Guto, Pedrinho e turma do Bagaceira,
Vocês já sabem que foi a segunda vez que assisti ao Inferninho no Festival de Brasília. No ano passado, o filme ainda estava em fase de finalização, dentro da Mostra Futuro Brasil, quando recebi o convite de vocês para a primeira exibição. Talvez nem imaginem, mas saí daquela sessão com um choro engasgado. Não tinha a intenção de publicar algum texto, até porque seria injusto escrever qualquer crítica de um filme que muitos nem sequer tinham visto. Fiquei com vontade de conversar com vocês depois, mas a correria do festival também não permitiu. Troquei algumas palavras com Pedrinho, quando disse que o filme me lembrava muito de Fortaleza. Uma certa relação com a cidade, que fazia com que muita gente de lá precisasse ir embora, para depois voltar. E agora em 2018, rever o filme já finalizado acabou por desaguar todo aquele choro antes contido.
Há uns cinco anos, eu me via em Fortaleza em estado emocional parecido com o de Deusimar no Inferninho. Em uma cidade com aquela mesma atmosfera decadente do bar. Um lugar onde as coisas pareciam se repetir e tudo ao redor respirava um cansaço letárgico. No filme, a cantora sempre faz o mesmo show todas as noites e o público permanece ali estagnado em torno das mesas. Sem dinheiro no bolso, aqueles personagens – Deusimar, a cantora, o coelho, a faxineira, o tecladista – persistem em manter o bar aberto. Eles continuam, mesmo sendo difícil. Em Fortaleza, tinha essa mesma sensação de que, ainda que tudo caísse na mesmice, havia a vontade de continuar fazendo junto.
Na reviravolta do filme, homens a mando do governo querem desapropriar o bar para ser implantado o complexo de entretenimento The Virtuarium. Pensei logo no Poço da Draga, onde comunidades foram ameaçadas de remoção por causa da construção do Acquario, projeto do ex-governador Cid Gomes. Saí da cidade onde nasci no momento mais intenso de discussão em torno desse empreendimento milionário que hoje se encontra suspenso e que faz parte da lógica de investimento turístico em grandes centros urbanos. Uma cidade transformada em vidros e ferros, que não guarda uma memória. Uma cidade que se modifica tão rápido que nem reconheço mais, sempre quando volto a cada seis meses.
Mas foi nessa mesma cidade que vi florescer um dos grupos de teatro mais importantes do Brasil. Comecei a acompanhar o Bagaceira ainda no início da minha carreira como jornalista e ver os espetáculos do grupo era sempre uma experiência fascinante. Com todos eles, aprendi que era possível encontrar formas de continuar em Fortaleza e, ao mesmo tempo, criar e se reinventar. Não é nada fácil permanecer junto. Sentir o Bagaceira reunido novamente – agora no cinema – me levou a reconectar com aquela energia. Gostaria que Yuri, Samya, Demick, Tatiana, Rogério e Rafael pudessem estar na sessão para dar um abraço forte em cada um. Não consigo ver o Inferninho apenas como um filme de Guto e Pedrinho, mas também como um filme do Bagaceira. É um amálgama de experiências estéticas, que cruzam o cinema com o teatro.
Rafa, preciso dizer novamente o quanto é maravilhoso ver você em cena? Sei que você se sente bem mais confortável como dramaturgo do grupo, mas aquela sequência da conversa do Coelho com a Deusimar é um dos melhores presentes que qualquer espectador do filme pode receber. Eu me via em prantos. Pensei que estava chorando sozinha, quando olhei para o lado e vi que outras pessoas também estavam emocionadas. Tudo o que o personagem fala nos envolve como um bálsamo, ainda mais porque estamos em um momento terrível de crise, de incertezas. É preciso não maltratar mais a vida e ir atrás dos nossos sonhos.
Saí de Fortaleza, porque a cidade já me sufocava. Muitos amigos já tinham ido embora, em busca de oportunidades em outros lugares. Outros tantos ficaram, permaneceram, resistiram. Não me esqueci nunca de todos aqueles com quem criei vínculos. Amigos e familiares sempre povoavam minhas lembranças. Depois de cinco anos no Rio, vejo que é hora de regressar ao lugar onde nasci e cresci. Para quem parte, sempre chega o momento de retornar. Voltar a viver em Fortaleza será uma experiência nova.
Abração,
Camila
Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.
Tendo decidido estudar e fazer filmes – e norteado toda a minha produção e desde então – pelo desejo de perseguir, desdobrar e escancarar tudo aquilo que o mundo costuma rejeitar no feminino, eu sempre senti um interesse especial por representações de mulheres se comportando de maneiras incômodas e indesejáveis para as pessoas ao seu redor. Mulheres que vomitam a dor de existir em um mundo capitalista, machista, racista e homofóbico em vez de engoli-la e, consequentemente, voltá-la contra elas mesmas. Mulheres que, diante de um conflito, recusam-se ao gesto apaziguador tão esperado no feminino, optando em vez disso por demonstrar abertamente seu desagrado, discordância ou ressentimento. Mulheres que não esquecem e não se submetem, convencidas de que o mundo lhes deve mais do que está dando e dispostas a lutar por isso. Nós precisamos ver e ouvir essas mulheres com mais frequência para lembrar que elas são possíveis, que a sua indignação é legítima e que não, a fragilidade, a gentileza, o acolhimento, a compreensão, a resignação e o sacrifício – esses lugares de aceitação da dor tão frequentemente atribuídos à condição feminina – não são os únicos que nós podemos habitar. E o cinema, com seu poder inigualável de lançar holofotes sobre existências e imaginar novas realidades, tem um papel crucial na missão de dar voz e visibilidade a elas.
No Festival de Brasília desse ano, que pela primeira vez na sua história teve mais mulheres que homens à direção dos filmes exibidos na mostra competitiva, não faltaram exemplos de mulheres em fúria para nos espelhar e inspirar. Considerando a força e a importância do curta-metragem enquanto espaço para o surgimento de novas vozes, novos olhares e novas temáticas no cinema, é em alguns dos curtas exibidos no festival – aqueles em que a força de comportamentos femininos desviantes se fez mais presente para mim – que irei me focar a seguir.
De todas as inspiradoras mulheres presentes nas telas do Festival de Brasília, a que mais me impressionou talvez tenha sido a jovem Jaqueline de Impermeável Pavio Curto, de Higor Gomes, exibido na mostra universitária e vencedor do Prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta na categoria. Impaciente, explosiva e cheia de falsas certezas e autonomia, Jaqueline carrega seus olhos pesados de rímel, seus jeans e suas trancinhas com tanta imponência que até mesmo a câmera parece se intimidar diante dela, mantendo-se na maior parte do tempo a uma segura distância da adolescente, em planos abertos que privilegiam a nossa compreensão do modo como a personagem se relaciona com o espaço ao seu redor – no caso, não muito bem.
