A divisão entre natureza e cultura é uma máxima existente no Ocidente Europeu-estadounidense. Essa separação coloca o ser humano, e sobretudo o homem branco, como modelo de superioridade no planeta, seja no que se chama de natureza seja no que se entende como cultura. Esse entendimento que visa monopolizar toda e qualquer natureza custa caro à nossa sobrevivência, e não é à toa que entre as separações existentes entre eras geológicas, a que estamos vivendo tem sido chamada pelos filósofos e antropólogos como Antropoceno, a Era dos Humanos, ou ainda, Capitoloceno, a era do Capitalismo e das catástrofes.
Pensar que fazemos parte de uma era nos remete ao fato de que ela pode acabar com a nossa própria extinção devido às ações de exploração natural exacerbada, uma das causas inclusive da grande quantidade de arboviroses e doenças outras presentes entre nós humanos. Donna Haraway elabora: “Trata-se de mais do que “mudanças climáticas”; trata-se também da enorme carga de produtos químicos tóxicos, de mineração, de esgotamento de lagos e rios, sob e acima do solo, de simplificação de ecossistemas, de grandes genocídios de pessoas e outros seres etc., em padrões sistemicamente ligados que podem gerar repetidos e devastadores colapsos do sistema. A recursividade pode ser terrível.” (HARAWAY, 2016)
Pensando nisso, proponho pensar além do nosso mundo, em um mundo inventado por Hayao Miyazaki que muito tem a acrescentar nessa reflexão. A animação Nausicaä do Vale do Vento, de 1984, foi dirigida por Hayao Miyazaki, sendo ele cofundador do famoso Studio Ghibli. A animação em questão, a primeira dirigida por Miyazaki, apresenta elementos que vemos em seus filmes posteriores: protagonismo de meninas como Chihiro em A Viagem de Chihiro, de 2001, amadurecimento e aprendizagem como em O serviço de entregas de Kiki, de 1989, convivência com outras espécies e embate entre culturas dominantes e tradicionais como em Princesa Mononoke, de 1997, entre outros exemplos.
Nausicaä é uma lição sobre a resiliência de um povo que tem sua pequena parcela de natureza intacta para sobreviver em meio ao caos. Esse pequeno reino sobrevivente me lembrou muito Ailton Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” não apenas quando ele nos apresenta as estratégias de povos indígenas brasileiros frente à colonialidade da sociedade abrangente, mas como estes grupos se relacionam com outros seres não-humanos. Isto é, na cosmologia Krenak, o rio Doce é um parente muito presente no cotidiano e que por essa razão não deveria ser explorado e devastado pela mineração. Krenak nos indaga sobre como explicar isto às grandes corporações humanistas, como a ONU (Organização das Nações Unidas), por exemplo. Enquanto para os Krenak esses seres não-humanos são parentes concretos, tais organizações os veem como elementos em que se basta preservar pequenos espécimes ou pedaços de biomas com um fim quase museológico. A luta do povo da Vila do Vento, portanto, me lembra essa passagem, pois não estavam apenas salvando um tipo de ambiente e sim garantindo um meio e forma de viver milenar baseado no vento e nas histórias sobre o vento.
O que proponho aqui é uma reflexão sobre relações presentes na animação de Miyazaki que representam boas figuras para pensar a antinomia natureza versus cultura. Aqui, no entanto, sem querer utilizar dessa separação ou embate entre duas esferas, uso naturezasculturas para falar sobre a relação que personagens constroem com pessoas, insetos e outros animais e fungos a partir do texto “Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras”, da professora e antropóloga pesquisadora do antropoceno Anna Tsing.
Domesticação fúngica: aqui e no Vale do Vento
Em “Margens indomáveis”, Tsing apresenta uma visão sobre os cogumelos e nossa relação com eles, de primeira vista pela grande quantidade de espécies comestíveis e terapêuticas são considerados “fungos úteis” para os humanos. Os seres humanos percorreram milhares de anos e continuam a procurar pelas paisagens por esses seres não-humanos. Dito que os fungos são incríveis companheiros interespécies, Tsing apresenta como eles atuam em simbiose com outros seres, o que é demonstrado pela renovação de ecossistemas e nutrientes que a existência de fungos companheiros possibilita (TSING, 2015, p. 185). Eles protegem o solo, levam água às plantas e recebem tudo em troca. Algumas espécies são mais perigosas para nós, outras tomam gosto por alimentos estranhos – como os fungos que entopem os tanques de gasolina do avião – mas é certeza que é inevitável a presença de fungos perto de nós.
