Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

ACERCA DA VOZ E DA IMAGEM: SURNAME VIET GIVEN NAME NAM

“Quando chegam os antropólogos, os Deuses saem.”

—  Provérbio haitiano.

“Eu não quero falar sobre. Eu quero falar perto de.”

Trinh T. Minh-ha, em Reassemblage.

Em  um livro chamado “Men Explain Things to Me”, Rebecca Solnit questiona o papel da mulher enquanto pesquisadora e estudante, e de que forma as opressões sistêmicas patriarcais minam (quando não sumariamente fazem sumir) todo o nosso comportamento perante a sociedade. Disse ela:  

A crítica de Solnit é voltada a uma interdição da experiência do Contar e do Fazer que nos constituem enquanto pessoa, e, sobretudo, quanto ao contar histórias apesar de. Nesse sentido, há Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita que imigrou para os Estados Unidos em 1970 e fez do seu fazer enquanto artista algo multiforme: cineasta, artista visual, escritora, teórica, crítica.


Em seu primeiro trabalho, Reassemblage (1982), Minh-ha abre um filme sobre o Senegal, um país para ela até então desconhecido, dizendo que não gostaria de falar do terceiro mundo enquanto um experimento etnográfico exótico, mas sim, falar ao lado dele. Como parte dele enquanto imigrante, mulher asiática, fugida da guerra, perguntando ao espectador o que é que tem de ser dito, se o discurso documental hegemônico prioriza o discurso univocal? O que se espera da imagem cinematográfica e da representação de sociedades não ocidentais? Se a ideia de pertencimento, nação, território, lar nos parece ser uma garantia elementar dentro da civilização ocidental, como articular um discurso imagético e vocal sobre civilizações orientais em deslocamento constante? Como contar a história de quem sempre nos conta histórias? Quais são os limites do real, documental, ficção, fato, analogia e assimetria? É possível retratar um único Outro como a voz de um povo por inteiro? O que é o sólido e o que se desmancha no ar? 

Para essas e tantas outras questões, Trinh T. Minh-ha, em 1989, faz Surname Viet Given Name Nam (traduzido em português para Sobrenome Viet Nome Nam), um documentário híbrido: imagens de arquivo, citações, canções, split screens, depoimentos de mulheres médicas, donas de casa misturadas com contos de fundação, super-exposições, preto e branco, discursos entrecortados e sobrepostos, interrupções. Botar-se ao lado botando na mesa milhares de imagens com milhares de vozes. O documental como lugar do real vivido.      

I) Imagem: 

“Jump cuts, pans irregulares, inacabadas, insignificantes, rostos partidos, corpos, ações, acontecimentos, ritmos, imagens ritmadas, fora do tom, discordantes, cores irregulares, vibrantes, saturadas ou muito brilhantes, enquadrando e reenquadrando.”

— Trinh T. Minh-ha em When The Moon Waxes Red


Ao princípio, Trinh T. Minh-ha articula uma forma documental que nos parece a mais usual quando tratamos do gênero e sua liminaridade entre documentário e etnografia: uma pesquisa de campo em que cinco mulheres são entrevistadas sobre a condição da mulher vietnamita em uma sociedade em transição. Mulheres em constante fuga e abdicação, contando pequenos trechos do cotidiano, a composição da família patriarcal, as opressões, prisões, o entrelugar entre o comunismo e o capitalismo pós-guerra do Vietnã, um estado de sítio e desconfiança civilizacional, a resiliência como forma de esperar por uma sociedade que está em constante vir a ser, mas não é. Um filme cuja mise-en-scène aparenta ser comum ao documentário — cabeças falantes se dirigindo a um entrevistador extraquadro — mas isso somado aos diversos discursos em que a imagem se mistura e se entrecorta, como um caleidoscópio da cultura vietnamita, uma miríade de vozes e imagens, danças e sons se mesclando às cartelas de texto. É engendrada uma rede de discursos que se tornam um só; o de mulheres sem alma, no life, no self. Homens que não voltam da guerra. Mulheres que se curvam. Dúzias de médicas cruzando pontes a pé. Nadando mares. Traçando rotas de fuga com os filhos nos braços.


Em aparência, a tendência ocidentalizadora é tomar o documental como uma única voz dotada de um único discurso. E, ainda mais, se tratando de uma matéria filmada em uma ideia de terceiro mundo, tudo se torna objeto de exotismo. Mas isso não é o caso aqui. Não se trata de um documentário. Minh-ha deixa claro: “Alguns chamam de Documentário. Eu chamo de Não Arte, Não Experimento, Não Ficção, Não Documentário. Dizer algo, ou nada e deixar que a realidade adentre. Se capturar. Isso, eu sinto, não há como se render. Os contrários se encontram e se cruzam e eu trabalho no limiar de todas essas categorias.” A multiplicidade das imagens é esse limiar, o limiar entre fato e ficção, palavra e silêncio, política e representação; em certo momento, a narradora nos diz: “O cinema que nos é dado como hegemônico é formado de efeitos especiais. Tal como a guerra.” Presenciamos a construção de uma sociedade em construção por imagens em construção que se retroalimentam. O que haveria de errado nisso? 

Logo, não existe um caráter documental no cinema; tudo que há é o real e dele não existe mentira — tudo é verdade ou não é cinema, tampouco vida. O que existe é uma linha entre a realidade e a estetização de uma realidade. Estetização essa, comum no cinema  hollywoodiano; a exposição da matéria filmada enquanto material de vivissecção pura e simples. O prazer puramente criado e articulado por uma sociedade visual por natureza — a sociedade que cria e recria imagens, cria e recria mulheres, cria e recria a guerra incessantemente para satisfazer um tipo de prazer desprazeroso; o prazer do desastre, da guerra, da estetização da desgraça. A exploração da matéria filmada para lançar o olhar com condescendência, acreditar que o olhar dominante é o único possível em termos de discurso.  

Mas não estamos falando aqui de estetização, e tampouco de hegemonias possíveis. E Minh-ha, após noventa minutos dos 108 de filme, abre o seu jogo: Se isso é uma não arte e um não experimento e o cinema é feito de efeitos especiais, que Surname Viet Given Name Nam também o seja. Ela nos diz que há uma verdade nos depoimentos das cinco mulheres, mas nos é retida, selecionada e deslocada. São usados critérios como idade, profissão, região. Os discursos são cortados e recortados. Entre a linguagem interior e a verdade exterior, temos a espontaneidade das mulheres contando tantas histórias com naturalidade. Histórias essas que não são as delas. Elas são não atrizes, mulheres vietnamitas que imigraram para os Estados Unidos e, decidiram por bem, participar do filme como uma forma de desmistificar a identidade asiática e vietnamita como una – pois essa é uma tendência ocidentalista de massificação da cultura asiática como um evento feérico e  exótico — denunciar as opressões das que ficaram em seu país de origem e interditar o discurso de que o sacrifício e a anulação enquanto mulher e ser ativo na sociedade são a única forma de sobrevivência. E esse é dos trunfos, o maior trunfo de Surname Viet Given Name Nam: dar a possibilidade de ouvir os dois lados da matéria filmada. Os lados de quem atravessou oceanos para contar a história de quem ficou. 