Como um animal enjaulado desesperado para dar vazão à toda a sua fúria e frustração com o mundo – e, assim como sua protagonista, o filme de Higor Gomes nunca se explica inteiramente, mas nos permite imaginar com muita clareza que motivos uma jovem negra, periférica e completamente alienada da mãe e suas falsas promessas teria para estar tão indignada – Jaqueline está sempre jogando objetos para longe, ignorando solenemente qualquer olhar, pergunta ou comentário que a incomodem, e em certo momento chega até a fantasiar cair no tapa com uma colega. Enquanto isso, paira sobre ela, o tempo todo, a sombra de um incidente na escola que também nunca é inteiramente explicado, mas sugere que a violência de Jaqueline, em algum momento, escapou da fantasia para ferir um objeto menos inócuo que uma chave de fenda ou uma garrafa de vidro, fazendo a protagonista finalmente encarar as desagradáveis consequências de seus atos.
Ainda assim, Jaqueline jamais se quebra, se dobra, se explica ou se desfaz. No fim, após receber mais um golpe de um mundo que não se cansa de decepcioná-la e magoá-la, ela parte estrada afora em sua bicicleta. Sozinha, ela sorri.
Tão imponente quanto Jaqueline é a Vanessa (Noemia Oliveira) de Eu, Minha Mãe e Wallace, dos irmãos Carvalho, que ganhou os prêmios de júri popular e melhor atriz coadjuvante (Noemia Oliveira) na mostra competitiva, além do prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta. No filme, Vanessa é uma mãe solteira que recebe relutantemente a visita de Wallace (Fabrício Boliveira), o pai ausente, apavorado e ansioso para conhecer a filha Gabrielle (Sophia Rocha) numa saída temporária da prisão na época do Natal. Desde o instante em que abre a porta para Wallace, Vanessa deixa muito claro que dentro de sua casa, com a sua família, tudo o que acontecer será segundo as suas regras, e que está aceitando a presença dele apenas por Gabrielle, para quem reserva todos os seus breves sorrisos e sua disponibilidade emocional. De fato, Vanessa não interfere nas interações de Wallace com a filha, e até mesmo as incentiva ao seu modo, mas jamais gasta qualquer esforço para fazer o visitante se sentir mais à vontade, forçando-o a se virar quando não sabe o que fazer e criticando-o sem pudor quando erra.
Mais velha, madura e dona de si que Jaqueline, Vanessa não se mantém à distância. Ao contrário, ela se agiganta monumentalmente sobre a câmera, encurralando-a no pequeno espaço de sua casa e até mesmo comandando-a a quebrar o seu registro de filmagem fluido e naturalista com um repentino plano frontal, totalmente fechado em seu rosto furioso, quando Wallace revela a intenção de fugir em vez de retornar à prisão, e portanto, nunca mais voltar, nunca ser um pai para Gabrielle, nunca assumi-la como prometido, levando consigo apenas uma fotografia de lembrança. “Olha pra mim caralho”, Vanessa diz, e nós olhamos, pois ela exige ser vista e ouvida, e é impossível não obedecê-la. Seu olhar, como o da Medusa – mitológico símbolo de fúria e poder femininos – nos paralisa.
No fim, Vanessa permite que Wallace tire a tão desejada foto de família e vá embora. Na imagem desbotada revelada ao fim, o rosto de Vanessa é uma rígida máscara de fúria, contando uma história muito mais longa que os vinte minutos do filme dos irmãos Carvalho poderia contar.
Em Mesmo com Tanta Agonia, de Alice Andrade Drumond, que ganhou os prêmios de melhor atriz (Maria Leite), melhor fotografia (Anna Santos) e menção honrosa de atriz coadjuvante (Rillary Rihanna Guedes) na mostra competitiva, além do Prêmio Abraccine e do Prêmio de Aquisição Canal Brasil de melhor curta, a protagonista Maria (Maria Leite) é mais uma mãe que reserva para a filha todo o seu afeto, protegendo-se das infinitas dores e exigências do mundo através de um estoicismo que beira o embrutecimento diante de tudo que não diz diretamente respeito à sua felicidade. No filme, que acompanha Maria tentando chegar a tempo para o aniversário de Julya (Julya Inhota) depois de um dia exaustivo no trabalho, apenas para ficar presa no trem quando um homem é duplamente atropelado nos trilhos, chama atenção a austeridade da protagonista, que jamais esboça qualquer horror, choque ou piedade diante da brutalidade do incidente, qualquer incômodo diante das exigências no trabalho, qualquer desagrado diante do trem lotado. Dura, cansada e muito prática, Maria simplesmente não tem capacidade para se compadecer e desmanchar diante dos infortúnios anônimos do mundo. Seu sorriso relutante e seus olhos cansados só se abrem de fato, monumentais entre as luzes coloridas, quando Maria encontra Julya, para quem reserva todo o seu amor e suas alegrias – é como se, para a protagonista, tudo que existe entre ela e sua filha fosse apenas mais um obstáculo. Como diz a fenomenal Rillary Rihanna em certo momento, Maria é “uma guerreira” – em todos os sentidos da palavra.
Dirigindo depois da festa com a filha adormecida no banco de trás, o rosto de Maria, imerso num mundo todo colorido em tons de roxo, finalmente se desfaz, transitando entre a exaustão, a tristeza e o desafio, num furioso grito sem palavras que a música ao fundo canta: esse é o mundo de uma mulher.
Finalmente, em Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, a fúria feminina é representada não por um rosto ou uma voz específicos, e sim por uma onda de mulheres silenciosas e anônimas que, escapando como um jorro de água sob a força da “pressão assediadora das ruas”, recobrem a cidade buscando invocar o poder de uma mulher lendária – “circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda” – que vive num lugar oculto, à espera daqueles que não têm um lugar no mundo e capaz de reviver e tornar livres e fortes todos os seres que correm o risco de se perder.
Vestidas em trajes fantásticos, essas mulheres percorrem as ruas frias e vazias de uma cidade que claramente não lhes pertence como se estivessem em batalha – como de fato estão – marcando territórios, rastejando nos subterrâneos, se esgueirando e correndo pelas sombras. Paralelamente, reúnem-se num recanto úmido e profundo, uterino, perpetuamente banhado por uma suave luz vermelha, onde compartilham brincadeiras, histórias e contemplações ao som de risos abafados. Que todas essas explorações, mesmo que urgentes, jamais estejam acompanhadas por uma sensação de ameaça para essas mulheres vagando pela noite, é um feito fabuloso do filme, que nos faz acreditar verdadeiramente nesse poder de comunhão, ocultamento, cura e comunicação entre mulheres.
Sobre uma obra construída por símbolos, códigos e linguagem tão próprios, tão desinteressados no discurso padrão de todos os dias, é difícil formar qualquer tipo de certeza, mas se eu fosse escolher alguma, seria essa: quem corre perigo, no sombrio e gotejante universo de Boca de Loba, não são as mulheres – são seus inimigos. É uma mudança bela, e bem-vinda.
Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.
Ainda assim, nós estamos. Furiosas, na verdade. Há um limite, afinal, para o tanto de violência que uma mulher é capaz de digerir dia após dia sem acabar implodindo ou explodindo, e se o mundo nos ensinou que o certo é voltar toda a nossa fúria para dentro de nós mesmas em nome da conveniência alheia, bem, os tempos nos mostraram que, doa a quem doer, nós não somos obrigadas a cumprir regras que não ajudamos a criar.
