Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

CARTA AO INFERNINHO: HORA DE VOLTAR

Guto, Pedrinho e turma do Bagaceira,

Vocês já sabem que foi a segunda vez que assisti ao Inferninho no Festival de Brasília. No ano passado, o filme ainda estava em fase de finalização, dentro da Mostra Futuro Brasil, quando recebi o convite de vocês para a primeira exibição. Talvez nem imaginem, mas saí daquela sessão com um choro engasgado. Não tinha a intenção de publicar algum texto, até porque seria injusto escrever qualquer crítica de um filme que muitos nem sequer tinham visto. Fiquei com vontade de conversar com vocês depois, mas a correria do festival também não permitiu. Troquei algumas palavras com Pedrinho, quando disse que o filme me lembrava muito de Fortaleza. Uma certa relação com a cidade, que fazia com que muita gente de lá precisasse ir embora, para depois voltar. E agora em 2018, rever o filme já finalizado acabou por desaguar todo aquele choro antes contido.

Há uns cinco anos, eu me via em Fortaleza em estado emocional parecido com o de Deusimar no Inferninho. Em uma cidade com aquela mesma atmosfera decadente do bar. Um lugar onde as coisas pareciam se repetir e tudo ao redor respirava um cansaço letárgico. No filme, a cantora sempre faz o mesmo show todas as noites e o público permanece ali estagnado em torno das mesas. Sem dinheiro no bolso, aqueles personagens – Deusimar, a cantora, o coelho, a faxineira, o tecladista – persistem em manter o bar aberto. Eles continuam, mesmo sendo difícil. Em Fortaleza, tinha essa mesma sensação de que, ainda que tudo caísse na mesmice, havia a vontade de continuar fazendo junto.

Na reviravolta do filme, homens a mando do governo querem desapropriar o bar para ser implantado o complexo de entretenimento The Virtuarium. Pensei logo no Poço da Draga, onde comunidades foram ameaçadas de remoção por causa da construção do Acquario, projeto do ex-governador Cid Gomes. Saí da cidade onde nasci no momento mais intenso de discussão em torno desse empreendimento milionário que hoje se encontra suspenso e que faz parte da lógica de investimento turístico em grandes centros urbanos. Uma cidade transformada em vidros e ferros, que não guarda uma memória. Uma cidade que se modifica tão rápido que nem reconheço mais, sempre quando volto a cada seis meses.

Mas foi nessa mesma cidade que vi florescer um dos grupos de teatro mais importantes do Brasil. Comecei a acompanhar o Bagaceira ainda no início da minha carreira como jornalista e ver os espetáculos do grupo era sempre uma experiência fascinante. Com todos eles, aprendi que era possível encontrar formas de continuar em Fortaleza e, ao mesmo tempo, criar e se reinventar. Não é nada fácil permanecer junto. Sentir o Bagaceira reunido novamente – agora no cinema – me levou a reconectar com aquela energia. Gostaria que Yuri, Samya, Demick, Tatiana, Rogério e Rafael pudessem estar na sessão para dar um abraço forte em cada um. Não consigo ver o Inferninho apenas como um filme de Guto e Pedrinho, mas também como um filme do Bagaceira. É um amálgama de experiências estéticas, que cruzam o cinema com o teatro.

Rafa, preciso dizer novamente o quanto é maravilhoso ver você em cena? Sei que você se sente bem mais confortável como dramaturgo do grupo, mas aquela sequência da conversa do Coelho com a Deusimar é um dos melhores presentes que qualquer espectador do filme pode receber. Eu me via em prantos. Pensei que estava chorando sozinha, quando olhei para o lado e vi que outras pessoas também estavam emocionadas. Tudo o que o personagem fala nos envolve como um bálsamo, ainda mais porque estamos em um momento terrível de crise, de incertezas. É preciso não maltratar mais a vida e ir atrás dos nossos sonhos.

Saí de Fortaleza, porque a cidade já me sufocava. Muitos amigos já tinham ido embora, em busca de oportunidades em outros lugares. Outros tantos ficaram, permaneceram, resistiram. Não me esqueci nunca de todos aqueles com quem criei vínculos. Amigos e familiares sempre povoavam minhas lembranças. Depois de cinco anos no Rio, vejo que é hora de regressar ao lugar onde nasci e cresci. Para quem parte, sempre chega o momento de retornar. Voltar a viver em Fortaleza será uma experiência nova.

