Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

MASCULINIDADE TÓXICA: TOP OF THE LAKE

Quando eu vi que havia uma série criada pela Jane Campion, uma das mais prolíficas e importantes cineastas do mundo, disponível na Netflix, eu pensei que estava sonhando. Conhecendo o trabalho da diretora, entretanto, tive que me lembrar: Jane Campion se interessa mais por pesadelos que sonhos. Profundamente romântica – no sentido byroniano da palavra – Campion lida tanto com o amor quanto com o grotesco com maestria e nessa obra em particular ela não deixou a desejar.

Assistir a Top of The Lake é um desafio em resistência. Assistir aos seis episódios duas vezes em um espaço de duas semanas beira o masoquismo, mas cá estou eu, espelhando a protagonista: traumatizada, com o coração em frangalhos, e, apesar de tudo, viva. Eu queria poder dizer que o mundo retratado por Jane Campion – hostil, patriarcal, violento – não é representativo da realidade, que nossas perspectivas são mais otimistas, mas os jornais e as estatísticas não me permitem esse conforto. Na pequena cidade neozelandesa de Laketop, a masculinidade tóxica é mais que um problema a ser combatido, ela é parte do alicerce que estrutura todas as relações humanas. E não é nesse mesmo mundo em que vivemos?

A série começa com um caso desalentador: Tui Mitcham, grávida aos 12 anos, tenta se suicidar. A partir daí, somos introduzidos ao mundo sombrio e perturbador de Laketop junto à detetive Robin Griffin, que está voltando a cidade depois de quinze anos para visitar a mãe doente e acaba se envolvendo na investigação. Ela é recebida com desrespeito pelos outros detetives e tratada com descaso pelo investigador responsável pelo caso. Esse comportamento apresentado dentro da delegacia pelos próprios policiais expõe a institucionalização da misoginia na cidade, demonstrando que até mesmo as entidades que representam a lei foram corrompidas e não podem ser confiadas. A partir dessa primeira interação, somos preparados para uma agressividade ainda menos velada no resto da cidade. Desde a casa de Tui, controlada pelo patriarca violento Matt Mitcham, até o acampamento de mulheres que se instala na região, vemos mulheres fragilizadas e traumatizadas.

Nem todos os problemas em Laketop são por natureza misóginos, mas são enraizados em uma cultura masculina tóxica que tem como efeito colateral a misoginia. Todos na cidade, por exemplo, sabem que Matt Mitcham é o dono de um laboratório de drogas, mas ninguém tem coragem ou vontade de denunciá-lo pois boa parte dos empregos e da economia da cidade dependem do tráfico e do próprio Matt. A polícia, majoritariamente composta por homens, finge que não vê, e os cidadãos ignoram as eventuais tragédias que ocorrem em consequência. Todos são, portanto, cúmplices. Não é surpreendente que os mais afetados por esse sistema corrupto sejam jovens, em especial jovens mulheres. Uma adolescente morre com traços de cocaína na vagina e a conclusão que a polícia chega, sem nem ao menos fingir investigar, é que ela se suicidou. A reação do detetive responsável pelo caso de Tui, Al Parker, ilustra perfeitamente como a comunidade lida com o que há de podre em Laketop. Depois de exames e perguntas, ele manda Tui de volta para a casa do pai dizendo que “ela não pode ficar mais grávida”: o estupro não importa, os possíveis abusos sofridos na casa não importam, o “estrago” visível, e portanto condenável, já está feito, o resto é inconsequente e pode ser varrido pra debaixo do tapete, assim como a cocaína, os assassinatos e a violência.

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Para as mulheres, Laketop é um ambiente extremamente hostil e perigoso, para os homens que fogem ao padrão, sufocante. Entre os homens maduros conhecemos, só há um que rejeita o universo hiper-masculinizado e violento da cidade. Ele é, ironicamente, o filho mais novo de Matt, Johnno Mitcham, que vive em uma tenda na floresta. Como as mulheres do acampamento, ele vive à margem de uma sociedade à qual ele não pertence, mas diferentemente delas, ele escolhe não pertencer. Enquanto as mulheres buscam refúgio em apoio mútuo no qual elas encontram proteção, ele é completamente capaz de viver sozinho. Fica clara a diferença de como a violência afeta homens e mulheres, Johnno participa de atividades sociais quando quer e se omite a menos que alguém com quem ele se importa – Robin – passe por episódios de violência. As mulheres são constantemente sujeitadas a extremo desrespeito e até mesmo abuso quando tentam interagir com homens, dentro ou fora do acampamento. Em uma ocasião, Matt Mitcham xinga todas de “unfuckable”, dando a entender que o valor de uma mulher é diretamente proporcional a seu grau de atração física. E é isso que mulheres são para todos os homens da série, objetos sexuais com ou sem serventia.

