Alejandro Jodorowsky e sua obra são comumente celebrados em um espaço difícil de definir. Por vezes negligenciados pelos críticos por não se encaixarem em nenhuma tradição cinematográfica, ao mesmo tempo foram cultuados por entusiastas da contracultura hippie dos anos 1970 e envolvidos em certo tom obscuro e alternativo. Seus filmes também ganharam a pecha de head film, ou seja, filmes para serem assistidos enquanto se usa drogas.
Diante desse cenário, o assunto Jodorowsky envolve uma certa aura progressista. Entretanto, o diretor sempre se orgulhou de se abster de comentários políticos, argumentando que seus interesses estavam em revoluções espirituais e pessoais. Há controvérsias sobre essa suposta oposição entre política e espiritualidade, a expectativa de que arte possa transcender comentário político.
Gostaria de começar falando sobre Mara Lorenzio.
Lorenzio foi a atriz principal do segundo filme do diretor, El Topo (1970), que conquistou as graças de John Lennon e teve os direitos de distribuição adquiridos por Allen Klein, agente dos Beatles. O filme inaugurou o fenômeno do midnight movie nos Estados Unidos – filmes produzidos fora de Hollywood e exibidos em pequenos teatros à meia-noite.
Em uma entrevista concedida em 1970, Jodorowsky declarou ter “realmente” estuprado Lorenzio durante a gravação de uma das cenas de estupro de El Topo. Mas, ao contrário do caso de Maria Schneider e O último tango em Paris, não conhecemos a versão da história de Mara – a atriz desapareceu da cena artística após o lançamento do filme.
O que sabemos de Lorenzio é o que Jodorowsky nos conta. De acordo com o diretor, ela simplesmente “apareceu” na casa dele um dia: “Ela estava mal. Em um momento da vida dela ela havia tomado LSD em grandes quantidades e tinha sofrido. Ela estivera em um hospital para doenças mentais”. Jodorowsky convidou a desconhecida para atuar no filme, e ela se mudou para a casa dele, onde ficou por seis meses. Depois que El Topo foi gravado, Lorenzio foi embora e os dois nunca mais se viram.
Jodorowsky, porém, não é exatamente um narrador confiável. Entrevistas com o diretor são menos sobre fatos e mais sobre a mitologia pessoal que ele deseja criar. Jodorowsky declara não querer ser visto apenas como um cineasta, mas como um profeta: seus filmes não são só obras de arte, são um caminho para alcançar a iluminação; a equipe é composta por guerreiros espirituais que serão transformados. Suas respostas são temperadas por referências místicas e improvisações: “Quando eu falo, eu invento. Eu invento. Eu nunca penso sobre o que falo”. Isso dificulta ainda mais a entender o que realmente aconteceu.
Embora ele declare ter morado com Lorenzio por seis meses e saber detalhes sobre a saúde mental dela, em outro momento da mesma entrevista de 1970 ele afirma que “não sabia nada” sobre ela e que eles “nunca conversavam” um com o outro. Anos mais tarde, em 2007, Jodorowsky afirmou para a revista britânica Empire: “Eu não estuprei Mara, mas eu a penetrei com o consentimento dela”.
Enquanto é incerto se realmente ocorreu um estupro no set devido à ausência do depoimento de Lorenzio, podemos ter certeza de que Jodorowsky não via problemas em estuprar uma atriz para “fins artísticos”. Inclusive, o estupro é uma forma de afirmar a imagem de líder espiritual a qual o diretor almeja. Veja bem: para ele, o estupro não é um ato de violência, um crime. Jodorowsky defende que estuprar uma mulher é um modo de despertá-la criativamente. É essa a narrativa que ele constrói, tanto para a atriz quanto para a personagem. Em El Topo, o estupro é uma forma de curar a frigidez feminina e despertar o orgasmo:
“Então ela [Mara Lorenzio, a atriz] me disse que já havia sido estuprada antes. Veja você, para mim a personagem é frígida até El Topo estuprá-la. E ela tem um orgasmo. É por isso que mostro um falo de pedra que jorra água nessa cena. Ela tem um orgasmo. Ela aceita o sexo masculino. E é o que aconteceu com Mara na vida real. Ela realmente tinha esse problema. Uma cena fantástica. Uma cena muito, muito forte.”
Mara, em El Topo, é resgatada pelo personagem principal do jugo de um coronel. Em seguida, o casal atravessa o deserto. Enquanto El Topo é capaz de fazer pequenos milagres, como encontrar ovos em meio a areia e fazer água jorrar de pedras, ela se compara com ele e se frustra com a própria incapacidade. Até que El Topo a estupra, e então ela ganha as mesmas habilidades mágicas. Mais adiante, a personagem de Lorenzio irá traí-lo com outra mulher e abandoná-lo.