A nossa fúria é uma rebelião, e ela está só começando.
Fiquei pensando porque Liberdade (2018), de Pedro Nishi e Vinícius Silva, foi um curta que tanto mexeu comigo. Gostaria de ter podido revê-lo para escrever este texto, mas no vazio entre a lembrança – em meio aos dias intensos de Festival – até então, surgiu algo muito profundo em mim que desejo compartilhar com vocês. Apesar de reconhecer várias potências no filme, como pautar a imigração africana em São Paulo, em um bairro conhecido pela imigração japonesa, sabia que esse plano político tão direto não era o motivo genuíno de meu encantamento.
São três personagens. Primeiro, Abou, que nos conduz. É guineense e por vezes tem encontros com uma japonesa, Satsuke, de presença espectral. O filme também é marcado pela participação de Sow, que passa grande parte do curta preso no aeroporto – um não lugar – e ali fica por dois dias por ter o visto de entrada não aceito no Brasil. Ele vem de Guiné ao encontro de Abou, e traz consigo os instrumentos de música do amigo. Abou e Sow encaram a câmera em diversos momentos, mas apenas a voz de Abou aparece fora de campo, em dissincronia, num texto em forma de ensaio, que nos decupa as camadas de tempo que cobrem aquele espaço, o bairro da Liberdade.
A um primeiro olhar, eu logo imaginei que minha profunda conexão se deu pela paixão que tenho pelos filmes-ensaios. Lembrei-me de Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, Là-Bas (2006), de Chantal Akerman, e Sans Soleil (1983), de Chris Marker. Os filmes-ensaios não se encerram em si próprios. Trata-se de um discurso em construção que fica reverberando e se reconstruindo em nós após a sua fruição. São marcados principalmente pela narração em off, pelo subjetivismo e por estarem na fronteira entre ficção e documentário. Talvez entre esses filmes citados, apenas Hiroshima, Mon Amour traria alguma dificuldade para este enquadramento, mas aqui acatei principalmente por sua primeira sequência.
Desses elementos que configuram filme-ensaio e no qual insiro Liberdade, destaco algumas características singulares que me foram levando a elaborar mais sobre minha experiência com o curta. Os personagens presentes em todas as obras citadas narram sua estranheza em terras que não habitam ou já habitaram, o sentimento em sua condição estrangeira. Assim, são envoltos nessa melancolia que é decorrente do despatriamento. Há também a forte subjetivação, são narradores em primeira pessoa. Claro que cada um na sua proporção. Em um polo, vejo Hiroshima, Mon Amour, que é mais discreto nesse sentido, emprestando aos personagens esse lugar de fala; no outro polo, há Là-bas, em que a subjetividade impera, é a própria realizadora narrando suas impressões tão íntimas acerca da sua herança judia. E acima de todos (tendo uma perspectiva tridimensional e não valorativa nesta relação), está Sans Soleil, uma espécie de memória de todos, nos confrontando com a experiência de tempo e espaço e uma percepção insana da memória. Liberdade se posicionaria no meio, sendo mais atraído pela gravitação do filme de Resnais, por conta das encenações e personagens delimitados.
Mas há também diferenças marcantes entre esses filmes. O Hiroshima, Mon Amour, apesar da inventividade que lhe dá a marca inaugural do cinema moderno, trata-se de uma narrativa, com personagens bem demarcados, operando o off de maneira dialógica. Na belíssima sequência de início, há imagens de Hiroshima após a Bomba: imagens de horror! Os personagens se situam no extracampo numa relação dialética de aproximação e distanciamento daquele território. Como se a dor, ali sentida pela guerra, devastasse os sentimentos nesse turbilhão de repulsa e atração. Já em Sans Soleil, não há personagens marcados como em Hiroshima, nem uma memória individual como no longa de Akerman, mas uma história de muitas memórias, de diversas temporalidades e espaços. E em Liberdade, é a memória ocultada pelas camadas de tempo que nos é revelada.
E provoquei essas lembranças porque elas surgiram ao assistir Liberdade naquele domingo de Festival. Por estas recordações, percebi que meu encantamento pelo curta está na relação entre tempo e espaço por meio da linguagem cinematográfica. Cada um dos demais filmes que citei anteriormente distorcem essas linhas aparentemente conexas em ângulo reto. Pela ruptura do plano cartesiano, promovem tangenciamentos entre essas dimensões, provocando uma dobra no espaço-tempo. Especificamente em Liberdade, há um fluxo vertiginoso de encontro entre tempo e espaço, mas de maneira compassada, não é feito num rompante, contudo, se chega ao seu epicentro de maneira espiralada, como se fôssemos tragados por um redemoinho, ou melhor, pelo rodopio da dança que vemos em seu terço final (ao som dos instrumentos de Abou).
Um canto evoca ancestralidade, que tanto pertencem aos personagens, quanto a formação do Brasil como nação. O bairro da Liberdade é conhecido pela migração japonesa, que tão orgulhosamente é lembrada pela própria construção arquitetônica daquele espaço. Mas Abou se apresenta como um imigrante que habita aquela área como os demais africanos imigrados ao Brasil nos últimos anos. Mesmo assim, o bairro é conhecido pela migração de japoneses e de outros orientais, que já não mais ocupam essa região. Logo, Abou começa a acessar essa dobra no espaço-tempo, rompendo com a memória estabelecida daquele local e se utiliza de uma regressão temporal, em mais de três séculos. Não estamos mais na Praça da Liberdade, mas sim no Largo da Forca, ao lado de uma capela, a dos Aflitos e também de um cemitério para esses corpos marginalizados. Naquele mesmo bairro, algumas poucas centenas de anos atrás, havia um Pelourinho, escravos negros africanos eram torturados das mais vis maneiras. O canto de dor ali permanece, mesmo sendo sobreposto por camadas e mais camadas de tempo que ressignificam aquela região, sendo marcada pelo fluxo migratório oriental, mas jamais lembrada pelo fluxo de negros africanos da atualidade.
O curta se utiliza de um recurso fotográfico para enfatizar esse ocultamento. Vários planos estáticos, como se fossem retratos, de imigrantes negros estão subexpostos. Impossível identificar aqueles sujeitos. Após o descortinamento da história deste bairro, voltarmos a ver aqueles planos-retratos, mas a exposição é por fim ajustada. Dessa maneira, conseguimos enxergar rostos antes ocultos. Os espaços parecem se transformar, mas eles continuam muito os mesmos, como se as dobras no espaço-tempo mantivessem fissuras por onde a dor do passado ainda reverberasse no presente. A história simula uma progressão, mas ela repete os mesmo padrões de opressor e oprimido. E findando com esta inquietação, ouço ao fundo, baixinho, surgindo em fade out, um canto triste, com o qual termino esse texto. E não é a música que esperamos ouvir de Abu e seus amigos, na expectativa da entrega dos instrumentos por Sow, pois aqui empresto a minha subjetividade para finalizar o texto com as três primeiras estrofes do Canto das Três Raças, que agora chega em primeiro plano:
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Sempre me surpreendo quando o horror é tratado como um gênero apolítico e distanciado da realidade. Entendo que o uso de artifícios e metáforas para tratar dos nossos medos e ansiedades possam parecer um apelo a sentimentos poucos racionais, mas, observando os debates políticos, me parece que são justamente as emoções que mais têm ganhado adeptos de todos os lados da disputa. E isso não acontece só em eleições tão polarizadas quanto as que tivemos em outubro. Mesmo quando tomamos decisões a partir da razão, nos apegamos a nossas escolhas de forma apaixonada, procuramos pelos afetos que corroborem nossas convicções.