É interessante perceber, entretanto, que Top of The Lake não explora cenas explícitas de estupro. Vemos diversos filmes e séries que tentam representar realidades machistas e acabam por fazê-lo de forma machista, eles se utilizam de mulheres mortas para demonstrar a perversidade de determinado vilão e que acabam por glorificar imagens de extrema violência contra mulheres de forma quase fetichista. Muitos desses filmes são protagonizados por homens e seus vilões são homens e as mulheres – mutiladas, desfiguradas – só estão lá para avançar a trama. Vivemos, sim, num mundo machista em que mulheres são vítimas de crimes grotescos, mas existe uma forma de explorar isso sem comercializar e glorificar a violência contra a mulher. Em Top of the Lake, vemos um exemplo. As imagens de sexo consensual são amplamente exploradas, demonstrando um fascínio muito maior pelo prazer feminino do que pela dor. Nessas cenas, o corpo masculino é mais observado que o feminino, a mulher é o sujeito e o homem objeto. Crimes misóginos são representados, mas Campion não enaltece imagens de mulheres mortas ou estupradas. O crime contra Tui não a deixa prostrada, ela permanece viva e portanto ainda possui vontade própria e algum nível de autonomia. A investigação é protagonizada por uma mulher que também sofreu violência no passado e que não fica incapacitada por conta disso. Ela tem demônios com que lidar, sequelas que não serão apagadas nunca, mas ela é uma sobrevivente e sobreviventes têm uma característica muito particular: elas não desistem fácil.

UM EXPERIMENTO SOBRE CORPOS ABJETOS: ADVANTAGEOUS

Dirigido por Jennifer Phang, o filme saiu em cartaz este ano e muito me admira a pouca repercussão que tenho visto em torno dele.

Advantageous (infelizmente não temos um título em português) é um filme escrito, dirigido e produzido por mulheres – o que fica bem claro do início ao fim do filme. Excelente exemplo sobre como é importante estarmos representadas dentro da indústria cinematográfica.

Trata-se de uma ficção científica que conta a história de Gwen Koh, mulher, mãe solteira e porta-voz de uma grande empresa que oferece serviços de beleza.

Desde os primeiros minutos, o filme retrata a íntima relação entre Gwen e sua filha Jules, de 13 anos. As personagens estão muito bem construídas dentro da história, com uma sensibilidade que se torna um dos pontos mais fortes de “Advantageous”.

A história acontece quando Gwen resolve falar com seu chefe, David, a respeito de um aumento. Depois de tanto tempo na empresa ela acredita que seria justo, mas surpreende-se com a notícia de que, devido à sua aparência de alguém que já estaria “velha demais” para o cargo, será demitida. Gwen provavelmente se preparou durante semanas para ter a coragem de pedir um aumento à seu chefe homem, mas em troca recebe um soco no estômago logo de cara.

Apesar do choque, Gwen acredita reconhecer seu valor no mercado e pensa poder conseguir um outro emprego com facilidade, tudo para poder pagar a universidade particular de Jules. E é aí que entra o grande ponto da história: a empresa que Gwen trabalhava impede-a de se reposicionar no mercado. Logo vemos que não só Gwen, mas grande parte das mulheres estão tendo grandes dificuldades para arrumar emprego, e isso dá-se pelo fato de que os donos das grandes empresas, assim como David, pretendem mandar as mulheres de volta para casa – com base num argumento estúpido de que homens desempregados representam um risco maior de violência para a cidade.

Desempregada e sem nenhuma esperança no futuro, Gwen recebe uma proposta tentadora: seu emprego será mantido sob a condição de que seja a cobaia de um experimento cujo objetivo é rejuvenescê-la. Gwen sabe que os riscos são grandes e até chega a pedir ajuda às poucas pessoas que imagina poder contar: mãe e irmã. Ambas a culpam pelo mesmo motivo e é nesse momento em que descobrimos que Jules é, na verdade, o fruto de uma relação entre Gwen e o marido de sua irmã. Passamos a entender porque Gwen vive tão isolada, porque o tempo inteiro ela parece ocupar espaço em um corpo que não é seu, como se a culpa a tivesse dominado por inteiro. Gwen cometeu o mesmo ato que o marido de sua irmã, mas o dedo foi apontado apenas sob sua face.

Esse momento merece atenção especial porque ao mesmo tempo em que mostra a culpabilização da sociedade sobre a mulher, mostra também a posição da irmã de Gwen – como esposa que perdoa o marido mas que não consegue perdoar a irmã, ainda que tente muito. Mas, afinal, quem pode culpá-la? Se somos criadas, mesmo que como irmãs, para competirmos entre nós mesmas o tempo inteiro? Criadas para sermos perfeitas enquanto homens permitem-se ser falhos?

É também uma cena incrível porque mostra o desinteresse do marido em saber se Jules era sua filha ou não, e que, por ser homem, lhe é dado o privilégio da dúvida. Vê-se como é imposto à Gwen a obrigação de sofrer as consequências de seus atos sozinha e calada – cabe somente a ela a responsabilidade do feto.

É por causa dessa culpa que Gwen deixa de se enxergar como ser humano. Sua existência deixa de ter valor e ela se torna apenas um corpo abjeto para si própria. Seu objetivo de vida passa a ser único e exclusivamente o de criar Jules, de oferecê-la uma vida plena e feliz, a vida que Gwen não merece mais. É um ritual de passagem, onde Gwen vê em Jules a mulher que ela talvez nunca tenha sido, mas que, com certeza, nunca será. Sendo assim, seu processo de “desumanização” começa muito antes da cirurgia.

