, aos olhos do público, só possuem valor dentro do poema, no sentido figurado. Uma mulher real, amada profundamente por aquele que é tido como ídolo, nunca seria capaz de chegar aos pés da mulher idealizada do poema. Pois bem. Fanny era real, possuía falhas e nem ao menos se interessava muito por poesia. Talvez por isso Keats tenha se apaixonado por ela, ela amava o John Keats homem, não o poeta, e foi com ele que ela ficou apesar da falta de dinheiro do rapaz – Keats só se tornou célebre após sua morte – e da doença que assolou os últimos anos da sua vida.
A terrível opinião pública sobre Fanny só começou a se alterar décadas depois da descoberta das cartas, com a publicação das cartas da própria Fanny para a irmã de Keats, que demonstravam a firmeza e constância de seu afeto (Estrela brilhante! Queria eu ser constante como sois). Ela passou muitos anos de luto depois da morte do noivo e guardou as cartas dele consigo até a sua morte. Não é de se admirar, então, que Jane Campion, que até então fizera filmes de cunho abertamente feminista, escolhesse fazer um filme que, apesar de aparentar ser um simples romance de época, fizesse parte da tendência de restaurar a reputação de Fanny Brawne perante a História.
Minha querida Menina,
Neste momento eu me posicionei para escrever alguns belos versos. Não posso prosseguir com nenhum grau de contentamento. Preciso escrever para ti uma ou duas linhas e ver se isso vai me auxiliar a tirar-te da minha Mente mesmo que por pouco tempo. Pela minha Alma, não consigo pensar em nada além de ti – O tempo em que eu era capaz de aconselhar-te e advertir-te contra a desalentadora manhã da minha Vida passou – Meu amor me tornou egoísta. Eu não posso existir sem você – Eu me desleixo de tudo menos de quando te verei de novo – minha Vida parece parar aí – eu não vejo além. Você me absorveu. Tenho a sensação no presente momento como se eu dissolvesse – Eu estaria extraordinariamente infeliz sem a esperança de ver-te em breve. Eu temeria estar distante de ti. Minha doce Fanny, teu coração nunca mudará? Meu amor, mudará? Não há limite para o meu amor – O teu bilhete acaba de chegar – Eu nunca posso estar ‘mais feliz’ longe de ti. É mais rico que um navio de pérolas. Não me ameace nem de brincadeira. Eu já me assombrei que Homens pudessem morrer Mártires pela religião – Estremeci em razão disso. Eu não estremeço mais. Eu poderia ser um mártir pela minha Religião. O Amor é minha religião. Eu poderia morrer por ele. Eu poderia morrer por ti. Meu Credo é o Amor e tu és o único dogma. Tu me arrebataste por um Poder ao qual não posso resistir; e todavia posso resisti-lo até ver-te; e desde quando te vi tenho me empenhado em “argumentar contra os argumentos do meu Amor”. Não posso mais fazê-lo – a dor seria desmedida. Meu Amor é egoísta. Não posso respirar sem ti.
Teu para sempre
John Keats
Em Brilho de Uma Paixão – Bright Star, no original – Campion conta a história do turbulento romance de John Keats e Fanny Brawne, desde seu primeiro contato até a morte de Keats de tuberculose aos 25 anos. Ou talvez fosse mais preciso dizer: desde quando Fanny conheceu John até seu luto após a morte do noivo.
Sabemos da morte de Keats, mas vemos apenas a reação de Fanny ao fato, ilustrando a intenção de Campion: é a hora de conhecer o lado de Fanny da história. Muito foi escrito sobre Keats, sua vida, trabalho e doença esmiuçados à exaustão. Mas o que sabemos sobre a mulher que o inspirou a escrever? O que sabemos sobre sua espera? Sua vida doméstica, seus desejos e planos para o futuro? Nunca saberemos ao certo as respostas para todas essas perguntas. Campion nos conta o pouco que se sabe e preenche as lacunas com lirismo e beleza dignos dos Românticos.
Passamos os três anos entre 1818 e 1821 em Hampstead, onde Fanny mora com sua mãe e dois irmãos mais novos e onde conhece Keats. Assim como o jovem poeta, Fanny também procura escape criativo e o encontra na costura. O filme é permeado pela vida cotidiana dos Brawnes, as aulas de dança dos três irmãos, bailes, caminhadas pela floresta; a beleza do dia-a-dia e da natureza é capturada com pouco movimento, por vezes, estática, lembrando pinturas bucólicas.