Falar sobre o irracional, o inconsciente, o que nos amedronta, isso não é se esquivar da realidade, é admitir e abraçar o fato de que somos movidos por forças mais complexas do que o pensamento lógico consegue abarcar. Como podemos dar as costas para um gênero que fala sobre o medo quando esse é o sentimento motivador de boa parte dos eleitores brasileiros? Alguns têm medo da ameaça comunista, outros das feministas, outros do fascismo, da misoginia, do racismo. Os medos existem de todos os lados, mas eles representam modos de ver, pensar e sentir muito diferentes e isso pode e deve ser examinado pelo horror. Onde nasce o medo? Quem são nossos monstros?
Já há algum tempo os monstros no cinema não são mais os mesmos dos filmes de horror do começo do século XX. Se antes eles representavam o perigo da floresta, o desconhecido, o Outro, os monstros têm estado cada vez mais próximos de nós. Eles têm sido protagonistas, heróis e anti-heróis, interesses românticos, amadas criaturas em animações infantis. A monstruosidade que diferencia os corpos aceitáveis daqueles que não o são, essa monstruosidade é algo que muitos de nós compreendemos. O corpo negro, o corpo gordo, o corpo queer, o corpo insubmisso da mulher, corpos que se atrevem a existir apesar da constante ameaça de apagamento e extermínio, esses corpos compartilham uma inadequação num mundo repressivo e conservador que encontra muitos paralelos nos monstros. E enquanto a forma monstruosa tem sido vista por uma luz cada vez mais positiva no cinema, nossos medos têm se voltado cada vez mais para nós mesmos. Como escreveu Angela Carter, ‘os piores lobos são peludos por dentro’.
Quando falo de um medo voltado para nós mesmos, não me refiro apenas a questões do indivíduo, mas a movimentos estruturais da sociedade de que fazemos parte e que mantemos em funcionamento. O medo voltado para nós mesmos diz respeito a nossa solidão, nossas doenças mentais, nossa desconexão, mas esses são apenas sintomas de um problema maior que se relaciona menos com o indivíduo e mais em como se organizam as relações humanas na contemporaneidade.
No curta-metragem da diretora Gabriela Amaral Almeida A Mão que Afaga, uma agente de telemarketing prepara a festa de aniversário de nove anos do filho. As referências ao horror na linguagem do filme causam um desconforto que provoca mais riso que medo, a inaptidão social de Estela (interpretada por Luciana Paes) assim como a iluminação dramática das cenas do apartamento apontam para o horror e o absurdo do cotidiano com um humor ácido. O verdadeiro pavor para mim, entretanto, está nas cenas de Estela no trabalho, onde vemos vários rostos e vozes indistintas que ligam para pessoas que nunca conhecerão, pessoas que se sentem no direito de hostilizar e humilhar os agentes de telemarketing porque esqueceram que existem pessoas com sentimentos do outro lado da linha. A busca por conexão de Estela é cômica, trágica e dolorosamente humana. Essa humanidade, tão frágil e tão rara, é também o que se perde e o que se procura no mais recente filme de Almeida, A Sombra do Pai, exibido no Festival de Brasília deste ano.
O longa é marcado por ausências. Dalva de 9 anos tem que lidar com a ausência da mãe que faleceu, a iminente ausência da tia que vai casar e deixá-la e a ausência do pai que está sempre trabalhando. A ausência de Jorge, o pai de Dalva, como bem ilustra o título, deixa uma sombra: seu corpo. Depois do cadáver da esposa ser exumado, ao invés de ir para casa lidar com seu luto, Jorge volta ao trabalho. Depois que sua irmã deixa sua casa, ao invés de ficar com a filha, Jorge volta a trabalhar. Jorge não é mais uma pessoa, é uma máquina, um corpo que não processa dores ou alegrias, apenas trabalha ininterruptamente até adoecer e esquecer que um dia foi gente.
Se os zumbis de George A. Romero representavam as massas consumistas e descerebradas caminhando em direção a shoppings em grandes grupos, o zumbi de Almeida é solitário, ao invés de consumir, ele apenas produz, não lhe falta o cérebro e sim sua alma. Mais que a ausência material, o que se sente é a perda dos afetos, enquanto Jorge continua seu interminável trabalho maquinizado e hostil, o trabalho emocional que exigimos que as mulheres exerçam não pode ser executado, as mulheres se vão, morrem, fica Dalva, ainda menina e relegada a carregar todo o peso desse trabalho ingrato. Ela é capaz de fazer algumas tarefas de casa, mas precisa conjurar forças sobrenaturais para suprir suas carências mais profundas.
Para Dalva, os filmes de horror de madrugada, a trança de sua mãe morta, suas pequenas bruxarias, é ali que ela encontra algum grau de controle no mundo. Seu conforto está no que se convencionalmente atribui um caráter repulsivo, trata-se de uma estranheza familiar, uma conexão com o irracional e o abjeto que a mantém mais próxima da humanidade do que o mundo civilizado e industrial de seu pai é capaz. E não é essa uma das grandes contradições da contemporaneidade? Quanto mais nos agrupamos em cidades gigantescas, mais solitários nos sentimos. Quanto mais próximos do mundo construídos pelos homens, mais longe nos encontramos da nossa humanidade. Existem horrores piores que bruxas, fantasmas e mortes sangrentas: o vazio intransponível que existe entre uma pessoa e outra.
“Por que eu escrevo?
Porque tenho que
Porque minha voz
em todas as suas dialéticas
foi silenciada por muito tempo”
Jacob Sam-La Rose
Emerson, que viveu e cresceu em Ilha Grande, decide fazer um filme. Para isso, sequestra um cineasta, Henrique, para dirigir a história de sua vida. Somos desafiados a entender, junto a Henrique, não só como (e se) é possível filmar a história de uma vida, mas como contar/mostrar aquela vida, em específico, daquele homem preto, pobre, confinado. Assim começa Ilha, segundo longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio, que estreou no 51 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e levou o (merecido) prêmio de melhor roteiro.
Henrique, o sequestrado, quer saber porque deveria se engajar naquela história, se submeter à agressividade, à ironia de Emerson. O desconforto e a claustrofobia de Henrique são os mesmos a que somos expostos ao acompanhar o início da história, e ele é benéfico: cumpre a função de nos fazer, como espectadores, ajustar o olhar, ajustar o foco, minuto a minuto. Em Ilha, a linguagem é rápida, quase estressora, em muitos momentos como se avisasse que algo está prestes a estourar. Tal tensão é o sentimento que Emerson impõe ao filme, por sua indefinição, por sua dilacerante tentativa de recriar cinematograficamente a própria vida, por sua recusa em deixar Henrique escapar ao envolvimento com aquela história, com aquelas imagens/cenas da vida do homem que nunca deixou a ilha.