Jules é um personagem excelente. Ela simboliza a geração de mulheres que lidam diariamente com a pressão de serem perfeitas, de fazerem parte do famoso “pacote completo”. Veja que Jules é criança e já pensa em procriar, sendo essa a principal função dela como mulher na sociedade em que vive. As outras funções – estudo, profissão, beleza, juventude – estão ali para provar que mulheres são tão capazes quanto os homens de ocupar um espaço. Porque os homens só precisam nascer homens, mas as mulheres devem cumprir todos esses papéis – e exercerem perfeição em cada um deles – para se darem ao luxo de concorrer à uma vaga nesta irônica sociedade patriarcal. A pressão é tão grande que Jules se pergunta o tempo inteiro qual o sentido de sua vida, um pensamento que provavelmente já foi passado para ela através de Gwen, pelos motivos que comentei acima.

Por fim, para manter seu emprego e poder oferecer o futuro que deseja à Jules, Gwen decide fazer a cirurgia – se é que em algum momento isso foi de fato uma decisão. Mas não acaba aí, porque um dos motivos da demissão de Gwen havia sido o dela não possuir uma beleza “universal”, o que poderia gerar problemas lucrativos para a empresa. Essa questão toca num ponto importante, que é o da “universalização” da beleza da mulher. E por “universalização” lê-se uma mulher branca, magra, de preferencia alta e de cabelos lisos. Dentro de um padrão bem eurocêntrico e norte-americanizado da ideia de beleza. Se estivéssemos mesmo falando sobre quantidade, sendo que a população da Ásia corresponde a 4,427 bilhão de pessoas, enquanto que a da América do Norte corresponde a 528,7 milhão, não faria mais sentido que a “mulher padrão” fosse asiática, como Gwen?

Para concluir de maneira brilhante, Jennifer Phang finaliza o filme colocando no lugar de Gwen uma mulher que cai de pára-quedas na história. Talvez não seja proposital, mas há grandes indícios de que essa mulher simbolize a pressão que existe em torno de todas nós para sermos mães perfeitas. Mães que, ao engravidarem, automaticamente já devem saber o que fazer. Que devem ter todas as respostas, sobretudo aquelas que os pais não têm. Que muitas vezes não estão preparadas, mas devem assumir este papel.

Advantageous é um filme classificado como ficção científica, mas nos coloca – de maneira brilhante, diga-se de passagem – diante de uma reflexão sobre as semelhanças entre o mundo de ficção em que Gwen vive e a realidade em que estamos inseridas.

O QUE ALIMENTA A ESCURIDÃO: THE BABADOOK

Alguém bate à porta. Baba-dook-dook-dook. Antes que se perceba, ele está na sua casa, no quarto do seu filho, dentro de você. Ele não te deixa trabalhar, dormir ou mesmo pensar.

No filme de Jennifer Kent, somos envolvidos por uma alegoria protagonizada por Amelia, cujo filho, Samuel, nascido no mesmo dia da morte do pai, possui uma estranha obsessão por monstros que começa a se tornar violenta. A estrutura narrativa do filme conta com um recurso bastante eficaz: mãe e filho são reflexo um do outro. Os dois tem pesadelos, dificuldades em seus respectivos ambientes (escola/trabalho) e brigas com familiares paralelamente. A diferença entre eles e o que despista o espectador é a oposição de seus temperamentos. Amelia é uma mulher doce e cansada, Samuel aparenta ser uma criança perturbada com ecos de Kevin Khatchadourian. O uso de paralelos em todos os outros aspectos nos previne sobre o que nos aguarda: mãe e filho trocarão de lugar em algum momento.

Noah Wiseman and Essie Davis in The Babadook

Noah Wiseman e Essie Davis em The Babadook

Mais que um recurso narrativo, as crescentes pressões sob Amelia fazem parte do cotidiano de muitas mães solteiras. O julgamento dos desconhecidos, isolamento do resto da família, a sobrecarga de problemas na escola e o uso de medicamentos para dormir não são nenhum segredo, e um tema surpreendentemente apropriado para um filme de terror.

A abordagem da maternidade em Babadook merece destaque particular. O filme traça uma linha muito tênue ao representar a monstruosidade de Amelia juntamente a sua humanidade. No começo vemos uma mãe dedicada exclusivamente ao filho, meiga, e paciente. Aos poucos, percebemos que ela possui desejos próprios que estão além de sua identidade como mãe, o que é inaceitável para sociedade em que estamos inseridas, por isso, poderíamos facilmente interpretar esses desejos como a fonte da sua perversidade posterior. Entretanto, não é isso que acontece. O Babadook não é a mãe imperfeita, defeituosa, e sim o medo de sê-la, as expectativas sociais, a depressão e o luto e é isso que a nossa protagonista deve enfrentar para se ver salva ou, ao menos, temporariamente liberta.