O mundo exterior, tanto a calmaria quanto as tempestades, complementam os sentimentos despertados pelos amantes. O início tímido do relacionamento é acompanhado por muitas cenas interiores, uma luz acinzentada. Quando somos confrontados com sentimentos violentos pela primeira vez, Keats encontra-se encharcado no meio de uma tempestade, desolado pelo seus ciúmes e acompanhado por trovões. Ao longo de todo filme o interior e o exterior brigam por dominação, as janelas são portais de contemplação para o mundo de fora e conforme o romance floresce, somos cada vez mais mais levados pela natureza. Em determinado momento, Fanny decide começar uma fazenda de borboletas dentro do próprio quarto em razão de uma carta de John.
“Eu quase desejo que fôssemos borboletas e vivêssemos apenas três dias de verão. Três dias como estes eu poderia preencher com mais deleite do que cinquenta anos comuns poderiam conter.”
A descoberta da doença de Keats marca a vitória dos espaços interiores. Ben Whishaw interpreta Keats com tamanha melancolia e vulnerabilidade que por vezes eu me pergunto se ele não deveria desistir de qualquer outro papel que não seja de um poeta romântico que morre antes dos 30 anos de idade. Sua atuação é marcante o suficiente para que o protagonismo de Fanny, interpretada por Abbie Cornish, seja equilibrado. Contudo, ao final, Whishaw não pôde dizer as últimas palavras do poeta (Não respire em mim, ela vem como gelo), proferidas em Roma e longe de todos seus amigos e de sua noiva. É Fanny quem vemos, andando pelo bosque com lágrimas nos olhos recitando o poema que ele escrevera para ela.
Sabemos muito pouco sobre Fanny Brawne, e sua história merece ser contada. Precisamos contar as histórias das mulheres silenciosas, que já não podem se defender. Das musas, das amantes, das mães, que sempre apareceram na História em função de algum grande homem cuja vida parecia mais importante. Precisamos de mais Fanny Brawnes restituídas ao seu lugar de direito. Ainda sabemos pouco sobre ela, mas já é um começo. Sabemos que ela amava costurar, que tinha dois irmãos mais novos, que gostava de festas e que ela amou profundamente um certo John Keats que, por acaso, veio a ser um dos grandes poetas ingleses.
Algumas experiências são tão raras, subjetivas e difíceis de serem descritas em palavras que resta, a quem não as viveu, apenas o mistério de imaginá-las. O cinema é uma das ferramentas que dão vazão a essas imagens que, por serem criadas, já trazem em si o peso da impossibilidade da apreensão direta do real. No entanto, os filmes estão há tempos nos apresentando a experiência da alteridade, de nos distinguir ou nos encontrarmos no olhar do Outro, muitas vezes como um caminho de retorno a nós mesmos. Arriscando-me a ser piegas aqui, os filmes podem nos ajudar a por a vida em perspectiva.
O uso da câmera subjetiva para colocar um sujeito dentro da história, como um olhar que se transfere para o espectador, não é novo, mas My Beautiful Broken Brain surge nesses tempos em que essa subjetividade não serve mais somente ao cinema, e sim às narrativas do dia-a-dia. As câmeras estão, para a maioria das pessoas que têm o privilégio de obtê-las, ao alcance das mãos, em nossos celulares, tablets e computadores. A profusão de histórias cotidianas gravadas no modo “selfie” de nossos celulares muitas vezes nos fazem parecer personagens que caminham por aí não necessariamente desvendando o mundo, mas repetindo a nós mesmos e tornando o universo mais parecido com o que queremos. Bem o inverso da ideia de alteridade.
Como então filmar de maneira a investigar a si, proporcionando a compreensão, a mudança e a empatia sem se deixar levar por uma egocêntrica narrativa de nós mesmos? Essa é uma pergunta sincera e faz parte da minha trajetória como realizadora. O que queremos quando nos colocamos em uma obra?
O que queria Lotje Sodderland quando, dez dias após seu acidente vascular cerebral, resolveu gravar um vídeo em modo “selfie” contando que está viva? Como o filme trata de sugerir tanto quanto deixar em aberto essa questão, o certo é que nunca compreenderemos inteiramente a nova forma como o mundo se apresenta para Lotje, mas temos à mão belos pedaços. A coragem de se colocar em frente à câmera lutando contra suas limitações cognitivas revela certa intenção de chegar a alguém. Em certos momentos, a solidão retratada faz parecer que ela precisa chegar a alguém, qualquer coisa, a ela mesma, e imediatamente, sob o medo de se ver esfacelar, de esquecer de si.
Há momentos em que o filme peca pela abordagem “documentária” forçada, tomando depoimentos de outras pessoas que insistem em dizer que Lotje era produtiva, extrovertida e intelectual, antes do acidente vascular cerebral. A direção do filme demonstra pensar que era preciso deixar clara a diferença entre a moça de antes e a de agora, mas o fato é que o melhor da obra é como Lotje percorre o caminho de descobrir quem ela é de verdade, para além de toda a mudança. O que define quem ela é: o acidente, as novas visões, as limitações de linguagem? Ou a extrema resiliência com a qual ela busca se recuperar, se redefinir e ressignificar o mundo? O que significa a vontade de Lotge de filmar a si no meio da rua, descrevendo seu novo mundo? Para que procurar uma diretora que pudesse transformar as descrições em cores, distorções e sons que pudessem dar conta desse universo além das palavras?