II) Discurso:

“Nós somos exibidos como gabinetes de curiosidades na Segunda, exaltados como cultura na Terça, denunciados como imorais e insalubres na Quarta, reapresentados como experimentos científicos na Quinta, celebrados por algum motivo estético obscuro na Sexta, esquecidos no Sábado e revistos como pitorescos no Domingo. Nós somos mal interpretados pela crítica especializada e estamos sujeitos ao imperialismo espiritual, nossos esforços mais sagrados  são tomados como objetos de escambo, nossas histórias traçadas, nossa psique analisada, e quando todos se aproveitaram de nós de todas as maneiras, somos expulsos de nossas terras natais, de nossas casas modestas e colocados em arranha-céus cromados.”   

— Maya Deren em The Divine Horsemen.  

O ponto central de Surname é trazer para o primeiro plano questões que vão além da superfície do material filmado; a ideia de uma representação do irrepresentável – no sentido daquilo que não está projetado em grandes salas de cinema como protagonista. Ao  tratar da mulher vietnamita encoberta por imagens e referenciais que as sufocam, nas linhas que se entrecruzam entre o tradicional e o ocidental colonizador, os padrões estabelecidos de comportamento esperados para as mulheres seguem os mesmos, tanto para as que cruzaram o oceano quanto para as que ficaram. Em um trecho do filme uma das personagens nos diz “tudo o que temos é a esperança de uma sociedade melhor, mas o sol nasce todos os dias e permanecemos no mesmo lugar”. Entre o capitalismo e o comunismo, abre-se uma fenda que engole as mulheres igualmente: entre as mães solo, donas de casa, médicas, elas falam em espíritos sem vida e sem individuação.

 
Porém, lado a lado com mulheres que se aniquilam, a estrutura fílmica se vale da citação direta de The Tale of Kiều, um épico fundador escrito por Nguyen Du no século XIX, considerado como um conto norteador da moral e da construção histórica da sociedade vietnamita. Kiều, uma jovem, se vê refém das circunstâncias familiares e, para salvar a família, tem de se sacrificar enquanto mulher pura e casta e passar por privações que a deixam à margem da sociedade. O arco de Kiều é marcado por uma espécie de redenção à revelia, pois salva a família e não salva a si mesma, indo parar numa espécie de claustro. A ideia de uma mulher que se desprende dos papéis socialmente impostos não como questionamento sobre feminilidade ou de questionamento do papel patriarcal, mas sim como forma de preservação familiar, proteção do marido, obediência aos filhos, aceitar tudo com resiliência e silêncio dentro das casas e longe dos locais de trabalho é um dos pilares da sociedade vietnamita, que perdura até hoje. As mulheres, mesmo as que se revelam não atrizes e estão em outro país, dizem: “Disse aos meus amigos que faria um filme para contar a história da mulher vietnamita e, para atrizes e pessoas que mexem com esse tipo de coisa, há termos não tão educados.” Kiều, tanto como as atrizes do filme, passou por tormentos e tribulações, apesar de. E essa é a experiência unificadora, um conto cautelar que ressoa na vida de todas, de uma maneira ou de outra. Todas vencem, tornam-se diferentes à sua maneira, trabalham, provém sustento, são profissionais, saem dos lares e do papel doméstico, mas ainda assim, as raízes ficam expostas por gerações e gerações, mesmo após cruzar um oceano.  

Nesse caso, o local do não documental e da não etnografia proposta por Minh-ha enquanto um estudo do povo, é, antes de mais nada, o falar ao lado, criticar abertamente a ideia de que o documental (ou o estudo do real) ofereça uma única possibilidade de discurso e de representação. Não existe um único real; tanto o real quanto a realidade existentes no mundo que nos cerca é subjetivo e plurivocal.

No filme, ao utilizar imagens de arquivo, poemas, analogias, canções e depoimentos das mulheres vietnamitas como forma de representar as opressões sistêmicas que abarcam classe, gênero, cor, política e colonização, expande-se um horizonte discursivo, um horizonte tão complexo que uma simples expedição de caráter científico analítico não daria conta. Afinal, o relato científico lida com um ambiente controlável e lida com um único Outro. As tradições orais, a cultura, a dissolução das imagens, o entrecortar das vozes, o desfazer e refazer da linguagem, a tradução, a leitura e a constituição da identidade são Outros, muitos Outros. Se não há documentário per se — estruturado e teorizado por tantos outros, revivido e debatido em batalhas do Antigo contra o Moderno — há uma ressurreição do real pela ficcionalização e pela narração; o reforço de que há uma sociedade cindida por mazelas políticas não exime que as histórias não sejam contadas, que o real não seja retratado tal qual por diferentes vozes. 

Contar histórias e se fazer preciso é, talvez, uma das metas do cinema e da literatura de modo geral. Independente de cinema narrativo ou experimental, há sempre algo a se contar. E, grosso modo, a transmissão de um conteúdo para outro meio ou linguagem é o que chamamos de tradução. Nem todo conteúdo tradutório é simples; mas, como disse Haroldo de Campos, quanto mais inçado de dificuldades for o texto, mais recriável e mais sedutor ele se torna enquanto possibilidade de recriação. Surname Viet Given Name Nam nos mostra que a tradução cultural de imagens, discursos, vozes, não toma o objeto filmado de assalto e o destitui da verdade, mas sim, a reforça o suficiente para dizer que enquanto houver mulheres no Vietnã (ou fora dele) que nos contem a história das que estiveram e estão lá, a história será sempre reescrita, ressignificada, retomada pelas imagens e pelas vozes.   

“O seu nome era privilégio, mas o dela era possibilidade. O seu era a mesma história, mas o dela era um novo conto sobre a possibilidade de mudança de uma história que permanece inacabada, que inclui todos nós, que importa tanto, mas tanto, que veremos, faremos e contaremos nas semanas, meses, anos, décadas por vir.”   

Rebecca Solnit, em Men Explain Things to Me. 