À medida que Emerson se revela em meio à escolha do elenco de seu filme, entre ensaios e filmagens de momentos chave de sua vida, aquele personagem, homem preto, pobre, confinado àquele lugar, vai se complexificando, torna-se difícil confina-lo ao histórico papel do Outro reservado às pessoas negras, racializadas, marcadas. Somos obrigados, se quisermos tentar compreender (verdadeiramente) Emerson, a abrir mão de inúmeras imagens, discursos, histórias preconcebidas sobre quem ele é, o que quer, o que pode fazer, que sonhos pode ter, se tem direito à sobrevivência. “Quem é o homem preto?”, ecoava na minha cabeça ao sair da sala de cinema. Pode esse homem preto falar?
“Eu não posso ir ao cinema. Eu espero por mim. Ele [o branco] espera pelo(a) Negro(a) selvagem, pelo(a) Negro(a) bárbaro(a), pelos(as) serviçais Negros(as), pelas Negras prostitutas, putas e cortesãs, pelos Negros(as) criminosos(as), assassinos(as) e traficantes. Ele espera por aquilo que ele não é.”
Franz Fanon
Emerson fala, e fala muito, é verborrágico, sua verborragia é a trilha do filme, dita o ritmo. Tem na garganta entalada uma história própria para contar e ela não é fácil de colocar em uma caixa. Para nós, pretos, é um encontro de imagens que exprimem afetos não permitidos, pouco vislumbrados imageticamente, apagados pela subalternidade que o cinema, historicamente, reproduz muito bem. Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem em Ilha esse retrato desconcertante, cru, da urgência voraz de um homem que não pede licença, é agressivo, mas também amoroso, pesaroso. Se revela traficante, envolve-se sexualmente com Henrique, confessa que fora violentado. Mas antes que se possa pensar “então esse é Emerson” ele se revela sempre mais. Perfeccionista, angustiado, carinhoso, genial.
Ilha, ao recusar-se a definir, acaba por denunciar a precariedade das imagens que aceitamos, ou que nos são introjetadas continuamente. Tem imagens e discurso que desafiam o imaginário branco, ou as fantasias brancas do que deveria ser a negritude, a sexualidade e afetividade do homem negro diante de outro homem negro. Sobretudo nesse aspecto, seria ambicioso da minha parte tentar delinear todos os signos ali presentes dessa masculinidade, para isso é bem melhor confrontar-se com o filme, e mais ainda com o filme dentro do filme, realizado por Emerson. Ali está uma tentativa dilacerante em entender a si mesmo, diante das imagens da mãe, do pai violento e abusador, do cão assassinado. Que menino preto foi aquele, preso na Ilha, que queria fazer cinema, atado à morte? Sobreviver era uma escolha?
Emerson, ao tentar apropriar-se de si, das próprias imagens, da própria vida, por fim revira Henrique por dentro até que cineasta reencontra propósito no fazer cinematográfico. O que se constrói entre os dois homens, a mistura e o desnudamento – literal e metafórico – a que se entregam no processo de feitura do filme, é também a própria representação do exercício de humanização profunda que os diretores realizam em Ilha. Através de Emerson e Henrique, um silêncio é quebrado, e torna-se evidente: confinar o homem preto é um enorme desperdício de possibilidades, de potência, de vida. Como humanidade, perdemos todos.
Foi difícil começar a escrever sobre Temporada. Assistido naquela sala enorme onde acontece o Festival de Brasília, à medida em que seu tempo de duração avançava, eu sentia uma excitação tranquila tomar conta ao perceber o que estava diante de mim. Algo meio mágico, místico. Era um filme especial. Por isso mesmo, a dificuldade: como escrever um texto inteiro tecido em elogios que contribua para uma discussão estética? Como evitar a generalização e delimitar o que conferia ao filme tamanha suavidade e precisão?
Temporada acompanha Juliana, personagem vivida pela grande atriz e dramaturga Grace Passô, que se muda de Itaúna para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, consegue uma vaga para trabalhar no combate a endemias e espera a chegada de seu marido no novo endereço. A marca do naturalismo e sensibilidade com os quais o diretor e roteirista André Novais Oliveira trata suas histórias, em filmes anteriores vividas por atores não profissionais de sua própria família e de sua convivência, como em seus curtas-metragens e no longa-metragem Ela volta na quinta (2014), permanece presente.
Juliana, aos poucos, constrói laços com os personagens e com o espaço da cidade em seu novo contexto. Em planos em tons de azul claro com pitadas de amarelo e vermelho, assistimos a suas caminhadas pelos bairros batendo de porta em porta e interpelando desconhecidos para prevenir os focos de mosquitos. As interações são singelas. Vemos seu ponto de vista do alto de um telhado. A paisagem da cidade se alterando, Juliana como parte dessa paisagem.
Os laços que Juliana tece são tecidos por nós também. Os novos amigos de Juliana, com destaque para o personagem de Russão, são também nossos. Estamos ali. Na conversa que Juliana tem com uma amiga na pequena mesa encostada na parede da cozinha, em que o sentimento de confissão e confiança é tremendo, sentimos que também estamos guardando um segredo. A preocupação carinhosa que Juliana tem com os acontecimentos na vida de Russão é nossa também.
E, portanto, de cena em cena, de diálogo em diálogo, de movimento de câmera em movimento de câmera, com eventuais clarinetes, dos azuis aos amarelos até chegar ao maiô vermelho na cachoeira, Temporada se constrói como uma obra ritmada, de tempos e sensações que parecem ter sido esculpidos; chega a parecer uma música. Digo naquele sentido de que os sons, as canções, tocam o âmago de uma maneira tão visceral e simples que é difícil de ser destrinchada (e queremos destrinchá-la?).
Ao mesmo tempo, vejo Temporada como um filme de cumplicidade. É um filme de silêncio: o nosso, do espectador, que silencia para ouvir melhor. Para sentir um clima e intuir. Sem megalomanias ou exageros de complexidade artificialmente implantados com o objetivo de produzir emoções específicas, sem uma instrumentalização óbvia do cinema. E, nesse sentido, me peguei pensando no potencial político de um filme como esse.
Caminhando pelo Festival de Brasília nas edições dos últimos quatro anos, foi possível ouvir comentários pejorativos sobre a política que se constrói nos filmes. Como se um filme político fosse um filme que não pensa suficientemente na forma, na estética, em questões existenciais e universais. Como se fosse possível fazer um filme sem se imbricar na forma, na estética e em questões também universais. Existe um olhar anacrônico que defende que um filme precisa optar entre a política e a estética. E, normalmente, é justamente esse olhar que cobra de sujeitos que escapam aos marcadores sociais hegemônicos (que talvez possam ser definidos no Brasil como: um homem branco, heterossexual, da capital, sudestino e de classe média alta) algo que represente alguma “reivindicação” evidente.