Não à toa, Lotje busca referência no cinema, a grande biblioteca dos imaginários visíveis, e em David Lynch, o cineasta dos sonhos. Através do contato com ele o filme pôde vir ao mundo. É emocionante ver como ela parte das limitações de sua mente para o entendimento de uma mente sem limites, quando passa a se ver como parte de um sonho, de uma consciência cósmica, sem com isso diminuir a dor de sua condição. Seu acidente foi provocado por condições genéticas, interiores, que tornavam seu novo estado de vida apenas uma questão de tempo.
Logo se nota que para Lodje, o grande desafio está em aprender a libertar sua versão mais verdadeira, diante da fragilidade de si mesma, de suas memórias e do mundo em vive, tão despreparado para pessoas como ela. Nunca saberei o que ela sente, mas graças à sua busca pela permanência através do ato de filmar, posso assisti-la e colocar minha própria vida em perspectiva. Não estamos falando de egolatria. My Beautiful Broken Brain é sobre filmar para não esquecer.
O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.
No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.
Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.
Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).
O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.
Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.
Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.
O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.
Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.
A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.
O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.
O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.
São Paulo, início dos anos 80. Uma menina menstrua pela primeira vez e sonha em visitar a Califórnia. Assim começa o novo filme de Marina Person, uma história de formação com uma forte nostalgia alimentada pelo universo musical da década de 80. A atmosfera saudosista do filme, entretanto, não é pelo Brasil de outrora, mas sim por um Outro Lugar que, no caso, é representado pela costa oeste Estados Unidos que nunca vemos ao longo do filme. É uma saudade de algo que não se conhece, um simples querer estar em um lugar que não aqui.
No fundo, tudo é fuga. Estela, a protagonista, como muitos adolescentes, sente-se deslocada e reprimida pelo pai conservador. Para Estela, a Califórnia é o tio gay, subversivo, irreverente, a Califórnia é o rock, rebelde, a música das pessoas que não se encaixam. É um baque enorme, então, quando o tio volta pro Brasil, doente, derrotado. A AIDS representa muito mais que uma doença, é um perigo que se corre quando fogem-se às regras.
Aqui, permita-me fazer um pequeno e infame jogo de palavras, chegamos à grande fuga do filme: as regras (menstruais). A menarca significa, em muitas culturas, a entrada da mulher na vida adulta e não é à toa que o filme comece com a visão da calcinha suja de sangue de Estela dois anos antes dos acontecimentos do resto do filme. Não sabemos o que acontece com Estela no tempo entre sua primeira menstruação e seus 17 anos, mas ao a reencontramos, não vemos uma adulta. Fica clara a intenção de Person de diferenciar o que marca a maturação de uma mulher para o mundo e o que é de fato essa maturação – um caminho complexo que não pode ser resumido a processos biológicos. Quando vemos Estela aos 17 anos ainda no começo do filme, vemos uma criança. Seus pais não conversam abertamente com ela, ela está passando pelas tribulações de um primeiro amor, e ela eventualmente descobre que não está pronta para começar sua vida sexual.
Clara Gallo e Caio Horowicz
A adolescência é uma fase confusa e contraditória, ao mesmo tempo que Estela não se sente preparada para encarar a vida adulta, ela deseja a liberdade que ela proporciona desesperadamente. Tio Carlos, ao ir para os Estados Unidos, fugia do que era ser um homem gay no Brasil durante a ditadura militar, mas a realidade bate à porta de todos, e, no final, ele tem de retornar. Estela, também, não pode continuar a sonhar com o Outro Lugar.
Ao longo da história, nossa jovem protagonista tem que encarar suas próprias transformações. Decepções amorosas, livros complexos, uma viagem para a praia, a doença e morte do tio fazem parte da sua jornada de maturação. Ao final, vemos enfim uma mulher capaz de tomar decisões sobre seu próprio corpo, fechando um ciclo. No começo, tínhamos uma menina sonhando em encontrar o tio na Califórnia, no final, uma mulher que troca cartas com um amante na Índia. Ela ainda está no mesmo lugar, no Brasil, se correspondendo com homens em fuga, mas a ditadura militar está chegando ao fim, ela é uma mulher adulta e está preparada para ficar.
No ano passado, o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro foi um filme curto, apenas 80 minutos, que contava a história de duas mulheres que pouco falavam e, mesmo assim, conseguiram encapsular boa parte da história da Polônia pós-Segunda Guerra durante a ditadura stalinista no começo da década de 60.