TEKO HAXY – SER IMPERFEITA

Nosso filme Teko Haxy – ser imperfeita é uma experiência do encontro. Diante da câmera, criamos personagens, mas também colocamos nossos assuntos mais íntimos. Assumimos uma estética íntima – nosso diário relacional – um experimento visual feito por nós, duas mulheres de diferentes mundos que criaram um mundo dentro dessas diferenças. Nossa auto-mise-en-scène. Um deslocamento. Em deslocamento, deslocamos a câmera e o celular de uma mão para outra, deslocamos ser mulher de uma racialidade cultural para a outra. Somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades para a realização de nosso filme – algo que se parece fluido em se fazer. Em nosso processo, nos compreendemos um pouco mais, respeitamos a outra nos pontos divergentes, criamos um novo estado dentro do humano. Assim, o que de mais verdadeiro podemos oferecer é a justeza das nossas imagens, o pessoal que é político. Nos filmamos marcando nosso espaço como mulheres, como um mergulho espiritual no ser mulher, ser imperfeita.

Filmamos por quase três anos, desde o nosso encontro em 2015 e tivemos que nos adequar à linguagem das vídeo-cartas. Um esforço mútuo pois de um lado era uma pessoa com pensamento juruá (branco) e do outro, uma pessoa com os pensamentos Mbyá e a visão diferente das coisas que tínhamos. Em suspensão, tudo era novo e não sabíamos o que poderia acontecer. Um cinema-processo, inacabado, imprevisível, com informes de “em construção” em frente à obra – assim, construído narrativamente pela montagem de Tatiana Soares de Almeida (Tita). A fissura se deu, apenas quando compreendemos a natureza dos nossos corpos – colocados em relação e como aliados. Postas em movimento, avançamos mais um degrau em nosso crescimento e fomos colocando nossa experiência pessoal nesse trabalho, compreendendo que possuímos dores distintas de um corpo mulher que “naturalmente” sangra e dores distintas por trajetórias completamente díspares no recorte de raça, cultura e espaço social.

É nesse lugar entre eu e a outra (e quem nessa relação é a outra?), entre observar o real e inventar o real, entre fazer e esperar acontecer e entre as incertezas, é aqui que nossa relação se estreita e gera – como duas mulheres que podem, se quiserem, gerar a vida – possibilidades estéticas e políticas por meio das conversas entre imagens. É nesse lugar que localizamos nosso filme, como uma dobra no tempo, de passado, presente e futuro. Um tempo que ambas aprendemos a ter:

 

 

Patrícia:
Sempre me pergunto quais são as ações e quais as partes da minha cultura: até que ponto termina minha cultura e começa a outra? Penso muito nisso quando faço um trabalho e fico conversando com alguém de outra cultura. O que mais me possibilitou a entender isso foram as práticas e ações diferentes que seguimos em determinado espaço, crenças, valores e modos de agir em determinado assunto ou momento. Ou seja, isso me deu um sentido das coisas. Eu compreendi que isso é a nossa identidade própria (de cada uma) e apesar de sermos tão iguais – no meu modo de pensar, somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito, dois seres imperfeitos – e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Somos iguais e diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades. Sophia veio para minha aldeia e isso foi fruto de um esforço coletivo, pelo aprimoramento de valores culturais e materiais. Digo isso porque minha família acolheu Sophia, sendo que ela era de fora e nós tivemos um esforço de tentar compreender Sophia e Sophia nos compreender. E isso foi fundamental para entender os nossos valores morais e éticos que guiaram nossos comportamentos, nossa relação e nossa obra. Entender como esses valores internalizaram em nós e em como isso conduziu nossa relação uma com a outra. Primeiramente, nós aceitamos o desafio de mudar, de nos compreender.

Então, acredito que sobre todas as coisas houve diferenças culturais. E acho que não poderia haver uma evolução espiritual para nós duas sem a nossa abertura de compreensão para nossos dois mundos. Dessa forma, foi possível alcançar nosso objetivo, pelo menos pra mim. Houve uma espécie de consciência de nós duas, como humanas. Foi muito rápida nossa elevação para ver o amor, para ver nosso interior e a realidade de cada uma. E acho que quando a gente percebeu essa verdade fomos acolhidas uma pela outra. Nosso amor começou a se manifestar em cada uma das coisas e no ambiente em si. E assim, todo o processo pra mim foi uma busca espiritual de vida – cada vez mais maravilhosa – que foi colocada em nós duas.

 

 

Sophia:
Combinávamos alguns vídeos, mas outros surgiam de maneira espontânea. Embora tivéssemos nossos temas guiando as filmagens, nossa experiência e a espontaneidade das coisas foram, na verdade, nosso roteiro. A cada início de filmagem, a performance diante da câmera era fabulada, como uma câmera diário em escrita compartilhada feita da nossa relação.

O extracampo (tudo que envolve a cosmologia Mbyá) está sempre presente nas ações de Patrícia como ser. Seu “modo de ser” (o nhadereko guarani) está presente cotidianamente em qualquer atividade que ela faça. Nas coisas simples como escolher qual parte da galinha cortar, quando vai tomar banho de rio, quando me ensina sobre os cuidados sexuais e a produção do corpo entre meninas e meninos… Aprendi de dentro pra fora (da casa para o mundo) a cultura Mbyá. E assim, o movimento de dentro pra fora e de fora pra dentro manteve-se constante entre mim e Patrícia. Deslocamento que ela faz constantemente entre sua etnia e os juruá kuery (brancos).

Trazemos à tona uma questão pouquíssimo discutida na antropologia, nas artes visuais e no audiovisual que são “as questões das mulheres”: a casa, a maternidade, a mulher e suas relações afetivas, a sexualidade, o corpo, as dores, as somatizações disso tudo. Principalmente, como todos esses temas comuns, do dia-a-dia , estão diretamente imbricados em nossa vida política, social e cultural. Confrontando assim, a desvalorização universal do domínio doméstico. O mais bonito disso tudo é como as camadas das nossas personalidades e nossas formas de ver o mundo a partir das nossas experiências cotidianas vão se tensionando e deixando nossas contradições expostas. Patrícia quando diz para os brancos: “acho que vocês queriam que a gente não existisse” no limite, ela também destina a mim. Mas, ainda sim, somos nós, Patrícia e Sophia, vulgo “mulher branca” e “mulher indígena” criando uma obra artística juntas e isso sim, pode ser uma arma pra rasgar o peito de todo olhar com viés etnocêntrico, etnocida, preconceituoso e machista. Nos filmamos marcando nosso tempo como mulheres. É como um laboratório do nosso feminino. Um mergulho em ser imperfeita.