Quando a estrutura que nos constrói como sujeitos históricos está organicamente entrelaçada à experiência do filme, por vezes corre o risco de se tornar ponto cego no olhar dos que nunca precisaram fazer esse esforço para ver. Desacostumados. Felizmente, sinto que o caminho que tem sido trilhado possibilita que cada vez mais essas opacidades no olhar sejam desmanchadas e/ou reconhecidas; que exista ao menos consciência do que não se vê, do que não se ouve. Em Temporada, ouvimos e vemos nossos arredores (os de Juliana, na verdade). Sentimos o tempo passar entre as caminhadas, a mudança do penteado, a nova estação vindo no vento.
Não sou a primeira a dizer que o filme de André Novais Oliveira sinaliza algo nesse sentido de uma política que se dá pelo cotidiano e pela relação. Entre masculinidades, feminilidades, negritudes, ausências e presenças, a existência no espaço de Contagem. Questões sociais fundamentais dessa rede de afetos e solidões de Juliana estão presentes ali no filme para serem sentidas, vividas e discutidas, enquanto há essa magia no ar que se alastra. Temporada é um filme preciso, suave e verdadeiro. É especial, por ser assim de uma forma que talvez não deva ser esmiuçada em palavras, muito menos em termos técnicos. Uma questão de intuição.
Leia também o texto sobre Ela volta na quinta (2016).
Evelyn Cunningham foi uma jornalista americana envolvida em iniciativas das lutas negras e feministas, uma figura chave na disseminação de notícias durante o movimento dos direitos civis dos Estados Unidos nos anos 1960. Nos corredores da internet, aparecem referências a uma citação dela que diz mais ou menos assim: as mulheres são o único grupo oprimido do qual é socialmente exigido que amem, intimamente, seus próprios opressores.
Ao se falar dos usos políticos do cinema no momento atual, é natural que se caia na questão de filmar o inimigo (1), de como essa relação pode se dar através da câmera, de uma performance da imagem e som e da própria relação entre o eu e o outro que me fere. Essas questões estiveram muito presentes para mim no último Festival de Brasília, em especial com um dos longa-metragens em competição. Pode-se pensar que falo do filme Por trás da linha de escudos, de Marcelo Pedroso, mas não. O filme em questão é Construindo Pontes, da veterana diretora de fotografia Heloísa Passos em seu primeiro longa.
As discussões sobre filmar o inimigo em 2017 muitas vezes se concentraram em uma perspectiva macropolítica de pensar as grandes instituições que detém poder econômico, midiático, social, provavelmente também pelo momento de convulsão política mais óbvia que o país tem vivido nos últimos anos. Dentre os filmes recentes que se pode inserir nesse diálogo, um deles trata a questão da condição feminina de forma mais frontal: o longa-metragem Câmara de Espelhos, de Déa Ferraz (2), usa estratégia de dispositivo ao colocar homens que se voluntariam a opinar dentro de uma sala para assistir a fragmentos midiáticos e dar voz às suas percepções. Antes fosse curioso ou surpreendente este fato, mas não o é: as convicções e opiniões desses homens são parecidíssimas, o que leva a pensar no título do documentário. Apenas um dos homens, um infiltrado cuja posição política supostamente se alinha a da diretora, deve fazer a voz do “homem sensato”, e ainda assim não consegue. Não é capaz de se posicionar nem de apresentar dissenso que incentive debate diante daqueles homens e suas opiniões nocivas, o que é também sintomático.
A distância da diretora em relação aos personagens do documentário, em relação àquele ambiente que ela cria, pode ser quase alentadora se colocada em paralelo ao nosso cotidiano. Estar longe daquela sala fechada repleta de homens cheios de opiniões, presente através do ponto de escuta no ouvido do “homem aliado”, no controle das câmeras e dos microfones e da escolha dos vídeos a serem apresentados para aquele grupo. Uma situação de poder — digito, com ironia, pois esse poder só funciona em comparação ao des-poder usual. Fora do filme, aquelas pessoas não são meros desconhecidos: são colegas de trabalho, irmãos, pais, namorados, maridos, amigos.
Talvez aqui se encontre o ponto que me pegou no filme que leva a essa reflexão, o já mencionado Construindo Pontes, de Heloísa Passos. Heloísa filma um membro da família pelo qual é esperado que se tenha amor. Seu pai. Ela filma alguém que conhece bem, com quem conviveu intensamente durante infância e adolescência. Ela filma alguém que se beneficiou diretamente da ditadura militar brasileira, um engenheiro que trabalhou nas obras iniciadas pelo governo militar. Assistindo ao filme, eu tenho a impressão de que sei que ela sabe que a sua própria trajetória como diretora de fotografia está entrelaçada à vida que seus pais lhe proporcionaram. De forma irremediável, ela faz parte dessa história. (Todos fazemos). Heloísa – mulher de esquerda, artista, homossexual, branca, vinda de uma situação econômica confortável, personagem principal do documentário junto ao seu pai – está com raiva. E não sabe lidar.
É louvável que um filme parta de um lugar tão honesto de conflito interno, não só pela coerência com o quê o move, mas por este ser um lugar de conflito que é pervasivo nesse momento histórico, especialmente para mulheres. No debate do filme durante o Festival de Brasília, comentaram que Heloísa era desagradável no filme, que ela era irritante, e que ele parecia um senhor muito gentil. Um crítico da plateia respondeu comentando que os piores tipos de pais abusivos são os que parecem ser muito gentis. Para além das possibilidades de percepção, parte de uma ética da diretora, das roteiristas e das montadoras expor a situação de uma forma que não delimite com exatidão heróis e vilões, ainda que esteja explícita a opinião e o sentimento da diretora-personagem. O filme permite que o próprio filme “dê errado”. Diversos dispositivos que a diretora propõe não se realizam, eles não funcionam, chegando ao ponto de o pai questionar a proposta da filha sobre o filme durante o próprio filme. O pai parece disfarçadamente se rebelar em relação aos pactos do filme, ao mesmo tempo em que colabora ativamente para o seu fazer: repete takes indefinidamente, aceita que a filha o acompanhe, aceita acompanhar a filha em uma viagem, mas se recusa a ceder a ou talvez sequer a enxergar o que ela espera do filme. E é nessa recusa, nessa impossibilidade de encontro, de resolução, que o filme se faz.
O nó de se colocar na posição de filmar uma relação de desequilíbrio de poder que existe na micropolítica, dentro de casa, dentro da intimidade é algo que me parece de extrema importância no exercício do cinema feito por mulheres. Parafraseando o texto de uma colega (3), “desconstruir” nossos pais/avôs/maridos/namorados/amigos não é militância, não é intolerância política e não é extremismo; é estratégia de sobrevivência. Heloísa saiu de casa pela dificuldade de convivência com o pai e fica a inferência no filme de que isso tem a ver com sua orientação sexual e afetiva. Ao voltar para fazer o filme, a diretora compreende que filmar inimigos hoje intenta talvez reconhecer em que medida podemos ser inimigos também. Fica, para mim, a impressão de que nenhuma ponte entre os dois é construída no filme, que a cada vez que uma começa a se esboçar é logo em seguida derrubada. Cada um olha para uma direção distinta. Se existe alguma ponte ali, ela só pode ser o próprio filme, este sim construído pelos dois. Que seja essa a ponte do título também não requer uma interpretação moralista e pacificadora; uma ponte é só uma ponte, é preciso atravessá-la.
