O sexto dia do Festival de Brasília teve alguns dos filmes mais interessantes da seleção de 2015. O primeiro, A Outra Margem, vencedor do prêmio de Melhor Direção dentre os curta-metragens, deu a oportunidade à Nathália Tereza para apontar a escassez de mulheres realizadoras na seleção do festival deste ano durante seu discurso de premiação. O segundo, História de uma Pena, de Leonardo Mouramateus, marca, mais uma vez, a forte presença do jovem diretor nos festivais do país. A noite foi fechada pelo anticlimático longa-metragem Santoro, filme brasiliense cuja presença na mostra competitiva foi abertamente questionada.
A Outra Margem
O curta de Nathália Tereza acompanha o que é descrito na sinopse como um agroboy, figura conhecida do centro-oeste do país, região em que o filme se origina. O homem é Jean, que dirige pela sua cidade ouvindo a rádio local. Seu ambiente se desenha em meio aos recados de amor de desconhecidos narrados pelo locutor da rádio e visões de jovens dançando em estacionamentos ao som alto que sai do porta-malas dos carros. Nesse contexto, acontece um encontro.
Quando o homem não está mais sozinho no seu carro, podemos viver com ele sua dificuldade em aproximar-se do outro, uma situação que parece se relacionar a parte mais estéril e emocionalmente bloqueada do que chamamos de masculinidade. Carol passa parte da noite ao seu lado e o convida para dançar, ao que ele responde que não dança, não sabe dançar, não. Quase que à força, ela o guia e aos poucos a tensão anterior parece se esvair.
A vida do filme é sua capacidade de transmitir sensações, particularmente a solidão do homem que vaga noite adentro e que aparenta estar preso em sua própria incapacidade de se comunicar e conectar. Talvez seja essa a margem que é cruzada no filme e a delicada mudança de perspectiva que atinge o personagem principal permeia a última cena, na qual ouvimos a música de Guilherme Arantes sendo cantada no karaokê em talvez um dos momentos mais bonitos dessa edição do festival.
História de uma Pena
Leonardo Mouramateus volta ao Festival de Brasília dois anos após Lição de Esqui, filme que lhe rendeu o prêmio de Melhor Curta-Metragem de Ficção na 46a edição do festival, com História de uma Pena. Ele demonstra, mais uma vez, sua habilidade em fazer recortes sobre a juventude.
O filme é particularmente notável por utilizar a estrutura de curta-metragem de forma perspicaz, trabalhando com a falta de uma causalidade fechada ao não nos explicar motivações, e, consequentemente, externando também a real falta de motivação para as atitudes dos seus personagens. São jovens alunos desinteressados, vivendo seus dramas, suas breves paixões, ocupados demais com a fricção entre eles para se importar com o professor, também jovem, cansado e frustrado.
Essa falta de um estímulo contínuo perpassa todo o filme até a guinada final. Não sabemos por que um casal acorda no meio do mato, o que o professor forasteiro está fazendo ali ou qual é a causa da grande comoção central ao filme. Estamos interessados em entender as relações e o contexto mostrados na tela no momento, a dinâmica entre alunos e professor, a tensão que existe entre eles e se ela vai explodir em algum momento.
O filme é construído de forma a permitir diversas possíveis perspectivas, o que agrega complexidade ao recorte. Com atuações precisas que conferem um realismo revigorante ao filme e com um final que satisfaz as expectativas do público, é uma escolha acertada do festival; mais uma boa obra de Mouramateus.
A crítica de A Outra Margem foi escrita pela colaboradora Amanda.
O quinto dia do Festival de Brasília merece um destaque especial, não apenas pelos filmes exibidos na noite de sexta-feira, mas também pela manifestação política que se deu durante a fala do diretor pernambucano Cláudio Assis. Depois do seu papel no episódio lamentável envolvendo a diretora Anna Muylaert no cinema da Fundação em Recife, o público brasiliense demonstrou sua revolta contra a misoginia do diretor com vaias e gritos de “machista”. Ficou claro, entretanto, que o público separou o diretor da obra ao aplaudir entusiasticamente o ator Matheus Nachtergaele quando este tomou a palavra.
Dos filmes exibidos no dia 19 de setembro escolhemos focar especialmente nos curta-metragens (considerados média-metragens pelo Festival de Brasília) Quintal, do mineiro André Novais, e Afonso é uma Brazza, produção brasiliense dirigida por Naji Sidki e James Gama.
Quintal
O filme Quintal de André Novais conta a história de um dia comum na vida de um casal de idosos que vive na periferia de Belo Horizonte. O filme é estrelado pelos pais do diretor, os carismáticos Maria José e Norberto Novais, que também protagonizaram o longa do filho, Ela Volta na Quinta. A Filmes de Plástico, produtora de Novais, também produziu outro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília, o Rapsódia para o Homem Negro de Gabriel Martins.
Entre ventanias inexplicáveis e telefonemas misteriosos de políticos envolvidos em escândalos, é impossível não se afeiçoar ao adorável par de velhinhos que levam todas as situações absurdas como parte do seu cotidiano. O nonsense e a fantasia se misturam no média-metragem de Novais, demonstrando uma aguçada habilidade para o humor comprovada pelas risadas e palmas do público. É intrigante, entretanto, pensar de onde vem esse riso. Viria ele das situações inusitadas ou do fato de quem as vivem serem uma senhora negra e seu marido? E se esse for o caso, o que isso diz sobre o público do filme e das nossas expectativas?
Além do Festival de Brasília, o Quintal fez parte também da seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e não é muito difícil de entender por quê.
Afonso é uma Brazza
Afonso Brazza é, sem sombra de dúvidas, um mito do cinema brasiliense. Com oito longa-metragens realizados antes de sua morte aos 48 anos, nada mais justo que ele fosse homenageado pela arte que ele tanto amava.