Em nossos acordos de filmagens e em nosso calendário, tivemos algumas incompatibilidades, um movimento duplo de se adequar uma ao tempo da outra. Um jogo de espelhos complexo do reconhecimento da construção do sujeito em todo lugar, em que se aprende a ver o mundo através do que a autora Bahri (2013, p. 683) chama de “lógica da adjacência”: “leríamos, então, as mulheres no mundo não como iguais, mas como vizinhas, como ‘moradoras próximas’ cuja adjacência pode tornar-se mais significativa […] leríamos o mundo não como único (no sentido de já estar unido), mas como um conjunto”.

Por fim, através dos nossos conflitos subjetivos e coletivos e das nossas formas de ver o mundo, estávamos sob o risco, pois lançar-se na incerteza pode não dar certo, mas até o que “não dá certo” nos é importante e faz parte do nosso processo. Como salienta MacDougall (1975, p. 128, tradução nossa): “conjecturar que um filme não precisa ser uma performance estética ou científica: ele pode se tornar a arena de uma investigação”. Na presença desse “campo” investigativo, a abordagem das nossas imagens por meio do desenho e da câmera explora justamente a aproximação e a tensão desses métodos.


Referências:
BAHRI, Deepika. Feminismo e/no pós-colonialismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 659-688, maio-ago. 2013.

OVERING, Joanna. Men Control Women?: The Catch-22 in Gender Analysis.
International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, issue 2, p. 135-56, 1986.

MacDOUGALL, David. Beyond observational cinema. In: HOCKINGS, Paul (Ed.).
Principles of visual anthropology. New York, NY: Mouton de Gruyter, 1975. p. 115-132.

TRINH, Minh-ha T. Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Tradução de Augusto de Castro. Forumdoc.BH 2012 [Catálogo], Belo Horizonte, 2012. p. 201-206.

 

 

TEKO HAXY – ser imperfeita (2018)
Documentário experimental, colorido, 39min

Sinopse: Um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. O documentário experimental é a relação de duas artistas, uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não-indígena. Diante da consciência da imperfeição do ser, entram em conflitos e se criam material e espiritualmente. Nesse processo, se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens.


Exibições “TEKO HAXY – ser imperfeita”

2018

II FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras (BR)
Môtif Film Festival (EUA)
6º Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (Cocaal) e do Colóquio de Cinema de Autoria Feminina (cocaf) (BR)
IV Pirenópolis Doc – Festival de Documentário Brasileiro (BR)
51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (BR)

2019

Programação Abril Indígena – Sesc SP (BR)
14ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto (BR)


MINIBIOGRAFIA PATRÍCIA FERREIRA PARÁ YXAPY:

Patrícia Ferreira (Pará Yxapy) é realizadora audiovisual indígena da etnia Mbyá-Guarani. Mora na Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões/RS, onde é professora desde 2006. Em 2007, co-fundou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema e hoje é a cineasta mulher mais atuante do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). Atualmente está finalizando seu primeiro longa autoral e circula com o filme TEKO HAXY – ser imperfeita, codirigido com Sophia Pinheiro. Dentre as premiações de seus trabalhos destacam-se os prêmios: Menção Honrosa – XIV FICA (2012) pelo filme Desterro Guarani, o Prêmio Cora Coralina de melhor longa no XIII FICA (2011), o Prêmio Melhor longa/média do III CachoeiraDoc e Menção Honrosa mostra Competitiva Nacional do forumdoc.bh.2011 pelo filme As Bicicletas de Nhanderu; Em 2015 o Prêmio Melhor curta Júri Oficial e menção honrosa Júri Jovem do VI CachoeiraDoc pelo filme No caminho com Mário. Em 2014 e 2015, participou de residências artísticas com os cineastas indígenas Inuit, no Canadá. Já realizou os filmes: As Bicicletas de Nhanderu, 2011/45min; Desterro Guarani, 2011/38min; TAVA, a casa de pedra, 2012/78min e No caminho com Mario, 2014/20min.

MINIBIOGRAFIA SOPHIA PINHEIRO:

É pensadora visual, interessada nas poéticas e políticas visuais, etnografia das ideias, do corpo e marcadores da diferença, principalmente em contextos étnicos, de gênero e sexualidade. Atua principalmente nas seguintes áreas: processos de criação, antropologia, artes visuais, intervenções artísticas urbanas, arte & tecnologia, fotografia, videoarte e cinema. Doutoranda em Cinema e Audiovisual do PPGCine-UFF, mestre em Antropologia Social pela UFG (2017) e graduada em Artes Visuais pela mesma universidade (2013). Participa do grupo de pesquisa Documentário e Fronteiras. Ganhou dois prêmios como artista visual e cinematográfica no Fundo de Arte e Cultura de Goiás (2015), participou do VIII Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico (2016) e ganhou o 23º Prêmio Sesi Arte e Criatividade em 2º lugar na sessão Obras Sobre Papel (2017). Seus trabalhos artísticos já foram expostos no nordeste, sudeste e centro-oeste brasileiros além de países como Argentina, Paraguai, Espanha e Alemanha. Recentemente realizou sua primeira exposição individual “MÁTRIA” em Barcelona (ES). Atualmente circula com seu primeiro média-metragem “TEKO HAXY – ser imperfeita” codirigido com a cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy, é professora da Academia Internacional de Cinema (RJ) e artista bolsista do programa Formação e Deformação – Emergência e Resistência 2019 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ).

FABIANA: A ESTRADA TAMBÉM É NOSSA

Dirigido por Brunna Laboissière, Fabiana (2018) é um filme com uma trajetória surpreendente e merecida. A obra nasceu viajando e não por acaso esse é o seu destino final. Destaca-se o esmero paciente na captura das imagens e sons, assistimos a paisagens que não são formadas apenas por características geográficas particulares, mas também por características sociais únicas, ao mesmo tempo que híbridas e transversais, um paradoxo bem brasileiro.

A escolha estética opta por lugares e corpos possuírem a mesma importância narrativa, um afeta e modifica o outro, portanto muito da identidade de Fabiana é formada por sua vivência na estrada, ao passo que muito do que a estrada é hoje se dá pela ocupação dela sendo caminhoneira mulher transexual e lésbica. Toda essa curiosidade pela vida do outro é desenvolvida sob o tempo e ambiência da viagem, em uma poética existencialista, da observação da janela que coloca a personagem para pensar e os espectadores também, enquanto o destino final vai tendo sua importância reduzida.

