Podemos pensar a dramaturgia de Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert, a partir de duas chaves iniciais de aproximação: a primeira é ter uma trama livremente inspirada no caso Pedrinho – o bebê raptado em uma maternidade em Brasília, em 1986; a segunda é a construção identitária do protagonista – o adolescente de 17 anos, Pierre/Felipe (Naomi Nero).
Apesar de tomar como ponto de partida um evento real, o longa não pretende se vincular a uma tradição de gênero “inspirado em fatos reais” – tanto que há uma recusa do uso de qualquer cartela explicativa/informativa sobre o caso Pedrinho. O real aqui não é apreendido como um tour de force, mas como motivador de narrativas possíveis, que inclusive jamais se deixam seduzir pela espetacularização dos pormenores do caso.
No entanto, seguindo o mesmo procedimento de Que Horas Ela Volta?, parece ainda ser inevitável à Muylaert – e, em alguma medida, até escorregadia – a tendência em reforçar o estereótipo do modo de vida da classe média. Isso é feito a partir de componentes cômicos, como a sequência da reunião com a família para tirar um selfie ou a cena em que pais biológicos sugerem uma viagem à Disney.
O filme ganha outros matizes quando se detém no protagonista Pierre/Felipe: um jovem de gênero fluido, que está experimentando as diferentes possibilidades de vivência da sexualidade, durante sua formação na adolescência. De certa forma, ele se assemelha à protagonista de Tomboy (2011), da cineasta francesa Céline Sciamma, que ganhou o prêmio Teddy há cinco anos, em Berlim, tal como Mãe Só Há Uma conquistou em 2016. Os dois filmes não só tratam do gênero pelo viés da performatividade, como também reposicionam a temática dentro do universo da infância e da adolescência, que são intransponíveis ao mundo adulto.
Em Tomboy, Laure é uma menina de 10 anos, que se apresenta como Michael para um grupo de amigos vizinhos. Ela se veste como garoto e procura se adequar aos códigos de comportamento que são esperados socialmente de um menino. Em Mãe Só Há Uma, Pierre/Felipe também vai subvertendo aos poucos os códigos que lhe são imputados: ele passa a usar vestido, batom vermelho, calcinha com cinta liga. Em ambos os filmes não há posicionamentos fechados em relação à sexualidade dos dois personagens, mas uma abertura aos cruzamentos performativos entre gêneros.
Afetada por um corpo em formação, em estado transitório, a câmera de Mãe Só Há Uma quase tateia a pele de Pierre/Felipe. Em especial nos momentos em que ele se observa diante do espelho e nas cenas em que ele se sente mais livre, nas festas noturnas ou nos ensaios com sua banda de rock.
É fundamental a mudança de operação estética da imagem, orquestrada pela fotógrafa uruguaia Barbara Alvarez. Ela se arriscou mais aqui pela fluidez formal do que no longa anterior de Muylaert, Que Horas Ela Volta?, filme enrijecido pelo rigor da composição do quadro, capaz de sublinhar as relações de poder no ambiente de trabalho da empregada doméstica Val (Regina Casé).
Apesar das motivações serem completamente distintas, é possível encontrar ressonâncias entre Pierre/Felipe, de Mãe Só Há Uma, e a Jéssica (Camila Márdila), de Que Horas Ela Volta?, na medida em que ambos os personagens desestabilizam a ordem de uma cena constituída de onde eles não pertencem. No caso de Pierre/Felipe, a casa dos pais biológicos, que insistem no bom comportamento do jovem como o filho ideal, principalmente o pai conservador Matheus (Matheus Nachtergaele). No caso de Jéssica, a casa dos patrões de sua mãe empregada, com todas as regras tácitas de uma vida burguesa.
Ao longo da narrativa, o filme nos entrega um segundo protagonista: o irmão biológico caçula Joca (Daniel Botelho), que enfrenta conflitos amorosos na sua pré-adolescência e demonstra certo desconforto com o comportamento de sua família tradicional. Se de início existe uma distância natural entre Pierre/Felipe e Joca, os dois irão se aproximar por essa sensação de deslocamento. A direção de Muylaert tem a perspicácia de não anunciar isso logo de imediato, de ir compondo aos poucos, dando grandeza a um personagem que até então parecia ser secundário.
Outra estratégia importante da direção é ter dado a uma só atriz (Dani Nefussi) o papel das duas mães: Aracy, a mãe que criou, e Glória, a mãe biológica. Ainda que o espectador não perceba (até porque a excelente caracterização das personagens procura deixá-las bem distintas), é algo que redimensiona literal e psicanaliticamente o título para além do ditado popular de que “mãe só há uma”. Estamos novamente diante de um filme de/sobre mãe, mas agora acalentado pela perspectiva de um filho que se descobre, ao mesmo tempo em que conhece seu próprio mundo.