O 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro aconteceu em setembro de 2018, um mês antes da eleição presidencial. Mesmo em um contexto político conturbado – no qual direitos sociais estavam sendo ameaçados – o Festival, por meio dos filmes escolhidos, propôs discutir temáticas que interseccionam a esfera pública e a esfera privada. Entre os longas escolhidos, Bixa Travesty, de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla, destacou-se não só pela temática, mas pela ousadia narrativa que combina bem com a personagem que retrata: uma cantora trans, latino-americana e negra.
Nunca havia visto ou ouvido falar de Linn da Quebrada. Às vezes, fico meio por fora dos booms musicais. No entanto, creio que não haveria jeito melhor de conhecer Linn: sorridente e orgulhosa no palco do Cine Brasília. Cabelo com corte chanel, esguia, ao lado da companheira de performance, Jup do Bairro, Linn apresentou o filme falando de afeto como força motriz para a mudança. A diretora, Cláudia Priscilla reforçou “Esse filme não é um filme sobre a Linn da Quebrada, mas sim um filme com a Linn da Quebrada, afinal, ela participou efetivamente da construção do roteiro”. A plateia gritava “maravilhosa”, e eu já arrepiada pelo simples discurso que Linn professava: “Precisamos de afeto. Esse filme é sobre a disputa por um novo imaginário social, sobre a disputa pelos nossos corpos”.
A narrativa é construída a partir de highlights (expressão LGBTQ para nomear aquilo que realça ou que é brilho). Existe um fio narrativo que funciona como atmosfera para o filme: a luva que Ney Matogrosso usava e foi dada de presente por Jup para Linn foi perdida. Jup fica chateada com a amiga, enquanto Linn sente que perdeu algo importante. Neste prólogo, temos a sensação que a história do filme será a busca por essa luva – mas ele vai muito além disso.
As performances de Linn no palco cantando suas músicas autorais e um programa de rádio que ela apresenta com Jup – reflexões complexas, mas nem por isso sem bom humor – permeiam todo o longa. Tive a impressão que Linn da Quebrada soube explicar toda a bibliografia foucaultiana – passando pela História da Sexualidade (1976) e pelo conceito de biopoder. Entretanto, ela não utiliza termos acadêmicos, mas palavras bem conhecidas ao público: corpo, afeto, pau, feminino, controle e poder.
Na sauna, as amigas Jup e Linn falam sobre corpos trans, femininos, negros e gordos, ou seja, corpos desviantes. Em meio ao vapor, ao suor e às conversas extremamente existencialistas, destaco a fala de Jup sobre o efeito da comicidade. Para a artista, a comédia é uma forma de acessar o outro com temas tabu sem causar estranhamento ou constrangimento, mas ao mesmo tempo havendo uma certa quebra da credibilidade, destoando o engraçado daquilo que pode ser bonito. Neste ponto, o longa corta para as duas cantando a música “A lenda”, em que o mote: “Eu tô bonita?” “Tá engraçada” prevalece. Ri e chorei nessa parte do filme, ao lembrar de um episódio pessoal, quando um ex-namorado me disse que eu era muito engraçadinha e que ele gostava de mulheres sérias – retomando ao imaginário feminino do bela, recatada e do lar. Mesmo não me identificando como uma mulher trans ou negra, vi-me em vários aspectos deste longa, afinal, é um documentário sobre afeto e corpo, aspectos universais a qualquer indivíduo social.
E, falando em corpos, é impossível deixar de mencionar a naturalidade com que Bixa Travesty os retrata. Paradoxalmente, esses corpos que são ditos como antinaturais pelo discurso hegemônico são mostrados como paisagem. Em planos-detalhes aparecem pintos, mãos, cabelos, bocas. E o corpo como paisagem é uma potência afetiva que transforma as formas de poder como nos relacionamos com o meio e o outro.
Em termos em linguagem, os cortes entre várias cenas, que lembram esquetes teatrais, dão os aspectos de highlights ao longa. Entre essas cenas, vemos um episódio íntimo entre Linn e Liniker, na casa de Linn, em que as duas cozinham junto à mãe da cantora e protagonista do filme – realçando acontecimentos comuns de “seres” ditos como “estranhos”.