Foi através do grupo “Mulheres do Audiovisual – Brasil” no Facebook, que soube do filme, na época, Brunna, a diretora, fez um post anunciando sua estréia no Olhar de Cinema e divulgando o cartaz de Fabiana. Ela era de Goiânia e eu de Brasília, isso me trouxe empatia na hora, fiquei muito ansiosa para assistir esse raro road movie protagonizado e dirigido por mulheres. É animador saber que um filme de direção e personagem principal goiano estreou em um dos maiores festivais brasileiros e está percorrendo outros diversos festivais internacionais, além, é óbvio, do feito heróico da Brunna rodar sozinha seu primeiro longa-metragem operando a câmera (uma Cânon C300), o som, fazendo a direção e a produção em um mês de carona vivendo e gravando dentro um caminhão.

Apenas quando chegou o Festival de Brasília de 2018 que consegui assistir ao filme, na mostra paralela Festival dos Festivais, foi exibido à tarde seguido de um debate com a diretora, Brunna Laboissière, e a montadora, Bruna Carvalho. Nesse momento refleti o quanto são maiores as chances de conseguirmos filmar com respeito e espontaneidade as pessoas que não conhecemos, se utilizarmos o Cinema de Observação como base, ou seja, deixar a câmera ligada acompanhando a rotina das pessoas sem uma interferência maior que isso, desviando da entrevista formal.

 

 

O debate também ressaltou o papel da montagem nesse tipo de filme e da obrigatória afinidade com a montadora, pois são milhares de horas de material bruto para serem vistos e discutidos. Diretora e montadora contaram da dificuldade que foi juntar todas as cenas e criar uma linha narrativa que fizesse sentido e as ferramentas que utilizaram para isso, desde a degravação de todas as falas até a organização da ordem das cenas através de fotografias impressas e a criação de locuções em voice off, como por exemplo, a cena um pouco desconexa do aeroporto em que Fabiana admira os aviões decolando e um funcionário do aeroporto fala nas caixas de som do lugar.

É um filme de fluxo, às vezes lento, mas muito imersivo que conta uma história de vida dura com alegria e altivez. Os beats da narrativa são criados através dos detalhes, de assuntos profundos ditos em frases curtas, de comportamentos quase subentendidos, o rádio também é crucial e quando toca “Decide aí” de Matheus e Kuan a gente se sente apaixonada junto. Já o movimento e o ritmo vêm por meio dos travellings da janela contrapostos aos planos estáticos com diálogos externos ao mundo isolado do caminhão.

É fato que a sinopse incomum gera curiosidade dentro do nosso CIS-tema. Não estamos acostumadas com protagonistas trans, ainda mais Fabiana, uma caminhoneira dona de si, que viaja o Brasil todo e namora outra mulher trans, a Priscila, que aparece mais no meio da história e acrescenta outra camada ao filme.

As telas de cinema ainda priorizam narrativas patriarcais e heteronormativas, recheadas de uma ética e cultura visual eurocêntricas e coloniais, e o está fora disso é criticado e tido como uma ameaça a estrutura dominante. Há sempre uma estratégia de ‘’higienização” dos sujeitos políticos para que eles possam ser aceitos – lembrando que muitas vezes os personagens transgêneros do cinema são representados por atores cisgêneros – e quando essas pessoas estão na frente das câmeras, espera-se que elas se foquem em suas transidentidades e as expliquem detalhadamente. Porém, no filme, Fabiana está mais interessada em registrar e curtir sua última viagem antes da aposentadoria, se afirmando como mulher independente e trabalhadora que agora terá seu descanso merecido.  

Nos momentos que ela se lembra da câmera e tira a atenção um pouco da estrada, Fabiana se mostra uma legítima contadora de causos lá do interior do Goiás, aquele riso frouxo desajeitado que conta histórias absurdas com falsa modéstia enquanto fuma cigarros. Ela conta histórias de romances quentes cheios de aventura e sedução, possui uma fama de conquistadora que inquieta seus colegas homens e a faz ter orgulho.

Seus gostos envolvem fascínio por máquinas grandes como caminhões e aviões, saudade do seu cachorrinho Billy e do seu filho, que não verá no natal por conta do trabalho. Mas Fabiana tem um lado durão e fechado, que inclusive me remete a Geração Beat – portanto, ela realiza meus sonhos de quando adolescente: ser uma beat mulher.

 

 

Aos 14 anos não percebia tanto a forma que a misoginia atuava, inclusive na falta de referências, mas já sabia muito bem que mulheres na estrada era quase uma proibição. Thelma e Louise (1991) já me ensinava isso quando eu era mais nova e meu pai fazia questão de relembrar os perigos do filme quando eu falava que queria sair por aí viajando.

Pouco antes de escrever este texto senti que estava velha demais para ainda não ter pego carona no dedão, precisava fazer isso logo, antes de passar dos vinte e poucos como mandam os filmes. Se eu enxergasse a paisagem da mesma altura que a câmera em Fabiana talvez pudesse fazer uma crítica melhor. Tudo de real que eu sabia desse universo eram apenas as histórias que o Fred, meu namorado, contava, tipo adotar uma cabra no interior de Ibimirim e levá-la de carona para João Pessoa.

Se a Flor (nome da cabra) conseguiu, eu também seria capaz e lá fomos nós para a BR 101 no sentido de Recife para chegar em Aracaju. Foi uma viagem relativamente tranquila, tirando as queimaduras de sol de ficar horas pedindo carona e o meu medo de não conseguir chegar no mesmo dia e ter que dormir no chão de algum posto de gasolina habitado predominantemente por homens ou então ficar presa em algum lugar deserto e escuro e homens aparecerem.

A ida e a volta da nossa viagem duraram cerca de doze horas, sendo que de carro seria somente umas quatro. Em compensação não gastamos quase nada, menos de 15 reais cada um e conhecemos vários lugares.

A solidão dos caminhoneiros é um fato e a hospitalidade deles também, se a gente acha a Internet revolucionária, imagina eles. Compreendi melhor o tempo da estrada que o filme mostra, percebi a vontade de conversar, contar histórias e também de fazer perguntas. Algumas delas nos deixavam até sem graça, tipo se nós íamos roubá-los ou se meu namorado ia me engravidar e sair por aí (perguntas feitas olhando para o Fred e não me incluindo muito na conversa).

Na volta, por coincidência, pegamos carona com um caminhoneiro de Goiânia e, bem efusiva, perguntei se ele conhecia alguma Fabiana, “uma caminhoneira que fez um filme” e ele disse que não, mas que era cheio de mulheres caminhoneiras e que ele acompanhava os vídeos que elas faziam para o YouTube. Ali tive mais  certeza que a estrada também é nossa e lembrei da Brunna Laboissière com seu mochilão no meio das sessões do Festival de Brasília.