Abração,

Camila

SUAVE PAISAGEM AZUL DO VER E DO OUVIR

Foi difícil começar a escrever sobre Temporada. Assistido naquela sala enorme onde acontece o Festival de Brasília, à medida em que seu tempo de duração avançava, eu sentia uma excitação tranquila tomar conta ao perceber o que estava diante de mim. Algo meio mágico, místico. Era um filme especial. Por isso mesmo, a dificuldade: como escrever um texto inteiro tecido em elogios que contribua para uma discussão estética? Como evitar a generalização e delimitar o que conferia ao filme tamanha suavidade e precisão?

Temporada acompanha Juliana, personagem vivida pela grande atriz e dramaturga Grace Passô, que se muda de Itaúna para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, consegue uma vaga para trabalhar no combate a endemias e espera a chegada de seu marido no novo endereço. A marca do naturalismo e sensibilidade com os quais o diretor e roteirista André Novais Oliveira trata suas histórias, em filmes anteriores vividas por atores não profissionais de sua própria família e de sua convivência, como em seus curtas-metragens e no longa-metragem Ela volta na quinta (2014), permanece presente.

Juliana, aos poucos, constrói laços com os personagens e com o espaço da cidade em seu novo contexto. Em planos em tons de azul claro com pitadas de amarelo e vermelho, assistimos a suas caminhadas pelos bairros batendo de porta em porta e interpelando desconhecidos para prevenir os focos de mosquitos. As interações são singelas. Vemos seu ponto de vista do alto de um telhado. A paisagem da cidade se alterando, Juliana como parte dessa paisagem.

Os laços que Juliana tece são tecidos por nós também. Os novos amigos de Juliana, com destaque para o personagem de Russão, são também nossos. Estamos ali. Na conversa que Juliana tem com uma amiga na pequena mesa encostada na parede da cozinha, em que o sentimento de confissão e confiança é tremendo, sentimos que também estamos guardando um segredo. A preocupação carinhosa que Juliana tem com os acontecimentos na vida de Russão é nossa também.

E, portanto, de cena em cena, de diálogo em diálogo, de movimento de câmera em movimento de câmera, com eventuais clarinetes, dos azuis aos amarelos até chegar ao maiô vermelho na cachoeira, Temporada se constrói como uma obra ritmada, de tempos e sensações que parecem ter sido esculpidos; chega a parecer uma música. Digo naquele sentido de que os sons, as canções, tocam o âmago de uma maneira tão visceral e simples que é difícil de ser destrinchada (e queremos destrinchá-la?).

Ao mesmo tempo, vejo Temporada como um filme de cumplicidade. É um filme de silêncio: o nosso, do espectador, que silencia para ouvir melhor. Para sentir um clima e intuir. Sem megalomanias ou exageros de complexidade artificialmente implantados com o objetivo de produzir emoções específicas, sem uma instrumentalização óbvia do cinema. E, nesse sentido, me peguei pensando no potencial político de um filme como esse.

Caminhando pelo Festival de Brasília nas edições dos últimos quatro anos, foi possível ouvir comentários pejorativos sobre a política que se constrói nos filmes. Como se um filme político fosse um filme que não pensa suficientemente na forma, na estética, em questões existenciais e universais. Como se fosse possível fazer um filme sem se imbricar na forma, na estética e em questões também universais. Existe um olhar anacrônico que defende que um filme precisa optar entre a política e a estética. E, normalmente, é justamente esse olhar que cobra de sujeitos que escapam aos marcadores sociais hegemônicos (que talvez possam ser definidos no Brasil como: um homem branco, heterossexual, da capital, sudestino e de classe média alta) algo que represente alguma “reivindicação” evidente.