A maior ironia de assistir Afonso é uma Brazza ser ovacionado no Cine Brasília durante o Festival de Brasília do cinema brasileiro é que nenhum dos filmes dessa figura mítica jamais foi selecionado para o festival quando ele era vivo. O documentário, que mistura imagens retiradas diretamente de seu penúltimo longa-metragem, Tortura Selvagem – A grade, making of do mesmo e entrevistas, possui uma leveza e humor tornam o filme uma experiência divertida, mas que é assombrada por essa consciência.
Os filmes de Afonso Brazza, com seu sangue falso, suas dublagens e histórias mirabolantes nunca foram levados a sério pelo Festival, mas o que alicerça todas as produções era coisa séria, sim: um profundo e genuíno amor pelo cinema. Amor este que levava Brazza a atuar, dirigir, montar, produzir, usar película vencida para filmar, fazer sangue falso a base de cola, corante e café. O filme podia muito bem cair na armadilha de explorar risada às custas de Brazza, ridicularizando sua ingenuidade, mas não é isso que acontece e assim que o filme ganha em profundidade.
O filme faz jus ao seu protagonista, trata-o com o respeito e não como um excêntrico, e, 12 anos após sua morte, conquista o reconhecimento que nunca lhe foi dado pelo Festival de Brasília.
O terceiro dia da mostra competitiva Festival de Brasília contou com um curta-metragem produzido pela Filmes de Plástico, produtora mineira responsável por curtas premiados como Quinze, Quintal e pelo aclamado longa Ela volta na quinta, seguido de um curta-metragem co-dirigido por uma das únicas diretoras mulheres da seleção e feito pelo mesmo grupo que organiza o Olhar de Cinema, um dos mais interessantes festivais internacionais atualmente no Brasil. O longa da noite, Fome, de baixíssimo orçamento e feito em São Paulo, contava com a participação de Jean-Claude Bernardet, que, na apresentação, declarou fazer parte agora da tradição cinema de deambulação, antecipando a temática do filme.
Nesse texto vamos focar nos dois primeiros filmes da noite; Tarântula, de Aly Muritiba e Marja Calafange e Rapsódia para um homem negro, de Gabriel Martins.
Tarântula
O curta dos paraenses Aly Muritiba e Marja Calafange apresenta uma família que vive em um casarão. A mãe e as duas filhas parecem viver imersas em uma vivência religiosa que mistura o temor a Deus com o medo do que há “lá fora”. Como uma metáfora do que algumas expressões da religiosidade pode realmente trazer a algumas pessoas. A presença de um homem na casa, no entanto, parece quebrar certo equilíbrio na vivência familiar.
O envolvimento amoroso (não se sabe desde quando, no filme) deste homem com a mãe provoca sentimentos diferentes na criança e na adolescente. Enquanto a mais nova experimenta identificação (pois o homem não tem uma perna, ao passo que a garota não tem um dos braços), a mais velha se mostra avessa à nova presença e atua como agente do terror, na tentativa de expulsa-lo (ou exorcizá-lo). A motivação por trás dessas tentativas é envolta em mistério. Alguns colegas me disseram que viram ali fortes indícios de abuso sexual do homem com a filha mais velha, que levariam a moça a usar de todos os recursos para afastar a irmãzinha do mesmo mal. A vaguidão das motivações e intenções do curta é um dos elementos que tornam o filme pouco palpável.
O casarão representa sempre aquele lugar de onde é quase impossível sair. Os sonhos da menina mais nova encontram-se todos dominados pelos signos que ela conhece, e o homem é como uma porta que se abre para outras possibilidades. Fica a dúvida, então, se a jovem é apenas um espírito atormentado tentando se defender do mal (o homem), ou se é dominada por ciúme ou medo do desconhecido. Ambas as interpretações se encaixam bem na lógica dos filmes de terror. No entanto, a paralisia dos enquadramentos e da mise-en-scéne excedem a história do curta, e por fim temos uma obra que não entrega o que promete, demorando-se tanto em criar a tensão que, quando alcança o clímax, parece uma pequena surpresa.
Rapsódia para um homem negro
Mais um homem negro foi morto pela polícia. Em um dia comum, tudo o que veríamos seria uma família desolada por alguns segundos na rede local, algumas pessoas tentando se fazer ouvir, e a sociedade seguindo em frente, porque o mundo não espera, e a vida do preto vale pouco, bem pouco.
Nesse curta-metragem dirigido por Gabriel Martins, a dor se faz ouvir de maneira dilacerante em todo a primeira parte do filme, em que vemos Odé sentindo, através de sonhos e lembranças, todo o impacto da perda do irmão. A formalidade do lamento não tira sua profundidade, embora possa levar a certo distanciamento, num momento inicial. Não se sabe exatamente o que aconteceu, para além do espancamento, da brutalidade. Nem é necessário sabe-lo: o curta tenta nos levar para dentro da tragédia, dos poemas e alegorias, que falam de Oxóssi e Ogum, do caçador e de sua missão, e do que Odé precisa lembrar para trazer sentido ao que aconteceu em sua vida e ao que acontece na periferia, em Minas Gerais, no Brasil.
A sequência final do filme, em que a missão do caçador se revela, é de tirar o fôlego. A vingança através do arco e flecha de Odé, com os homens brancos e engravatados caindo como bonecos no chão, poderá tocar a ferida de muitos. A aproximação com os sentimentos do vingador quem assiste ao filme que aquele não era só mais um homem preto morto. Era o irmão, o pai, o filho, o amor de alguém. Um guerreiro, um caçador, de valor intrínseco, com sangue correndo pelo corpo. E que os Odés do mundo continuarão clamando por justiça.