(1) Como filmar o inimigo?, de Jean-Louis Comolli.
(2) Falamos sobre Câmara de Espelhos na época de sua exibição em outro texto do Verberenas
(3) http://www.deixadebanca.com.br/2016/05/desconstruindo-meu-namorado.html
Portugal em crise econômica. Teresa chega à casa de Francisca para uma temporada em Belo Horizonte. O que sabemos de seu passado está contido em apenas uma foto, em um único plano. A cidade onde envelheço, de Marília Rocha, ganhador na categoria melhor filme no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é um filme sobre o presente.
“A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa.
Os conflitos culturais aparecem nas falas de Francisca que se incomoda com a audácia brasileira em pedir cigarros o tempo todo, ou mesmo com a falta de senso estético em relação aos azulejos do banheiro: cada um em um tom diferente de azul. Nessas minúcias, encontramos o que seria o imaginário de cada país. Mas de novo, o singular se coloca enquanto paradoxal: Teresa não vê problema na aleatoriedade dos azulejos, tampouco em chegar de madrugada fazendo barulho na casa da sua anfitriã.
As relações Brasil-Portugal são pano de fundo para uma história que, na verdade, trata-se de afeto, de amizade, de amor. Entretanto, as implicações pertencentes aos imigrantes estão expostas, de forma sutil, porém realista. O sentimento de saudade é compartilhado, já que a palavra existe unicamente na língua portuguesa. A sensação de não-pertencimento também aparece. Teresa corre pela rua e conseguimos ver os espaço da cidade, o concreto, enquanto a personagem narra uma carta destinada a um parente ou amigo em Lisboa. Nela, a portuguesa fala mais sobre suas impressões do que as ações de fato. O estado concreto das coisas não existe. Quando se é estranho a algum lugar, as impressões são mais primordiais do que os fatos em si.
A chegada da amiga assusta Chica, a princípio, que teme perder a sua liberdade e individualidade por morar só no centro de BH. Teresa vai se aconchegando ali naquele apartamento, bem como a própria câmera que também se aconchega entre os afetos rememorados e recém-construídos entre as duas. São vários planos-sequências que no desenrolar da trama vão ganhando aspectos cada vez mais naturalistas, assim como a amizade das moradoras, que de início é permeada por certos constrangimentos, mas ao conquistar os espaços de intimidade torna-se carinhosa.
Neste sentido, a atuação das duas protagonistas ganha notoriedade. Foram poucos ensaios, com participação da atrizes também na criação do roteiro, a linguagem, assim, torna-se um tanto documental e consegue trazer tons de intimidade ao longo da narrativa.
Este favorecimento do estar junto, do encontrar o outro e partilhar com ele o uso dos prazeres, das emoções, dos sentimentos é o que vai ser o explorado no longa. Poderíamos falar sobre um estilo calcado no presentismo. No entanto, bem diferente do romântico carpe diem – “aproveite o dia, pois ele é belo”. A cidade onde envelheço não só enquanto temática, mas em termos de linguagem e de estética, nos fala muito sobre nossos tempos. O presentismo é aqui calcado numa espécie de materialismo espiritual: só o presente existe, e não nos resta nada mais a não ser aproveitá-lo. É por isso que amizade e as relações talvez pareçam ser mais sinceras, pois não há outro momento para que o afeto aconteça. Muitos colegas que assistiram ao filme tiveram a mesma sensação: “fiquei esperando o momento que as duas iriam se pegar”, mas isso não acontece. O carinho e o afeto de Chica e Teresa poderiam muito bem se misturar com a sexualidade, no entanto, a preocupação é outra: por que não vivemos na materialidade do sentimento? O que impede uma amizade de ser tão afetuosa? Sendo assim, ela logo denotaria o interesse sexual? A amizade, neste sentido, é vivida em sua maior intensidade.
Para além da relação entre as duas protagonistas, o filme busca retratar a subsistência estética em outros aspectos da vida. Quando partem de Lisboa para o Brasil, Chica e Teresa não estão em busca de viver uma vida bem sucedida nos termos do senso comum. Elas buscam mesmo sobreviver. E sobreviver não significa mais do que sentir.
No final, a predileção pelo presente aparece de novo. Francisca vai voltar para Lisboa, mas não avisou a amiga de antemão. Afinal, o futuro existe? O que é certo é que, tanto para Francisca quanto para Teresa, a busca pelo sentido da experiência é um objetivo.
“A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.”
— Fernando Pessoa como Bernardo Soares no Livro do Desassossego
A intimidade é o tema central dos filmes de André Novais, cineasta mineiro, diretor dos curtas-metragens Fantasmas, 2010, e Pouco mais de um mês, 2013. Em Ela volta na quinta, 2014, não é diferente. Novais apreende o cotidiano doméstico de Noberto e Maria José, um casal de idosos com dificuldades em se relacionar após 35 anos juntos. A trama ficcional, no entanto, com personagens reais – quem atua é a própria família do diretor – nos surpreende ao levantar discussões para além da linguagem cinematográfica. O fim de um relacionamento de anos, a dificuldade de seguir os sonhos, o sentimento de apego, a velhice, as questões sociais e tantos outros temas elevam a qualidade de Ela volta na quinta, que deixa de ser apenas uma obra experimental para se tornar um ensaio sensível sobre a vida cotidiana. Sem megalomania ou “grandes dramas”, o longa retrata nada mais do que a vida doméstica e íntima, ela própria digna de poesia.
É nas minúcias que André encontra o inteligível: em um diálogo com o irmão em que mostra um vídeo engraçado no YouTube ou na trajetória de trabalho do pai ao deixar cair uma geladeira já quebrada que deveria ser levada para o conserto. Em situações tão específicas, pontuais, irrisórias se acessa o espectador de forma terna – nos sentimos parte da situação dando boas risadas. Em contraponto, também podemos nos emocionar com o diálogo sobre sonhos e capacidade de realização dos mesmos entre a mãe e André, enquanto o diretor tira a pressão da genitora. Neste ponto, Novais opta por um recurso bastante utilizado durante o filme: a ausência de plano e contra-plano, deixando a câmera fixa e próxima ao rosto de Maria. Quando vi o filme pela primeira vez no Festival de Brasília em 2014, chorei ao assistir essa cena. São diálogos comuns; eu diria, até banais – e é justamente por isso que têm a capacidade enorme de acesso ao espectador. Todo o banal é poético. Relembro o Manifesto de Poesia escrito por Pasolini que discutia a presença de poesia no cinema; neste manifesto, entre vários apontamentos sobre discurso e linguagem cinematográfica, Pasolini discute sobre a imersão do autor na alma da sua personagem e que seria necessário não só a adoção da psicologia como da língua dessa personagem. Nesse sentido, o longa que mistura personagens reais que vivem uma ficção ganha vários pontos em noção de poesia. Ali todos falam a mesma língua. Nem podemos dizer que os “personagens foram bem construídos”, como comumente fazemos ao criticar obras cinematográficas. Afinal, todos aqueles personagens “estão se construindo”, eles são reais, participam de um devir que acompanhamos durante a narrativa. A ausência do contraplano, os planos fixos e contemplativos nos aproximam desses personagens de forma substancial. Os diálogos ordinários colocados criam simultaneamente sensações de distanciamento e proximidade que nos deixam em estado de fascínio, sem saber muito bem o que pensar sobre a obra.