A conversa ao entorno de Ida nas semanas que precederam a premiação, entretanto, girou em torno da fotografia estonteante da obra, que rendeu outra indicação ao filme, algo raro quando se trata de filmes estrangeiros e o Oscar. Sua capacidade de contar histórias que ultrapassam o individual para abarcar o coletivo, embora menos comentada, permanece notável. A diretora turco-francesa Deniz Gamze Ergüven exibiu uma habilidade narrativa semelhante este ano com seu primeiro longa-metragem, Cinco Graças, que concorre ao mesmo prêmio que Ida ganhou em 2015.
Ergüven nos apresenta cinco irmãs cheias de vida e liberdade. Órfãs, as cinco moram com a avó em uma pequena cidade do interior que, com crescente conservadorismo, observa o comportamento das meninas com reprovação. Após brincadeiras com garotos na praia, comentários maldosos chegam aos ouvidos do tio das meninas e ele obriga as irmãs mais velhas a passar por um teste de virgindade. Depois disso, as cinco são submetidas a mais uma série de situações humilhantes: grades são instaladas em toda a casa, elas param de ir a escola, casamentos começam a ser arranjados para as mais velhas.
A falta de direitos é especialmente amarga quando eles um dia nos pertenceram. O mais doloroso para elas ao lidar com sua nova situação é saber que antes eram livres. Felizmente, é essa mesma consciência que mantém a rebeldia viva dentro delas, andando de calcinha pelo quintal– mesmo sendo obrigadas a usarem vestidos “cor de cocô” do lado de fora – fugindo de casa para assistir a um jogo de futebol, fazendo sexo anal com o namorado para conservar o hímen intacto.
Contra a perda de direitos, as Cinco Graças ainda possuem algumas ferramentas com que lutar, mas a situação se agrava de forma preocupante quando elas se veem isoladas. A separação das irmãs é o que as debilita mais profundamente. A atmosfera da casa a que estão confinadas se torna cada vez mais opressora conforme elas são separadas uma das outras.
Ergüven nos mostra uma geração de mulheres turcas que está sendo reprimida, mas ao mesmo tempo nos dá esperança em sua união. Juntas elas são mais fortes. Vemos essas meninas serem submetidas a testes de virgindade e serem trancadas como princesas em suas torres, e quem as salvará não será nenhum príncipe. Elas só podem contar com elas mesmas e suas irmãs para sobreviver.
A Turquia foi um dos primeiros países do mundo em que mulheres conquistaram o direito ao voto, na década de 30, muito antes da França, por exemplo. O país possui uma população majoritariamente mulçumana e é oficialmente laico. Da década de 80 a 2000 o movimento feminista teve grande força no país e, desde 1983, o aborto até a décima semana de gestação é legal. Em 2003, entretanto, com a chegada do partido conservador AKP ao poder, muito do progresso que havia sido conquistado até então caiu por terra.
O atual presidente turco, Tayyip Erdoğan fez declarações públicas dizendo que métodos contraceptivos são traição e que ameaçam a linhagem turca. Desde 2012, a constante comparação entre o aborto e assassinato feita por Erdoğan tem incentivado hospitais públicos a se recusarem a realizar a operação, desafiando a lei vigente. Mesmo em grandes cidades como Istambul, existe uma grande dificuldade em conseguir o cuidado apropriado, o acesso a abortos seguros fica restrito a mulheres que podem pagar pelo procedimento em hospitais particulares. As mudanças no país, entretanto, podem se mostrar ainda mais profundas. Escolas que a princípio eram laicas estão sendo transformadas em colégios religiosos, a educação básica do país está reproduzindo ideais conservadores que podem significar décadas de retrocesso.
A Turquia se encontra profundamente dividida entre dois lados opostos, um progressista, outro retrógrado, não muito diferente do acontece aqui no Brasil e nos Estados Unidos. A ascenção de políticos como Jair Bolsonaro e Donald Trump marca um crescente conservadorismo ao mesmo tempo que grupos de resistência ficam mais fortes. O movimento feminista turco continua a existir e a lutar, e Cinco Graças dá a entender que as mulheres estão muito longe de desistir dos seus direitos sem uma boa briga.
Dirigido por Jennifer Phang, o filme saiu em cartaz este ano e muito me admira a pouca repercussão que tenho visto em torno dele.
Advantageous (infelizmente não temos um título em português) é um filme escrito, dirigido e produzido por mulheres – o que fica bem claro do início ao fim do filme. Excelente exemplo sobre como é importante estarmos representadas dentro da indústria cinematográfica.
Trata-se de uma ficção científica que conta a história de Gwen Koh, mulher, mãe solteira e porta-voz de uma grande empresa que oferece serviços de beleza.