DISPOSITIVOS SOBRE CAUSA E CONSEQUÊNCIA: CÂMARA DE ESPELHOS + PRECISAMOS FALAR DO ASSÉDIO

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desse ano teve novos formatos, com mostras paralelas de cunho político e as chamadas sessões especiais. Em uma dessas sessões, foram exibidos os longa-metragem Precisamos falar do assédio e Câmara de Espelhos, filmes que tratam das questões ligadas às mulheres na sociedade. Além dessa discussão como elemento em comum, ambos os filmes dialogam com o espectador através do formato de filme-dispositivo. Esse tipo de filme costuma partir de uma questão formal, um dispositivo que afeta a linguagem do filme, para chegar às suas outras questões.

No caso do filme Câmara de Espelhos, de Dea Ferraz, o dispositivo consiste em reunir homens de diversas faixas etárias, estilos de vida e grupos econômicos diferentes em uma instalação de caixa preta, fechada, com espelhos nas paredes e decoração de sala de televisão. A diretora faz intervenções externas ao longo do filme, sem que os convidados vejam ou interajam com ela, que aciona vídeos na televisão da caixa preta com temáticas relacionadas às mulheres. Cenas de novelas, programas de televisão, memes da internet, entre muitos outros conteúdos midiáticos, impulsionavam a discussão sobre assuntos como o lugar da mulher na sociedade, nas relações, seu comportamento no mundo.

Em Precisamos falar do assédio, de Paula Sacchetta, o dispositivo se trata de uma van-estúdio que para por diversos lugares em São Paulo e Rio de Janeiro com o objetivo de coletar depoimentos de mulheres que foram vítimas de qualquer tipo de assédio, sejam eles físicos, psicológicos ou morais. Elas ficam sozinhas dentro da van, apenas com a câmera, sem interagir diretamente com a diretora. Caso prefiram, podem usar máscaras ou pedir para alterar a voz do depoimento. Cada máscara representa o motivo pelo qual a vítima não quer mostrar o rosto: medo, raiva, vergonha ou tristeza.

A criação de dispositivos em um filme tem como premissa filmar o que ainda não se apresenta e só se apresentará quando o dispositivo for acionado: ele é uma ativação do que já é real, apesar de ser um contexto inventado dentro da própria realidade. Como uma caixa preta em que homens podem comentar o lugar da mulher na sociedade ou uma van com uma câmera onde mulheres podem relatar assédios sofridos por elas.

Um filme tem a capacidade de intensificar as mudanças na realidade não apenas como um produto final que causa sensações particulares em cada espectador de acordo com suas próprias vivências, contextos e imaginário. Além disso, durante as gravações, existe a capacidade de desencadear sensações em quem está sendo filmado. A possível reflexão entre os homens em Câmara de Espelhos a partir das discussões na sala de espelhos é um exemplo disso. Assim como o processo catártico de cada mulher que deixou o seu depoimento em Precisamos falar do assédio. 

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A caixa é um recorte da sociedade com a qual lidamos diariamente em proporções bem maiores. A proposta da diretora é de uma análise de discurso da mídia que reproduz e recria um imaginário machista na sociedade, que a nível macro pode parecer imperceptível para a maioria da população consumidora dos grandes veículos de comunicação de massa. Mesmo para quem acredita estar seguindo um caminho de constante desconstrução, ao observarmos com mais atenção as nossas próprias falas, atos e mesmo trabalhos cotidianos, fica evidente que também repetimos e alimentamos à exaustão esse discurso machista.

Através desses recortes exibidos em uma tela de cinema, podemos entender a proporção dessas incoerências. Há determinado momento no filme em que uma cena de novela é exibida para que os convidados discutissem. A cena consistia em um homem e uma mulher tendo relações sexuais, enquanto um homem, que seria o marido, dá um tiro em ambos ao encontrá-los. Um dos convidados da sala, ao fim da exibição da cena, diz rapidamente e com convicção que isso é completamente normal e plausível. Esse momento demonstra a gravidade e a naturalização do feminicídio tanto na mídia quanto na abordagem cotidiana sobre o assunto.

Na van de Precisamos Falar do Assédio, notamos que as proporções que esse discurso têm e como trazem reflexos diretos e concretos na realidade das mulheres. A retro-alimentação do machismo não fica apenas na esfera das ideias, mesas de bares, discussões em comentários de portais de notícias: ela chega nos nossos corpos e psicológicos de formas muito dolorosas, deixando profundas cicatrizes. E é isso o que traz a diretora e as corajosas mulheres que compartilharam com seus fortes depoimentos no filme.

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No filme, há relatos de mulheres da mais variada faixa etária. Algumas delas, já idosas, falavam pela primeira vez na vida sobre o assédio vivido. Através dessa câmera fechada em uma van, sem ninguém que as julgasse ou repreendesse ou amedrontasse, essas mulheres encontraram uma oportunidade para, de alguma forma, libertar um pouco de uma dor que não pode ser compartilhada por diversos fatores na vida cotidiana de cada uma. E esse formato do filme, além de auxiliar na catarse vinda da fala do próprio processo de abuso, causa a catarse em quem as assiste e se identifica em algum ponto com a sua fala. O filme se estende em outros desdobramentos interativos: convida a todas as mulheres que compartilhem depoimentos online em seu portal.

Outra característica inerente aos filmes-dispositivos é que eles funcionam, individualmente, em seu próprio modelo. Não há um formato específico e universal, os dispositivos são construídos diferentemente a cada obra, de forma a fazer sentido de acordo com o seu propósito enquanto filme. Mas, nesse caso, os dois filmes exibidos possuíam uma semelhança em seu dispositivo: o confinamento em locais fechados.

A leitura em cada um traz uma simbologia forte: os homens em Câmara de Espelhos, mesmo em ambiente enclausurado, estão sentados confortavelmente em sofás, com televisão, com homens ao redor, criando um senso de companheirismo. Eles falam à vontade sobre as opressões que praticam, conscientemente ou não, em clima descontraído. Mesmo que discordem entre si em alguns pontos, e ainda que falem coisas que soem absurdas, estão à vontade. Já as mulheres de Precisamos falar do assédio estão sozinhas, em um ambiente pequeno e fechado. Ainda que a intenção seja de acolhê-las, de lhes oferecer um lugar no mundo exclusivamente delas com a oportunidade de falar sobre algo que as oprime, as mulheres se sentem acuadas, envergonhadas.