Como nos apresenta Tsing, é o excepcionalismo humano – a ideia de que somos os únicos seres do mundo que não se relacionam mutuamente com outras espécies – que não nos deixa enxergá-los por perto, entender nossas relações de interdependência e, ainda mais, não perceber a força de colonização dos fungos nas atividades humanas. Por conta de fungos, nos obrigamos a criar alternativas a eles, seja a troca de navios de madeira por navios encouraçados, seja a imigração para outro país pois fungos não permitiam o plantio, entre muitas outras ocorrências. Além do mais, sendo os fungos renovadores do ecossistema, eles são os principais inimigos da monocultura, eles querem uma paisagem multiespécies para continuar colaborando com todos os seres do mundo. Dado todo esse poder de nos colonizar, os fungos são uma ameaça para a ideia de domesticação do natural, é impossível domesticar o indomável.
A partir disso, penso nas relações entre humanos e fungos no mundo de Nausicaä. Como já dito, o Vale do Vento trata-se de uma comunidade beneficiada pelas ações do vento e por seu cuidado ao pouco de território e natureza que existe em um ambiente pós-apocalíptico. O apocalipse em Nausicaä, decorrente de grandes guerras e armas potentes bem como pela devastação de recursos do planeta em um colapso industrial, ocorreu há mil anos de distância do período em que se passa a história.
Nesses mil anos, vestígios dessas guerras e devastações ainda são aparentes. O maior fragmento aparente é o “Mar da corrupção”, uma floresta infestada de insetos gigantes e fungos com esporos mortíferos aos humanos. Esse mar cresce à medida que infesta outros reinos e vilarejos e por isso, o vento do reino de Nausicaä exerce um papel de proteção que se torna objeto de interesse e disputa. Nessa floresta existem também insetos muito temidos chamados de Ohmu, animais gigantes que, quando enfurecidos, em bando possuem grande poder de destruição de comunidades humanas.
Dessa forma, o que no nosso mundo parece pequeno, como os insetos e os fungos, no mundo de Nausicaä esses seres se mostram como predadores e colonizadores da humanidade. Levando em conta o que Tsing salienta sobre a condição humana ser uma relação entre espécies das mais variadas, na animação a importância atribuída aos fungos evidencia duas possibilidades de vínculo com esses seres: de um lado se procura entender a floresta fúngica e seus perigos, de outro se pretende destruí-la. A primeira forma representada por Nausicaä e sua curiosidade e respeito pela floresta tóxica, e a segunda forma representada por outro personagem, a princesa Kushana, do reino de Turumekia. Reino que, por sua vez, é reconhecido pela truculência contra seres humanos e não-humanos.
A ideia de dominação naturalcultural presente em animais humanos, e que segue o filme todo com a violência da princesa Kushana, é própria de humanos que vivem em sociedade ocidental, muitas vezes caracterizada como sociedade viral, isto é, que querem e pensam que podem transformar, domesticar e replicar seus sentidos e costumes para quaisquer naturezasculturas deste mundo. Como destaca Anna Tsing, mal sabem que são eles mesmos colonizados por micorrizas que crescem em um mundo invertido como árvores no solo.
Nausicaä: a heroína de trajes azuis e os fungos
A partir dessa vontade de dominação de algo indominável pelo reino Turumekia, a animação nos orienta por um embate entre dois tipos de sociedade. O reino do Vale, comandado pela princesa Nausicaä, trata-se do que se chamaria de uma sociedade fria, em que o povo e o modo de vida estão baseados em uma historicidade cíclica, em que se preza a continuidade, parecida com um relógio com ponteiros. Já o reino de Turumekia é uma sociedade quente, baseada na entropia, na geração de mais desigualdades e nas grandes transformações, que mais se parece com uma máquina a vapor.
Essa ideia é interessante para pensar como as duas princesas comandam as humanidades em questão em relação ao Mar da Morte. Kushana gostaria de subjugá-lo, por mais que Anna Tsing nos diga que são mesmo os fungos que nos colonizam, afinal, enquanto estamos em casa, eles nos visitam mas também estão livres na imensidão da Terra. Nausicaä, por sua vez, gostaria de entendê-los para garantir um bom convívio, para entender como causam doenças e desvendar os mistérios daquela floresta.