Desde os primeiros minutos, o filme retrata a íntima relação entre Gwen e sua filha Jules, de 13 anos. As personagens estão muito bem construídas dentro da história, com uma sensibilidade que se torna um dos pontos mais fortes de “Advantageous”.
A história acontece quando Gwen resolve falar com seu chefe, David, a respeito de um aumento. Depois de tanto tempo na empresa ela acredita que seria justo, mas surpreende-se com a notícia de que, devido à sua aparência de alguém que já estaria “velha demais” para o cargo, será demitida. Gwen provavelmente se preparou durante semanas para ter a coragem de pedir um aumento à seu chefe homem, mas em troca recebe um soco no estômago logo de cara.
Apesar do choque, Gwen acredita reconhecer seu valor no mercado e pensa poder conseguir um outro emprego com facilidade, tudo para poder pagar a universidade particular de Jules. E é aí que entra o grande ponto da história: a empresa que Gwen trabalhava impede-a de se reposicionar no mercado. Logo vemos que não só Gwen, mas grande parte das mulheres estão tendo grandes dificuldades para arrumar emprego, e isso dá-se pelo fato de que os donos das grandes empresas, assim como David, pretendem mandar as mulheres de volta para casa – com base num argumento estúpido de que homens desempregados representam um risco maior de violência para a cidade.
Desempregada e sem nenhuma esperança no futuro, Gwen recebe uma proposta tentadora: seu emprego será mantido sob a condição de que seja a cobaia de um experimento cujo objetivo é rejuvenescê-la. Gwen sabe que os riscos são grandes e até chega a pedir ajuda às poucas pessoas que imagina poder contar: mãe e irmã. Ambas a culpam pelo mesmo motivo e é nesse momento em que descobrimos que Jules é, na verdade, o fruto de uma relação entre Gwen e o marido de sua irmã. Passamos a entender porque Gwen vive tão isolada, porque o tempo inteiro ela parece ocupar espaço em um corpo que não é seu, como se a culpa a tivesse dominado por inteiro. Gwen cometeu o mesmo ato que o marido de sua irmã, mas o dedo foi apontado apenas sob sua face.
Esse momento merece atenção especial porque ao mesmo tempo em que mostra a culpabilização da sociedade sobre a mulher, mostra também a posição da irmã de Gwen – como esposa que perdoa o marido mas que não consegue perdoar a irmã, ainda que tente muito. Mas, afinal, quem pode culpá-la? Se somos criadas, mesmo que como irmãs, para competirmos entre nós mesmas o tempo inteiro? Criadas para sermos perfeitas enquanto homens permitem-se ser falhos?
É também uma cena incrível porque mostra o desinteresse do marido em saber se Jules era sua filha ou não, e que, por ser homem, lhe é dado o privilégio da dúvida. Vê-se como é imposto à Gwen a obrigação de sofrer as consequências de seus atos sozinha e calada – cabe somente a ela a responsabilidade do feto.
É por causa dessa culpa que Gwen deixa de se enxergar como ser humano. Sua existência deixa de ter valor e ela se torna apenas um corpo abjeto para si própria. Seu objetivo de vida passa a ser único e exclusivamente o de criar Jules, de oferecê-la uma vida plena e feliz, a vida que Gwen não merece mais. É um ritual de passagem, onde Gwen vê em Jules a mulher que ela talvez nunca tenha sido, mas que, com certeza, nunca será. Sendo assim, seu processo de “desumanização” começa muito antes da cirurgia.
Jules é um personagem excelente. Ela simboliza a geração de mulheres que lidam diariamente com a pressão de serem perfeitas, de fazerem parte do famoso “pacote completo”. Veja que Jules é criança e já pensa em procriar, sendo essa a principal função dela como mulher na sociedade em que vive. As outras funções – estudo, profissão, beleza, juventude – estão ali para provar que mulheres são tão capazes quanto os homens de ocupar um espaço. Porque os homens só precisam nascer homens, mas as mulheres devem cumprir todos esses papéis – e exercerem perfeição em cada um deles – para se darem ao luxo de concorrer à uma vaga nesta irônica sociedade patriarcal. A pressão é tão grande que Jules se pergunta o tempo inteiro qual o sentido de sua vida, um pensamento que provavelmente já foi passado para ela através de Gwen, pelos motivos que comentei acima.
Por fim, para manter seu emprego e poder oferecer o futuro que deseja à Jules, Gwen decide fazer a cirurgia – se é que em algum momento isso foi de fato uma decisão. Mas não acaba aí, porque um dos motivos da demissão de Gwen havia sido o dela não possuir uma beleza “universal”, o que poderia gerar problemas lucrativos para a empresa. Essa questão toca num ponto importante, que é o da “universalização” da beleza da mulher. E por “universalização” lê-se uma mulher branca, magra, de preferencia alta e de cabelos lisos. Dentro de um padrão bem eurocêntrico e norte-americanizado da ideia de beleza. Se estivéssemos mesmo falando sobre quantidade, sendo que a população da Ásia corresponde a 4,427 bilhão de pessoas, enquanto que a da América do Norte corresponde a 528,7 milhão, não faria mais sentido que a “mulher padrão” fosse asiática, como Gwen?