Recentemente debrucei-me sobre um projeto que envolvia aspectos dos relacionamentos e da velhice na vida afetiva. Cheguei a conclusão um tanto simplista, porém realista. A vida seria dividida em três partes: envelhecer, construir nós e desatar nós. Além de Simone de Beauvoir, que escreveu A Velhice, e de tantos outros escritores, filmes como Ela volta na quinta me ajudaram bastante a pensar sobre os aspectos que envolvem o envelhecimento e principalmente o sentido do amor nesse período da vida. É muito difícil falar sobre o amor. Há quem diga que a melhor forma de falar sobre ele é não tocando em seu nome, mas exemplificando, metaforizando – sem teorizar. É exatamente isso que Novais faz em seu primeiro longa. Um casal de idosos que pretende se separar pois já não conseguem mais estabelecer um diálogo. Não vemos barracos, tão pouco um grande drama. Mais que isso, vemos situações comuns. O casamento desgastado, os filhos adultos, um relacionamento extra-conjugal e as dificuldades impostas naturalmente, mas também, socialmente quando o assunto é velhice, principalmente em relação à mulher. Enquanto Maria sofre de ataques de pressão alta, Noberto, que aparentemente é um bom pai e um bom marido, mantém uma relação fora do casamento – ao passo que não assume e não toma nenhuma posição, aguardando Maria agir de alguma forma. Cansada de esperar, ela resolve ir a uma excursão em Aparecida do Norte, da qual só volta na quinta-feira – daí o nome do filme.
Os filhos estão preocupados com o casamento dos pais, mas não interferem, afinal, eles já têm seus próprios problemas. André não sabe onde morar com a namorada, a falta de dinheiro é empecilho para alugar um apartamento no centro de Belo Horizonte. Renato quer ter um filho com a namorada, mas os dois ainda não têm casa e “nem mesmo são casados”. A cama é o lugar de conversa central dos personagens, todos eles conversam em cima dela com seus respectivos parceiros amorosos. Normalmente, as conversas estão em busca de decidir ações para mudar a vida destes personagens. Entendo a cama como um divã, um espaço ao qual os personagens estão livres para se expressar e tomar decisões conjuntas. Os diálogos ficam no nível da discussão e não alcançam o tom de briga. O sotaque mineiro carregado também nos traz uma noção de intimidade, ele é contraposto, no entanto, com a paisagem urbana e concreta da periferia de Minas Gerais.
Enquanto a vida dos filhos segue, Noberto aproveita para visitar a sua outra parceira, uma moça mais nova que ele. Ela decide terminar o relacionamento e mais uma vez o lugar de confissão é a cama. Noberto não encara bem a notícia, mas não briga, lamenta pela o distanciamento com a filha da mulher – que não sabemos se é ou não filha também de Noberto. Nesta cena, a utilização de não atores dá um tom especial ao diálogo que se torna triste, pois trata-se de um fim, mas ao mesmo tempo cômico. Silêncios constrangedores que costumam aparecer em conversas, mas não aparecem nos filmes, neste filme eles aparecem e nos mostram como somos incapazes de ser completamente naturais dadas as regras de sociabilidade e civilização.
Maria volta da sua viagem decidida a se separar, em diálogo com a amiga, admite saber do relacionamento extraconjugal do marido. Ao voltar para casa, reclama do teto que o marido não arrumou – aqui podemos entender como uma metáfora, Noberto ainda não agiu – ela ainda não menciona sua decisão sobre o divórcio. Caminhando pela rua, mais uma queda de pressão. Nos planos seguintes, Noberto canta uma música de amor no carro, logo depois família assiste um jogo de futebol sem a presença da matriarca.
Ela volta na quinta fala sobretudo de amor, o amor íntimo que se transforma, sobre a necessidade de se reapaixonar a cada instante. Através desse longa, Novais nos mostra que o amor é uma aceitação cotidiana do que somos frente ao outro. Envelhecer junto é compreender a mudança do ser amado como uma nova possiblidade de relação. O amor é possível, é banal, é íntimo e está em cada instante: em um diálogo engraçado com o irmão, ou ao tirar a pressão da mãe, mas também em dançar Roberto Carlos na sala de casa.
O primeiro longa-metragem exibido na Mostra Competitiva do 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi “A Família Dionti”, produção do Rio de Janeiro, dirigido e escrito por Alan Minas. No filme, conhecemos a família do título, que vive em uma pequena casa no interior de Minas Gerais: um pai (Josué) e seus dois filhos, Kelton e Serino. A mãe dos garotos desapareceu em circunstâncias misteriosas.
Desde o início, o filme tenta estabelecer um universo com algo sertanejo, algo fantástico, em que as pessoas falam de maneira poética, em que pessoas se transformam em flores, ou ficam “desmilinguidas”. O diretor Alan Minas mencionou a inspiração em Guimarães Rosa e Manoel de Barros, mas há outra referência mais latente: a presença de uma família mágica e marcada por signos que atravessam o tempo e se repetem, tal como a família Buendía de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez.
Em certos momentos, muito devido à montagem descompassada, o desenrolar da história acontece aos tropeços. Na ânsia de introduzir logo o fantástico, a história tem início pouco natural. No entanto, o ótimo desempenho dos atores, mesmo tendo de segurar diálogos caricatos, leva o filme para frente e o torna transparente em certo momento.
A família composta por um homem e dois meninos mostra-se suave, leve e distante do que se espera do contexto do sertão. Em nenhum momento o pai pede dos filhos que sejam o que não querem ser, e é positivo ver que o signo da mudança do filme está presente através das mulheres. A mãe dos garotos é sempre lembrada como alguém que não podia ficar para sempre no mesmo lugar, e afinal se tornou água e foi embora. A menina que chega com o circo desperta o amor no jovem Kelson e transforma sua vida, tornando-o igual à sua mãe. A jovem encarna uma típica personagem “garota-interessante-e-diferente-que-vem-mudar-o-cara”, mas novamente o desempenho da atriz faz Sofia uma personagem encantadora, que não teme o desconhecido e que sabe, antes mesmo de Kelson, que tudo que é livre corre, que a mudança não é somente inevitável, mas pode ser preferível.
Ao passo que Serino e seu pai, que carregam o signo da terra, tem que aprender a deixar que as pessoas partam. A simplicidade e a delicadeza da história acabam por “maquiar” os problemas rítmicos do longa-metragem. O pouco aprofundamento dos temas propostos (amadurecimento, mudança) e a pouca sutileza são escolhas que aparentemente servem para tornar a obra palatável para um público mais infantil (ou infantilizado). Em alguns outros anos do Festival de Brasília, certamente seria um filme um tanto perdido. Na seleção “eclética” deste ano, no entanto, ele cumpre o papel de filme mais “acessível” (com toda a problemática que esse termo pode trazer). Acabou por vencer na categoria Júri Popular.