Mesmo a fúria dos Ohmu só é contida quando alguém os compreende, Nausicaä é a única que consegue mandar os insetos ferozes de volta para a floresta porque entende o que é se sentir ameaçada. Os Ohmu sentem a ameaça humana quando chegam perto de suas florestas, Nausicaä sente medo do poder destruidor dos Ohmu em seu vilarejo e sente o adoecimento de seu pai por causa dos esporos venenosos da floresta. Não digo que o que houve entre Nausicaä e os não-humanos foi uma pedagogia baseada no medo ou na fúria, mas sim, uma compreensão de que as interações precisavam ser interpretadas de outra forma para que o relógio de ponteiros da sociedade de Nausicaä, dos insetos e dos fungos pudesse continuar a adiar o fim do mundo.
Os fungos colonizaram a vila do Vento a tal ponto que Nausicaä procurou compreendê-los. Sobre essa mudança por meio das interações com não humanos Anna Tsing nos lembra “que tais relações podem também transformar os humanos é algo frequentemente ignorado.” (p. 184). Os que são próximos de Nausicaä não entendem como ela pode ter compaixão por aqueles que causam tanta destruição, pois em uma lógica de colonização da natureza pelos humanos “tende-se a imaginar a domesticação como uma linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem”. (TSING, 2015, p. 184)
Encaminhando-se para o fim da animação, essa curiosidade destemida de Nausicaä para aprender a conviver com os fungos mortíferos é a salvação. Os fungos em Nausicaä são até então mortíferos para os humanos, pois precisavam de tempo para restaurar um ambiente devastado pelas guerras e impactos humanos. Sobre essa proteção, Tsing exemplifica em seu texto com a apresentação de uma série de micorrizas que acumulam metais pesados para proteger plantas, ou ainda fungos que captam radioatividade de acidentes nucleares e servem de alimento para animais que moram nesses ambientes. O que teria acontecido então caso os planos de devastação do reino Turumekia tivessem sido colocados em prática?
Em nosso planeta, a nossa falta de identificação com os fungos nos custa caro. Sobre isso, Anna Tsing nos diz que está difícil a sobrevivência para o reino fungi que habita as margens de nossas casas e cidades, que tem sido difícil para se posicionarem, tomarem partido junto de nós. Em Nausicaä, Miyazaki apresenta um mundo onde os fungos se posicionam junto de humanos e preparam humildemente uma floresta livre de venenos, um lugar onde se é possível respirar depois de tanto tempo. Mas só há posicionamento desses companheiros quando uma humana consegue desvendar os mistérios desse companheirismo, que vai além dos ambientes domésticos e que mostra a vastidão do mundo.
Por isso, pensemos sobre os cogumelos, sobre os fungos, caminhemos para encontrá-los às nossas margens, o que será que nos dirão?
Referências
“Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras” de Anna Tsing
“Ideias para adiar o fim do mundo” de Aílton Krenak
“Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes” de Donna Haraway
Entrevista com Claude Lévi-Strauss presente no livro “Arte, linguagem e etnologia”
O universo criado pelo diretor pernambucano Gabriel Mascaro em seu último longa-metragem, intitulado Divino Amor, não está tão distante do nosso. O filme se passa no futuro recente: o ano é 2027 e não há mais Carnaval. Ao invés disso, comemora-se a festa do Amor Supremo, uma espécie de rave evangélica. Apesar da mudança de propósito e da forma da nova maior festa brasileira, podemos encontrar pontos em comum entre o Carnaval e a festa do Amor Supremo: a euforia dos corpos, a alegria encontrada na música, a busca por transcendência.
Nesse contexto, somos apresentados a Joana, interpretada por Dira Paes, uma funcionária pública que trabalha no registro de divórcios. Joana procura aconselhar os casais para que eles não se divorciem e crê que, com esse serviço prestado a Deus, Ele lhe concederá um milagre. O filme, assim, abre caminho para diferentes subjetividades, partindo de uma posição de não-julgamento e com enormes possibilidades de interpretação.
Um filme de personagem? Mascaro disse sobre Dira Paes: “É uma atriz muito mágica, cinéfila, intelectual, pensadora, mas ao mesmo tempo muito intensa. Ela não julga a personagem. Este é um filme sobre fé, e eu precisava muito de uma pessoa como ela, sem preconceitos”. Paes destrói a dicotomia da puta e da santa tão presente no cânone ocidental: é uma mulher de fé, crente, sexualmente liberada e participante de orgias. Ela contém multidões.