No meio da narrativa, uma série de fotos projetadas em forma de slides, em que Linn se encontra em um hospital e careca. A princípio, acredito ser uma performance. Somos transportados para o quarto de Linn, onde observamos que ela e uma amiga estão, na realidade, vendo fotos antigas em um notebook, do período em que a cantora se tratava de um câncer no testículo. Neste ponto, percebe-se o quanto Linn e Bixa Travesty são subversivos. Quem teria a ousadia de tratar de um câncer de uma maneira tão performática? Não chorei – porque a forma como se mostrou este momento na vida de Linn não foi nenhum um pouco melodramática: no meio do filme, como se fosse mais uma performance da artista.
Enfim, a força motriz de Bixa Travesty é mesmo o afeto: o afeto da música, dos corpos e principalmente do discurso. Linn usa e abusa da música, da dança e dos figurinos para comunicar. O que ela reforça é um diálogo que deve ser construído a qualquer custo e mais: um senso de comunidade no qual a individualidade e a coletividade se encontram para transbordar em novas formas de ser.
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desse ano teve novos formatos, com mostras paralelas de cunho político e as chamadas sessões especiais. Em uma dessas sessões, foram exibidos os longa-metragem Precisamos falar do assédio e Câmara de Espelhos, filmes que tratam das questões ligadas às mulheres na sociedade. Além dessa discussão como elemento em comum, ambos os filmes dialogam com o espectador através do formato de filme-dispositivo. Esse tipo de filme costuma partir de uma questão formal, um dispositivo que afeta a linguagem do filme, para chegar às suas outras questões.
No caso do filme Câmara de Espelhos, de Dea Ferraz, o dispositivo consiste em reunir homens de diversas faixas etárias, estilos de vida e grupos econômicos diferentes em uma instalação de caixa preta, fechada, com espelhos nas paredes e decoração de sala de televisão. A diretora faz intervenções externas ao longo do filme, sem que os convidados vejam ou interajam com ela, que aciona vídeos na televisão da caixa preta com temáticas relacionadas às mulheres. Cenas de novelas, programas de televisão, memes da internet, entre muitos outros conteúdos midiáticos, impulsionavam a discussão sobre assuntos como o lugar da mulher na sociedade, nas relações, seu comportamento no mundo.
Em Precisamos falar do assédio, de Paula Sacchetta, o dispositivo se trata de uma van-estúdio que para por diversos lugares em São Paulo e Rio de Janeiro com o objetivo de coletar depoimentos de mulheres que foram vítimas de qualquer tipo de assédio, sejam eles físicos, psicológicos ou morais. Elas ficam sozinhas dentro da van, apenas com a câmera, sem interagir diretamente com a diretora. Caso prefiram, podem usar máscaras ou pedir para alterar a voz do depoimento. Cada máscara representa o motivo pelo qual a vítima não quer mostrar o rosto: medo, raiva, vergonha ou tristeza.
A criação de dispositivos em um filme tem como premissa filmar o que ainda não se apresenta e só se apresentará quando o dispositivo for acionado: ele é uma ativação do que já é real, apesar de ser um contexto inventado dentro da própria realidade. Como uma caixa preta em que homens podem comentar o lugar da mulher na sociedade ou uma van com uma câmera onde mulheres podem relatar assédios sofridos por elas.
Um filme tem a capacidade de intensificar as mudanças na realidade não apenas como um produto final que causa sensações particulares em cada espectador de acordo com suas próprias vivências, contextos e imaginário. Além disso, durante as gravações, existe a capacidade de desencadear sensações em quem está sendo filmado. A possível reflexão entre os homens em Câmara de Espelhos a partir das discussões na sala de espelhos é um exemplo disso. Assim como o processo catártico de cada mulher que deixou o seu depoimento em Precisamos falar do assédio.