A forma distinta como os homens e as mulheres se sentem perante os dispositivos é um simulacro da sociedade em que vivemos. Essas diferentes formas de lidar com o confinamento evidenciam como os lugares de fala refletem no pensar e agir dos homens, que não se sentem responsáveis pelas suas próprias agressões (sejam elas em potencial ou realizadas). E, por outro lado, a punição, culpabilização e silenciamento das vítimas estão arraigadas nas estruturas da sociedade, e demonstram o quanto o processo das mulheres que vivenciam isso é solitário.

FILMAR PARA NÃO ESQUECER: MY BEAUTIFUL BROKEN BRAIN

Algumas experiências são tão raras, subjetivas e difíceis de serem descritas em palavras que resta, a quem não as viveu, apenas o mistério de imaginá-las. O cinema é uma das ferramentas que dão vazão a essas imagens que, por serem criadas, já trazem em si o peso da impossibilidade da apreensão direta do real. No entanto, os filmes estão há tempos nos apresentando a experiência da alteridade, de nos distinguir ou nos encontrarmos no olhar do Outro, muitas vezes como um caminho de retorno a nós mesmos. Arriscando-me a ser piegas aqui, os filmes podem nos ajudar a por a vida em perspectiva.

O uso da câmera subjetiva para colocar um sujeito dentro da história, como um olhar que se transfere para o espectador, não é novo, mas My Beautiful Broken Brain surge nesses tempos em que essa subjetividade não serve mais somente ao cinema, e sim às narrativas do dia-a-dia. As câmeras estão, para a maioria das pessoas que têm o privilégio de obtê-las, ao alcance das mãos, em nossos celulares, tablets e computadores. A profusão de histórias cotidianas gravadas no modo “selfie” de nossos celulares muitas vezes nos fazem parecer personagens que caminham por aí não necessariamente desvendando o mundo, mas repetindo a nós mesmos e tornando o universo mais parecido com o que queremos. Bem o inverso da ideia de alteridade.

Como então filmar de maneira a investigar a si, proporcionando a compreensão, a mudança e a empatia sem se deixar levar por uma egocêntrica narrativa de nós mesmos? Essa é uma pergunta sincera e faz parte da minha trajetória como realizadora. O que queremos quando nos colocamos em uma obra?

O que queria Lotje Sodderland quando, dez dias após seu acidente vascular cerebral, resolveu gravar um vídeo em modo “selfie” contando que está viva? Como o filme trata de sugerir tanto quanto deixar em aberto essa questão, o certo é que nunca compreenderemos inteiramente a nova forma como o mundo se apresenta para Lotje, mas temos à mão belos pedaços. A coragem de se colocar em frente à câmera lutando contra suas limitações cognitivas revela certa intenção de chegar a alguém. Em certos momentos, a solidão retratada faz parecer que ela precisa chegar a alguém, qualquer coisa, a ela mesma, e imediatamente, sob o medo de se ver esfacelar, de esquecer de si.

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Há momentos em que o filme peca pela abordagem “documentária” forçada, tomando depoimentos de outras pessoas que insistem em dizer que Lotje era produtiva, extrovertida e intelectual, antes do acidente vascular cerebral. A direção do filme demonstra pensar que era preciso deixar clara a diferença entre a moça de antes e a de agora, mas o fato é que o melhor da obra é como Lotje percorre o caminho de descobrir quem ela é de verdade, para além de toda a mudança. O que define quem ela é: o acidente, as novas visões, as limitações de linguagem? Ou a extrema resiliência com a qual ela busca se recuperar, se redefinir e ressignificar o mundo? O que significa a vontade de Lotge de filmar a si no meio da rua, descrevendo seu novo mundo? Para que procurar uma diretora que pudesse transformar as descrições em cores, distorções e sons que pudessem dar conta desse universo além das palavras?

Não à toa, Lotje busca referência no cinema, a grande biblioteca dos imaginários visíveis, e em David Lynch, o cineasta dos sonhos. Através do contato com ele o filme pôde vir ao mundo. É emocionante ver como ela parte das limitações de sua mente para o entendimento de uma mente sem limites, quando passa a se ver como parte de um sonho, de uma consciência cósmica, sem com isso diminuir a dor de sua condição. Seu acidente foi provocado por condições genéticas, interiores, que tornavam seu novo estado de vida apenas uma questão de tempo.

Logo se nota que para Lodje, o grande desafio está em aprender a libertar sua versão mais verdadeira, diante da fragilidade de si mesma, de suas memórias e do mundo em vive, tão despreparado para pessoas como ela. Nunca saberei o que ela sente, mas graças à sua busca pela permanência através do ato de filmar, posso assisti-la e colocar minha própria vida em perspectiva. Não estamos falando de egolatria. My Beautiful Broken Brain é sobre filmar para não esquecer.

CONFIDÊNCIAS FEMININAS SOBRE O PASSADO E O PRESENTE: A HORA DO CHÁ

Você já teve a impressão que fizeram o filme cujo qual você gostaria de ter feito? Foi o que eu senti ao me deparar com “La once”, ou a Hora do chá – documentário dirigido pela chilena Maite Alberdi. Há tempos venho pensando em filmar os encontros de minha avó e de suas amigas octogenárias que acontecem a cada semana. Denominado como “o jogo das meninas”, a reunião é repleta de lanches, jogos de baralho e confissões íntimas. Parece que a Maite teve a mesma ideia. Em seu longa-metragem documental, a diretora retrata o encontro da avó com mais cinco mulheres, amigas de escola que se reúnem mensalmente há 60 anos.

A princípio, somos guiados pela narradora Tereza que apresenta as integrantes do grupo a partir das personalidades e características de cada uma. Quando já familiarizados, sentamos à mesa para tomar um chá. Com planos muito próximos, nos sentimos verdadeiramente parte da conversa. Os vários planos-detalhe dos doces, tortas e salgadinhos nos trazem uma sensação de conforto e intimidade. Diante de tanto açúcar, seria possível esconder algum segredo? As senhoras seguem conversando sobre os temas atuais e tabus como a sexualidade.

Quando demonstram suas opiniões, as velhas amigas, por vezes, suscitam tendências mais conservadoras. A diretora optou por não esconder possíveis julgamentos ou preconceitos vindos das falas dessas mulheres. Exemplo é a presença das empregadas e o tratamento dado a elas durante o filme. Maite frisa como as domésticas são responsáveis por preparar e arrumar o lanche, mas entre as conversas são ignoradas. Estas senhoras são, de alguma forma, o retrato do Chile, um retrato da classe média chilena que pouco se difere da nossa. No entanto, o longa não destrincha sobre questões políticas e sociais, o foco do documentário é outro: a relação de amizade construída durante anos.