Para concluir de maneira brilhante, Jennifer Phang finaliza o filme colocando no lugar de Gwen uma mulher que cai de pára-quedas na história. Talvez não seja proposital, mas há grandes indícios de que essa mulher simbolize a pressão que existe em torno de todas nós para sermos mães perfeitas. Mães que, ao engravidarem, automaticamente já devem saber o que fazer. Que devem ter todas as respostas, sobretudo aquelas que os pais não têm. Que muitas vezes não estão preparadas, mas devem assumir este papel.
Advantageous é um filme classificado como ficção científica, mas nos coloca – de maneira brilhante, diga-se de passagem – diante de uma reflexão sobre as semelhanças entre o mundo de ficção em que Gwen vive e a realidade em que estamos inseridas.
A escritora Maya Angelou entrevistou a cantora Nina Simone em 1970, para a revista americana Redbook. Quando Nina contava sobre sua infância e adolescência, revelou: “Eu encontrei o amor na juventude, e eu o perdi. Eu perdi o amor e fundei uma carreira”. A frase seguinte de Maya abre o documentário “What Happened, Miss Simone?”: “Mas, senhorita Simone, você é idolatrada, até mesmo amada, por milhões agora”.
Nina rebateu: “Para mim, estou muito distante da compensação pelo que eu abri mão”. Essa frase parece se conectar à aparente ambição do filme lançado pelo Netflix: a de contar a história de vida de uma mulher que fora ferida mortalmente há tanto tempo que não poderia mais viver sem sangrar.
A diretora americana Liz Garbus acerta em sua tentativa de expor esse sangramento através da combinação de material de arquivo com áudios de entrevistas a Nina: ainda que o método não seja nada inovador e pouco ousado, é eficaz em confrontar o espectador a se perguntar se ele mesmo sairia de uma história de tanta violência e racismo sem alguma chaga. Serve também para gerar uma aproximação através da memória, do encontro com os Estados Unidos da América de ontem, que deixou cicatrizes nos dias de hoje (e se o racismo marca a história de uma nação, como não haveria de marcar uma mulher negra para sempre?). Não há como falar em Nina Simone sem atravessar a história dos EUA junto com ela.
Essa dinâmica é quebrada por entrevistas com os antigos amigos, com o ex-marido e com a filha, Lisa. Nesses momentos o documentário flerta com a ideia de que ela era tão genial quanto de difícil convivência, devido à personalidade forte e explosiva. É desconfortável ver a filha de Nina atuar como antagonista da própria mãe, ao colocar em cheque até mesmo a vida sexual da cantora e sua aptidão para a maternidade.
Os depoimentos de Lisa são pouco confrontados e muitas vezes assumem o lugar da narração das imagens (que por sua vez, confunde-se com a “verdade”). O mesmo ocorre com a entrevista de Andrew Stroud, ex-marido de Nina. É justo dar o poder da narração ao estuprador, espancador e abusador confesso da personagem do documentário? Em certo momento os objetivos do filme parecem envoltos em certa névoa de desconfiança: estamos assistindo para conhecer, admirar ou para julgar Nina? Alguns blogs manifestaram sua revolta com essa questão (neste post em inglês e neste em português). A revelação (tardia, no filme) de que a cantora sofria com transtorno bipolar surge como que para justificar seus rompantes de fúria, colocando sobre a doença o ônus de sua “loucura”. O que aconteceu a Nina Simone, afinal, é de fato o que a obra se propõe a desvendar, mas tem como principais marcas a ambiguidade e certa conveniência em suas respostas.
Pode-se supor que o filme pretende mesmo quebrar qualquer ideia de mito acerca de Nina Simone, e colocar o espectador de frente com o pior dela, para colocar em perspectiva o pior da humanidade – o cinema, de vez em quando, investe-se dessa missão. Nina foi abusada por ser mulher e dilacerada por ser mulher e negra, testemunha e vítima de uma época criminosa em que o povo negro tinha que matar ou morrer para ser ouvido nos Estados Unidos (será que essa época já acabou?). Nina passou da solidão à revolta, e no caminho aprendeu e absorveu a ação violenta. Quando precisou, usou dela para fazer valer o que acreditava. Em algum momento, o documentário sugere, parece ter sido dominada por essa violência.
Ou talvez a dominasse, e fizesse de seu sangue uma arma, como mais uma manifestação do recado de que o mundo ainda levaria muito para compensá-la.