A caixa é um recorte da sociedade com a qual lidamos diariamente em proporções bem maiores. A proposta da diretora é de uma análise de discurso da mídia que reproduz e recria um imaginário machista na sociedade, que a nível macro pode parecer imperceptível para a maioria da população consumidora dos grandes veículos de comunicação de massa. Mesmo para quem acredita estar seguindo um caminho de constante desconstrução, ao observarmos com mais atenção as nossas próprias falas, atos e mesmo trabalhos cotidianos, fica evidente que também repetimos e alimentamos à exaustão esse discurso machista.
Através desses recortes exibidos em uma tela de cinema, podemos entender a proporção dessas incoerências. Há determinado momento no filme em que uma cena de novela é exibida para que os convidados discutissem. A cena consistia em um homem e uma mulher tendo relações sexuais, enquanto um homem, que seria o marido, dá um tiro em ambos ao encontrá-los. Um dos convidados da sala, ao fim da exibição da cena, diz rapidamente e com convicção que isso é completamente normal e plausível. Esse momento demonstra a gravidade e a naturalização do feminicídio tanto na mídia quanto na abordagem cotidiana sobre o assunto.
Na van de Precisamos Falar do Assédio, notamos que as proporções que esse discurso têm e como trazem reflexos diretos e concretos na realidade das mulheres. A retro-alimentação do machismo não fica apenas na esfera das ideias, mesas de bares, discussões em comentários de portais de notícias: ela chega nos nossos corpos e psicológicos de formas muito dolorosas, deixando profundas cicatrizes. E é isso o que traz a diretora e as corajosas mulheres que compartilharam com seus fortes depoimentos no filme.
No filme, há relatos de mulheres da mais variada faixa etária. Algumas delas, já idosas, falavam pela primeira vez na vida sobre o assédio vivido. Através dessa câmera fechada em uma van, sem ninguém que as julgasse ou repreendesse ou amedrontasse, essas mulheres encontraram uma oportunidade para, de alguma forma, libertar um pouco de uma dor que não pode ser compartilhada por diversos fatores na vida cotidiana de cada uma. E esse formato do filme, além de auxiliar na catarse vinda da fala do próprio processo de abuso, causa a catarse em quem as assiste e se identifica em algum ponto com a sua fala. O filme se estende em outros desdobramentos interativos: convida a todas as mulheres que compartilhem depoimentos online em seu portal.
Outra característica inerente aos filmes-dispositivos é que eles funcionam, individualmente, em seu próprio modelo. Não há um formato específico e universal, os dispositivos são construídos diferentemente a cada obra, de forma a fazer sentido de acordo com o seu propósito enquanto filme. Mas, nesse caso, os dois filmes exibidos possuíam uma semelhança em seu dispositivo: o confinamento em locais fechados.
A leitura em cada um traz uma simbologia forte: os homens em Câmara de Espelhos, mesmo em ambiente enclausurado, estão sentados confortavelmente em sofás, com televisão, com homens ao redor, criando um senso de companheirismo. Eles falam à vontade sobre as opressões que praticam, conscientemente ou não, em clima descontraído. Mesmo que discordem entre si em alguns pontos, e ainda que falem coisas que soem absurdas, estão à vontade. Já as mulheres de Precisamos falar do assédio estão sozinhas, em um ambiente pequeno e fechado. Ainda que a intenção seja de acolhê-las, de lhes oferecer um lugar no mundo exclusivamente delas com a oportunidade de falar sobre algo que as oprime, as mulheres se sentem acuadas, envergonhadas.
A forma distinta como os homens e as mulheres se sentem perante os dispositivos é um simulacro da sociedade em que vivemos. Essas diferentes formas de lidar com o confinamento evidenciam como os lugares de fala refletem no pensar e agir dos homens, que não se sentem responsáveis pelas suas próprias agressões (sejam elas em potencial ou realizadas). E, por outro lado, a punição, culpabilização e silenciamento das vítimas estão arraigadas nas estruturas da sociedade, e demonstram o quanto o processo das mulheres que vivenciam isso é solitário.