O diretor repete a associação entre estupro e criatividade no documentário Duna de Jodorowsky: “Quando você faz um filme, você não deve respeitar o livro. É como quando você se casa, não? Você toma a mulher. Se você respeitar a mulher, você nunca vai ter um filho. Você precisa abrir o vestido e estuprar a noiva. E então você vai ter o seu filme. Eu estava estuprando Frank Herbert [autor do livro original Duna], mas com amor, com amor”.
Na entrevista concedida em 1970, Jodorowsky elabora mais teorias sobre a sexualidade feminina. Segundo o diretor, matar coelhos seria mais satisfatório para um homem do que fazer sexo, já que os animais se entregariam à morte mais facilmente do que uma mulher ao orgasmo: “A vingança da mulher contemporânea é fazer o homem se esforçar para dar-lhe um orgasmo”.
El Topo contém mais duas cenas de estupro. Em uma delas, vemos mulheres brancas, velhas, ricas e excessivamente maquiadas molestarem um homem negro escravizado e depois o acusarem de estupro. Por causa da falsa acusação, o escravo é assassinado pelos moradores revoltados da cidade. Embora falsas acusações de estupro de mulheres brancas por homens negros de fato ocorram, como no caso dos Scottsboro Boys, Jodorowsky parece atribuir a culpa do acontecimento às supostas hipocrisia sexual feminina e volúpia exacerbada de mulheres velhas e feias, enquanto o verdadeiro culpado é o racismo.¹
Na cena de estupro seguinte, El Topo e uma amiga, que tem nanismo, são forçados a fazerem sexo na frente dos clientes de um bordel. A personagem, referida no roteiro como A Pequena Mulher, o abraça apaixonadamente e diz: “Eu te amo. Eles não existem. Não há ninguém aqui além de você. Me possua. Por favor”. Jodorowsky imagina que a reação de uma mulher obrigada a fazer sexo em frente a uma plateia seria a de encarar a situação como um momento romântico e não, sei lá, um ato de violência. Aqui, o estupro poderia ser visto como uma oportunidade para a “mulher feia”, que de outra forma não conseguiria fazer sexo com o homem desejado. Quando questionado se havia feito sexo de verdade com a atriz nessa cena, Jodorowsky respondeu: “Não, porque eu não me sentia sexualmente atraído por ela”.
É curioso que uma visão tão tradicional sobre sexualidade feminina não tenha sido amplamente vista como um problema no trabalho de Jodorowsky.² Em um artigo de David Church para Senses of Cinema que analisa a obra do diretor, por exemplo, a cena de estupro em El Topo é descrita em poucas palavras: “El Topo a estupra para desencadear seu primeiro orgasmo”. Sem discussões ou ressalvas posteriores. Durante a entrevista de 1970, quando Jodorowsky confessa ter estuprado Lorenzio, o entrevistador, Ira Cohen, responde apenas: “Você sabia que a toupeira tem o pênis no formato de uma faca?”, e os dois seguem discutindo sobre o simbolismo de facas e ovos.
Jodorowksy costuma ser criticado pelo simbolismo hermético e pelas frases de efeito vagas, e não pelo fato de promover estupro como algo bom para mulheres. Se um diretor aspira a provocar uma revolução espiritual e inspirar pessoas com seu trabalho, o fato de sua obra promover a manutenção de ideias conservadoras e nocivas sobre gênero não deveria ser visto como uma falha, ou ao menos um ponto relevante a ser discutido?
Notas:
(1) O homem negro é caracterizado pelo racismo como violento, hiperssexual e uma ameaça à sociedade. Isso faz com que ele sirva de bode expiatório para a violência de homens brancos, que se revestem com ares de inocência e respeitabilidade enquanto acusam negros de serem os verdadeiros estupradores. O mito do homem negro como estuprador de mulheres brancas também tem a função de impedir a miscigenação racial após a abolição da escravidão. Com medo de serem estupradas, mulheres brancas passam a evitar interações com homens negros, conforme explica bell hooks no livro Ain’t I a Woman.
(2) Uma das exceções a essa observação seria a crítica Pauline Kael. Responsável por cunhar o termo “acid western” ao descrever El Topo, Kael argumentou que o filme se revestia com uma imagem subversiva por meio do sincretismo de símbolos religiosos, mas que a mensagem, por fim, acabava sendo tradicionalíssima: “Um homem divino tentado por uma mulher má e sedenta por poder abandona a integridade, e então, pelo amor de uma boa mulher, se torna um homem espiritual, apenas para aprender que o mundo não está pronto para sua espiritualidade”.
por Amanda V.