Na hora de filmar a cena, eu me concentro em registrar a realidade como se fosse um milagre. – Naomi Kawase
A proliferação de tecnologias e maior acesso às mesmas nas últimas décadas causaram um aumento da exposição, singularização e, em muitas situações, espetacularização da intimidade. Há uma quebra de fronteiras entre público e o privado e as narrativas contemporâneas adotam cada vez mais a forma de testemunho, autobiografia e metaficção, gerando leituras impactantes.
Resultado dessa geração tecnológica, vivemos cercados de informações e inovações, apresentando sintomas de uma inquietação interior comum. Por ser comum, aplica-se ao coletivo humano uma necessidade de preenchimento desse vazio “instalado pela era do excesso, do transbordamento, do acúmulo, do pessimismo”, como colocado por Isabelle Hattanda em Uma proposta de cinema contemporâneo transcendental.
Os filmes da cineasta japonesa Naomi Kawase têm forte presença de ausência e de perda; são experiências de vida que envolvem o aprendizado do corpo ao lidar com a dor, mas de forma leve, sem ressentimento. Essas características são ainda mais fortes em seus documentários, uma vez que se trata dela mesma lidando com suas próprias dores: o abandono dos pais, sua busca por eles, a morte iminente de sua tia-avó que a criou como filha. A ausência se faz presente em matéria fílmica.
Feitos através de uma pequena Super 8, seus primeiros filmes são registros de momentos de sua vida cotidiana na pequena cidade de Nara. Sua câmera é curiosa, inquieta, busca ver por dentro da própria imagem. A montagem é descontínua, deixando forte presença da autora.
Minhas obras, meus filmes, talvez fujam um pouco das formas mais padronizadas de cinema, mas acredito que existem outros realizadores que estão continuando também a fazer essa arte mais “humana”. Acredito, talvez, que posso de alguma forma estar dialogando com esse tipo de pessoa. De qualquer forma, não penso muito sobre movimentos cinematográficos. Na realidade, acho que se olhar para os meus passos, estarei tendo, isso sim, uma conexão com a natureza e o mundo antes de tudo. (Naomi Kawase, em entrevista para e Revista Cinética)
Além da poesia presente no fato de serem apresentadas sensações além do que foi filmado, há também a intenção de tatear, como em Caracol (Katatsumori, 1994), filme que contempla com afeto o cotidiano de sua tia-avó, Uno Kawase, na pequena cidade de Nara, e que seria o primeiro filme da chamada “trilogia da avó”. Na cena em que tateia o rosto de Uno depois de observá-la de longe pela janela, o ato de fazer do tato um gesto primordial traz o conceito da “câmera-pele”. É exteriorizada a necessidade de tocar alguém que se ama, e é através do tato que é sustentada a materialidade do que se perderia com a morte de sua tia-avó.
No segundo filme da trilogia, Viu o Céu? (Ten, Mitake, 1995), Kawase alterna o som com a imagem, trazendo uma experiência sensorial diferente da protagonizada em seus filmes anteriores, no qual o off e a fala de Uno conduzem a narrativa. O som de uma secretária eletrônica acompanha as imagens de sua tia-avó queimando papéis, em preto e branco e em câmera lenta. Ao acabar essa cena, Uno aparece cuidando de seu pomar, já em cores. Na sequência, Kawase divide as cenas em frames, constituindo um quadro a quadro com fotografias estáticas da tia-avó no jardim. No final do filme, que não dura mais do que 10 minutos, Uno é enquadrada apontando para o céu anoitecido, quando Naomi aparece e pula por cima da tia-avó. Ambas aparecem à vontade em frente à câmera e em contato com a natureza.
O terceiro e último filme da trilogia, Sol Poente (Hi wa katabui, 1996) é um média-metragem mais leve e despretensioso, no formato de “filme-diário”. Os offs são desabafos, comentários e inquietações. Os elementos da natureza seguem sendo o que move os filmes de Kawase: a câmera mostra o pomar da tia-avó e a chuva. Uno, já mais familiarizada com as filmagens, ri, brinca com a câmera. No entanto, há uma quebra na descontração quando a tia-avó a confronta, perguntando por que a relação com o avô é tão melhor que a que tem com ela. Mesmo nesse momento de tensão, a câmera segue ligada, acompanhando todo o processo de desentendimento entre as duas. No entanto, este filme é o primeiro filme em que o tio-avô é mencionado, como se até então inexistisse.
Essas características do poético e do contemplativo, presentes nos três filmes, já não eram novidade na época em que foram feitos, e muito menos hoje em dia, quando há cada vez mais diretores mostrando os mais diversos olhares sobre o mundo. O diferencial dos filmes de Kawase está na fidelidade com a ideia de registro e da sensação de parecer que ela se prende no cordão umbilical que não pôde desfrutar na inexistência da relação com a mãe. O carinho está presente na câmera que cola em sua tia-avó como que num esforço para tocá-la. Não somente a câmera se aproxima, ela caminha, vai até os personagens sem se preocupar que sua presença seja notada ou não. Nesse processo, portanto, a câmera treme, o foco está constantemente em ajuste, a câmera vai de encontro com objetos.