Nesse emaranhado de falas, encontramos muitas vezes opiniões parecidíssimas com as de nossas avós. A discussão sobre “o papel da mulher na sociedade”, por exemplo – e como isso foi ensinado a essas senhoras ainda na época da escola. A discussão se alonga e elas concordam que os valores mudaram e a noite de núpcias já não parece mais um bicho de sete cabeças para nenhuma moça. Uma das amigas leva ao encontro o antigo caderno da disciplina intitulada “Economia doméstica”, onde as características da “boa esposa” eram explicitadas, com destaque para o “ autocontrole”. As próprias senhoras riem após a leitura do caderno. O riso é necessário durante todo o filme. Afinal, elas acabam se criticando, pois muitas vezes não têm as mesmas opiniões.

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A conversa sai dos temas sociais para se tornar mais íntima. “Vocês preferem que seu marido lhe traia ou que ele morra?”, pergunta uma das personagens. O tema do amor e casamento surge como uma causa principal para essas mulheres, menos para Gema – que decidiu não se casar e por isso desperta desconfiança entre as amigas.

Estas senhoras que viveram a época de transição das conquistas feministas se veem, depois de velhas, mais empoderadas. Não tanto pelos direitos femininos adquiridos, mas pelo caráter de discernimento que a velhice possui. Não precisam aparentar mais nada. Não têm papas na língua. Falam o que vem à cabeça. Riem e discutem sem pisar em ovos. Nesse sentido, “La once” nos traz uma perspectiva sobre a percepção dos idosos sobre a realidade. Se na juventude, as regras lhes eram impostas e as alternativas eram segui-las ou quebrá-las, a velhice traz a possibilidade de ignorá-las, de transpô-las.

A hora do chá é também ritualística. Um encontro mensal que acontece religiosamente. Em entrevista, a diretora Maite Alberdi confessou que teve a ideia de fazer o longa após a avó negar de ir à premiação de um filme da neta, pois o evento iria acontecer no mesmo dia que a “hora do chá”. É como “o jogo das meninas”, quando acontece na casa da minha avó, todo mundo tem de sair. Os encontros entre amigas são sagrados. Nesse espaço, nesses dias tão específicos se trocam confissões, intimidades. Por mais diferente que sejam, essas velhas senhoras se sentem pertencentes a algo maior, em outras palavras, ao sentimento da amizade. Aqui relembro o conceito de sororidade. A hora do chá representa aquele encontro semanal com amigas no bar, pra falar de trabalho, de amor, de filhos, de coletor menstrual, “do papel da mulher na sociedade”, etc, etc.

DA SOLIDÃO A REVOLTA: WHAT HAPPENED, MISS SIMONE?

A escritora Maya Angelou entrevistou a cantora Nina Simone em 1970, para a revista americana Redbook. Quando Nina contava sobre sua infância e adolescência, revelou: “Eu encontrei o amor na juventude, e eu o perdi. Eu perdi o amor e fundei uma carreira”.  A frase seguinte de Maya abre o documentário “What Happened, Miss Simone?”: “Mas, senhorita Simone, você é idolatrada, até mesmo amada, por milhões agora”.

Nina rebateu: “Para mim, estou muito distante da compensação pelo que eu abri mão”. Essa frase parece se conectar à aparente ambição do filme lançado pelo Netflix: a de contar a história de vida de uma mulher que fora ferida mortalmente há tanto tempo que não poderia mais viver sem sangrar.

A diretora americana Liz Garbus acerta em sua tentativa de expor esse sangramento através da combinação de material de arquivo com áudios de entrevistas a Nina: ainda que o método não seja nada inovador e pouco ousado, é eficaz em confrontar o espectador a se perguntar se ele mesmo sairia de uma história de tanta violência e racismo sem alguma chaga. Serve também para gerar uma aproximação através da memória, do encontro com os Estados Unidos da América de ontem, que deixou cicatrizes nos dias de hoje (e se o racismo marca a história de uma nação, como não haveria de marcar uma mulher negra para sempre?). Não há como falar em Nina Simone sem atravessar a história dos EUA junto com ela.

Nina, entre a liberdade no palco e a prisão do mundo real.

Nina, entre a liberdade no palco e a prisão do mundo real.

Essa dinâmica é quebrada por entrevistas com os antigos amigos, com o ex-marido e com a filha, Lisa. Nesses momentos o documentário flerta com a ideia de que ela era tão genial quanto de difícil convivência, devido à personalidade forte e explosiva. É desconfortável ver a filha de Nina atuar como antagonista da própria mãe, ao colocar em cheque até mesmo a vida sexual da cantora e sua aptidão para a maternidade.

Os depoimentos de Lisa são pouco confrontados e muitas vezes assumem o lugar da narração das imagens (que por sua vez, confunde-se com a “verdade”). O mesmo ocorre com a entrevista de Andrew Stroud, ex-marido de Nina. É justo dar o poder da narração ao estuprador, espancador e abusador confesso da personagem do documentário? Em certo momento os objetivos do filme parecem envoltos em certa névoa de desconfiança: estamos assistindo para conhecer, admirar ou para julgar Nina? Alguns blogs manifestaram sua revolta com essa questão (neste post em inglês e neste em português). A revelação (tardia, no filme) de que a cantora sofria com transtorno bipolar surge como que para justificar seus rompantes de fúria, colocando sobre a doença o ônus de sua “loucura”. O que aconteceu a Nina Simone, afinal, é de fato o que a obra se propõe a desvendar, mas tem como principais marcas a ambiguidade e certa conveniência em suas respostas.

Pode-se supor que o filme pretende mesmo quebrar qualquer ideia de mito acerca de Nina Simone, e colocar o espectador de frente com o pior dela, para colocar em perspectiva o pior da humanidade – o cinema, de vez em quando, investe-se dessa missão. Nina foi abusada por ser mulher e dilacerada por ser mulher e negra, testemunha e vítima de uma época criminosa em que o povo negro tinha que matar ou morrer para ser ouvido nos Estados Unidos (será que essa época já acabou?). Nina passou da solidão à revolta, e no caminho aprendeu e absorveu a ação violenta. Quando precisou, usou dela para fazer valer o que acreditava. Em algum momento, o documentário sugere, parece ter sido dominada por essa violência.

Ou talvez a dominasse, e fizesse de seu sangue uma arma, como mais uma manifestação do recado de que o mundo ainda levaria muito para compensá-la.