Amanda escreve no Deixadebanca e também organiza o Xotanás, sobre masturbação feminina.
Marina Abramòvic é uma artista performática da Sérvia que durante toda a sua carreira trouxe em seus trabalhos os limites do corpo físico dentro da performance, arte esta que utiliza o corpo e a sua relação de entrega com o presente, com o aqui e agora, de ação, contando com a presença e reação do público. Em uma de suas performances, Marina, querendo demonstrar até que ponto a sociedade pode chegar em relação a alguém completamente entregue e receptivo, apenas ficou parada e permitiu que o público interagisse com o corpo dela da forma que quisesse. Em determinado momento, uma pessoa apontou uma arma para ela.
Nos últimos anos, ela vem mostrando um vínculo cada vez mais forte de sua arte com a espiritualidade e trazendo o seguinte questionamento: “Como eu posso ajudar a despertar a consciência através da arte?”
A relação de Marina com o Brasil existe desde o final dos anos 80, logo após a performance que fez com Ulay, seu ex-marido e companheiro de performance. Ela afirma que durante o processo da performance The Lovers, na qual cada um andou de cada extremo da Muralha da China em direção um do outro, para se encontrarem, se despedirem e romperem definitivamente, ela começou a perceber que solos diferentes afetam o corpo de forma diferente. Marina começou então uma jornada pessoal e criativa em diversos lugares: viveu um período com tribos aborígenes da Austrália, depois com monges tibetanos, buscando entender o corpo como meio de tecnologia transcendental. Veio também ao Brasil buscando novas ideias a partir dos diferentes minérios e cristais que existem no solo e passou a aplicá-los em performances e instalações.
Marco Del Fiol, diretor de Espaço Além, conheceu o trabalho de Marina em uma série que passava na TV Cultura nos anos 90 sobre arte, espiritualidade e ciência, na qual ela representava a arte. Ele, que ainda não trabalhava com arte, mas tinha uma conexão com a espiritualidade, depois de um tempo passou a trabalhar com arte e documentários sobre a arte contemporânea. A performer Paula Garcia, anos depois, o convidou para registrar a visita de Marina no Brasil.
Nos últimos anos, Abramòvic visitou vários lugares de poder de diferentes regiões do Brasil, que são mostrados no filme Espaço Além, dirigido por Marco Del Fiol. São mostrados a casa de João de Deus, famoso mundialmente por curar através de sua mediunidade em Abadiânia; o Vale do Amanhecer e a sua pluralidade; a casa de Dona Flor e seu conhecimento das ervas em Altoparaíso; Rituais de Candomblé em Salvador; rituais xamânicos com ayahuasca na Chapada Diamantina e em Curitiba.
Nesses encontros, ela busca compreender o que há de comum entre o ritual e a performance. Ela conclui que o ponto em que ambos convergem é o fato de permitirem que se entre em contato com o seu Eu Maior. O momento de transe de uma incorporação e o momento em que ela, como artista, inicia uma performance é o momento em que qualquer vínculo externo de espaço e tempo se dissipam e o seu corpo se torna instrumento transformador completamente entregue ao presente. E, como de costume em todos os seus trabalhos, Marina coloca o seu próprio corpo e as suas próprias experiências para as suas criações artísticas, mas dessa vez a performance foi mergulhar nos rituais e registrar as suas próprias vivências em filme. O grande diferencial dessa em relação a todas as outras ao longo dos anos foi não focar nas ramificações físicas das sensações: ela distingue a dor física, que ela afirma que é possível lidar, da emocional, que requer rupturas profundas no espírito e constantes confrontos consigo mesma.
Jung enxerga os rituais “primitivos”, os quais Marina Abramòvic procurou nessa jornada, como uma máquina que transforma a energia vital que existe na natureza em energia psíquica, processo no qual as diferentes ritualizações através da música, da dança, das palavras e das imagens simbólicas, são formas de canalização dessas forças naturais para fins sociais. Portanto, no “homem primitivo”, a consciência seria completamente imersa nos fenômenos naturais, enquanto no “homem civilizado”, domesticado, a razão teria dominado o estado selvagem.
E é percebendo isso que Marina encontra a resposta daquela pergunta inicial de como poderia ajudar na consciência coletiva para o despertar da consciência: o que está na natureza é inerente a ela, não há o que criar, ela apenas é. O que ela vê como necessário para a arte nesse momento trazer a natureza para as grandes cidades – não apenas fisicamente, com uma arborização efetiva, por exemplo, ou representações visuais constantes – mas a sensação, a conexão com os elementos, e principalmente consigo mesmo.