Eu não comecei a produzir filmes em homenagem a algum diretor ou algum filme. Os homens são únicos desde o nascimento. Por conta disso, às vezes sentem solidão no coração. Porém, na realidade, todos nós temos a experiência de ligação com alguém (ao menos a própria mãe). No final, as vidas são ligadas, conectadas. No início da minha carreira, eu produzia filmes para matar essa solidão… era isso. Agora, estou produzindo os filmes para retratar a beleza da ligação e conexão das vidas. (Idem)
O som nesses filmes aparece quase sempre em off, acompanhado por imagens do cotidiano de Uno em seu jardim, da natureza como ponto de equilíbrio e lugar de encontro. Sol Poente fecha a trilogia fecha desse ciclo da vida de Naomi, expondo que além de registrar imagens como memórias de boas lembranças, o cinema também é lugar de dor. A combinação de som e imagens não resulta em uma imagem dialética nem mesmo obrigatoriamente gera uma interpretação, mas sim retrata as buscas de uma mulher jovem que deseja conhecer sua própria origem, tentando completar a si mesma.
Os filmes de Kawase apresentam imagens que não têm a pretensão de ser simbólicas. O sentido aparece delas e permanece em suspensão, convocando à exploração da memória da cineasta. As sutilezas mais amplas ainda não percebidas são levadas em conta mais do que o próprio sentido. O ato de filmar é quase penetrar no que vê, seja algo como seus primeiros registros documentais, seja a pele de sua tia-avó. Em sua relação com a imagem, o afeto vem da imagem crua através do toque, do contato íntimo entre aparato e objeto.
Da porta da cozinha, a sala de jantar não é mais que uma fresta. Ouvimos atentamente os sons que vêm de lá, esperando escutar uma ordem ou pedaços de uma conversa para a qual não fomos convidados. Os desavisados podem até pensar que o filme de Anna Muylaert é emoldurado por uma cozinha, por portas entrefechadas e janelas que dão pro lado de dentro, ignorando que na verdade a nossa protagonista está ali no que nós achávamos que era moldura. Ela mesma se confunde, achando que é parte do plano de fundo, sem perceber que estamos ali para conhecer a história dela.
Val (Regina Casé) é assim mesmo, uma figura cheia de luz própria e carisma que acha que nasceu para viver às sombras, que conhece o “seu devido lugar” e que entende que quando a patroa (Karia Teles) diz que ela é “como se fosse da família”, assim como quando um sorvete caro é oferecido pelos donos da casa, essa é uma honra que eles oferecem sem esperar que ela aceite.
Até que, um dia, ela aceita. O constrangimento é palpável, expondo, aos poucos, uma relação delicada que começa a ruir a partir do momento em que se aceita algo que só foi oferecido por educação. Val não o faz por si mesma, e sim pela filha, que não vê há dez anos. O que não se espera é que Jéssica (Camila Márdila), articulada e inteligente, compreenda logo de cara as relações de poder da casa e exponha a hipocrisia da situação.
A diferença de tratamento que Val dá para a própria filha e Fabinho (Michel Joelsas) é tão clara quanto o enorme abismo na maturidade dos dois. Seu Carlos (Lourenço Mutarelli), um homem melancólico e calado, não perde tempo em assegurá-la que o dinheiro de verdade é dele, como se isso o tornasse mais másculo e atraente pra adolescente que acabou de chegar na sua casa. Dona Bárbara é um ideal feminista para muitos. Uma mulher poderosa, dona do seu próprio negócio, que alcança o lugar que os homens sempre ocuparam na sociedade. Um feminismo branco, elitista e superficial em que se procura ocupar um lugar mais elevado em uma estrutura opressora, sem nenhuma intenção de desmantelá-la. Quando confrontado com questões mais profundas, entretanto, se revolta. Como se atreve, essa menina, nordestina, querer passar em uma das melhoras faculdades do país? Como se atreve, a filha da empregada, querer um lugar ao sol?
Que Horas Ela Volta? é um filme sobre muitas coisas. É sobre mães que deixam filhos para dar um futuro para eles que, por sua vez, deixam seus filhos para dar um futuro para eles. É um filme sobre o fim de uma maldição de família. É um filme sobre relações de gênero, sobre relações de classe. É um filme sobre pessoas que tentam resguardar seus privilégios, e também sobre as que desafiam o status quo. É um filme sobre um país que está mudando, reconhecendo padrões de comportamento e dizendo “eu mereço mais do que isso”.
Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.
A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.
A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.
O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.
Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.
Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.
Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.