Um filme distópico ou utópico? Depende de onde se coloca o espectador, já que o filme evita o olhar de julgamento. As coisas não parecem tão ruins: há um clima melancólico, mas a sociedade de Divino Amor é aparentemente pacífica e estável. Enquanto espectador que acredita que aquela seria uma sociedade distópica, é possível entender como outras pessoas poderiam ver uma utopia ali e vice versa.
Um filme neon? Sim, mas não apenas. Há o aspecto performático das reuniões do amor divino que Joana e seu marido frequentam, das raves sagradas, do drive-thru da oração. Fora daquilo, a sociedade mostrada é burocrática, as casas todas iguais, os prédios de concreto lembram Brasília, há uma ideia ultrapassada de futuro. Já não é um futuro que traz muita esperança.
Um filme futurista? “O Estado ainda se diz laico”, diz o narrador. É algo que já faz sentido hoje em dia. Ou seja, é um futuro “recente”. Um dos sinais do futuro: uma máquina semelhante a um detector de metais acusa o estado civil das pessoas e é capaz de detectar gravidez nas mulheres. E mais: se o bebê tem registro paterno ou não. É um controle biopolítico.
Um filme de suingue? “Quem ama, não trai. Quem ama, divide”. Para estimular a concepção de bebês e começar a “família tradicional brasileira”, a inseminação artificial não é considerada como uma possibilidade, é necessário que a concepção aconteça de forma “natural”, nem que isso seja feito a partir de uma troca de casais. O orgia é justificada pela religião, o que nos leva a crer que seres humanos sempre vão encontrar uma forma de fazer um suingue.
Um filme de amor? Não estamos mais na era da razão. Hoje, nós nos apoiamos até mesmo politicamente através dos afetos, e isso está presente nas reuniões do Divino Amor. E de que amor estamos falando? Na sociedade de Divino Amor, a lógica do amor romântico dá lugar a outro tipo de regulamentação das trocas afetivas. O amor divino, a serviço de algo maior, é que media as relações e justifica os atos. A distopia aqui é a perda da subjetividade, dos direitos individuais. E nós temos sementes para esse tipo de futuro na sociedade brasileira. “Tudo que é feito em amor a deus não pode ser pecado”.
Um filme de sexo? Há espaço para o erotismo no amor divino. As cenas de sexo, no entanto, provocam estranhamento. O aspecto da “animalidade dos corpos”, do distanciamento da câmera, provoca sensualidade ou não? Há uma transcendência divina no ato sexual dentro da performance do suingue sagrado. Joana, em especial, realmente acredita que é um ato de fé. Ela se pergunta: “será que meu pecado é amar demais?”
Um filme sem respostas fáceis? Joana transcende inclusive aquela sociedade. Com a gravidez de pai desconhecido, ela se torna marginalizada. Joana se torna uma espécie de santa, que sacrifica a própria família em nome de um amor transcendental e, paradoxalmente, incompreensível para todos. O mundo aguardava a volta do messias e é Joana que traz a provável semente da mudança.
Uma filme crítico à religião evangélica? Mais que uma crítica, um convite a imaginar possibilidades. E se a religião virar parte do Estado, o que acontece com ela? Em Divino Amor, a fé burocratizada pelo peso das instituições se torna artificial, melancólica; é necessário buscar a transcendência pelas celebrações, pela rave evangélica, pela orgia religiosa. A religião se apropria de ferramentas do “mundo”.
Um filme de gênero? Mascaro disse em entrevista: “[O longa-metragem anterior] Boi Neon era uma alegoria muito material em função do espetáculo do evento. Agora é diferente. Eu tinha o desafio de pensar uma religião que negou a tradição da arte sacra, é uma religião antimatéria”. Na sua construção de um mundo evangélico estético do futuro próximo, ele se aproxima por vezes da ficção científica, embora o filme evada classificações simples.
Um filme ousado? É um filme que, como outras obras brasileiras recentes, se arrisca a pensar possibilidades para a conjuntura política e social que está se desenhando no presente, um filme que precisa ser revisitado no futuro, à luz do Brasil que nascerá deste momento muito específico que estamos vivendo.
Letícia e Glênis, duas das editoras do Verberenas, assistiram ao filme de Mascaro e se reuniram para conversar em um episódio do podcast méxi-ap (disponível aqui). O presente texto é um desdobramento desse diálogo, publicado originalmente em 2 de julho de 2019.