Quando a estrutura que nos constrói como sujeitos históricos está organicamente entrelaçada à experiência do filme, por vezes corre o risco de se tornar ponto cego no olhar dos que nunca precisaram fazer esse esforço para ver. Desacostumados. Felizmente, sinto que o caminho que tem sido trilhado possibilita que cada vez mais essas opacidades no olhar sejam desmanchadas e/ou reconhecidas; que exista ao menos consciência do que não se vê, do que não se ouve. Em Temporada, ouvimos e vemos nossos arredores (os de Juliana, na verdade). Sentimos o tempo passar entre as caminhadas, a mudança do penteado, a nova estação vindo no vento.

Não sou a primeira a dizer que o filme de André Novais Oliveira sinaliza algo nesse sentido de uma política que se dá pelo cotidiano e pela relação. Entre masculinidades, feminilidades, negritudes, ausências e presenças, a existência no espaço de Contagem. Questões sociais fundamentais dessa rede de afetos e solidões de Juliana estão presentes ali no filme para serem sentidas, vividas e discutidas, enquanto há essa magia no ar que se alastra. Temporada é um filme preciso, suave e verdadeiro. É especial, por ser assim de uma forma que talvez não deva ser esmiuçada em palavras, muito menos em termos técnicos. Uma questão de intuição.

 


Leia também o texto sobre Ela volta na quinta (2016).

DISPOSITIVOS SOBRE CAUSA E CONSEQUÊNCIA: CÂMARA DE ESPELHOS + PRECISAMOS FALAR DO ASSÉDIO

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desse ano teve novos formatos, com mostras paralelas de cunho político e as chamadas sessões especiais. Em uma dessas sessões, foram exibidos os longa-metragem Precisamos falar do assédio e Câmara de Espelhos, filmes que tratam das questões ligadas às mulheres na sociedade. Além dessa discussão como elemento em comum, ambos os filmes dialogam com o espectador através do formato de filme-dispositivo. Esse tipo de filme costuma partir de uma questão formal, um dispositivo que afeta a linguagem do filme, para chegar às suas outras questões.

No caso do filme Câmara de Espelhos, de Dea Ferraz, o dispositivo consiste em reunir homens de diversas faixas etárias, estilos de vida e grupos econômicos diferentes em uma instalação de caixa preta, fechada, com espelhos nas paredes e decoração de sala de televisão. A diretora faz intervenções externas ao longo do filme, sem que os convidados vejam ou interajam com ela, que aciona vídeos na televisão da caixa preta com temáticas relacionadas às mulheres. Cenas de novelas, programas de televisão, memes da internet, entre muitos outros conteúdos midiáticos, impulsionavam a discussão sobre assuntos como o lugar da mulher na sociedade, nas relações, seu comportamento no mundo.

Em Precisamos falar do assédio, de Paula Sacchetta, o dispositivo se trata de uma van-estúdio que para por diversos lugares em São Paulo e Rio de Janeiro com o objetivo de coletar depoimentos de mulheres que foram vítimas de qualquer tipo de assédio, sejam eles físicos, psicológicos ou morais. Elas ficam sozinhas dentro da van, apenas com a câmera, sem interagir diretamente com a diretora. Caso prefiram, podem usar máscaras ou pedir para alterar a voz do depoimento. Cada máscara representa o motivo pelo qual a vítima não quer mostrar o rosto: medo, raiva, vergonha ou tristeza.

A criação de dispositivos em um filme tem como premissa filmar o que ainda não se apresenta e só se apresentará quando o dispositivo for acionado: ele é uma ativação do que já é real, apesar de ser um contexto inventado dentro da própria realidade. Como uma caixa preta em que homens podem comentar o lugar da mulher na sociedade ou uma van com uma câmera onde mulheres podem relatar assédios sofridos por elas.

Um filme tem a capacidade de intensificar as mudanças na realidade não apenas como um produto final que causa sensações particulares em cada espectador de acordo com suas próprias vivências, contextos e imaginário. Além disso, durante as gravações, existe a capacidade de desencadear sensações em quem está sendo filmado. A possível reflexão entre os homens em Câmara de Espelhos a partir das discussões na sala de espelhos é um exemplo disso. Assim como o processo catártico de cada mulher que deixou o seu depoimento em Precisamos falar do assédio. 

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A caixa é um recorte da sociedade com a qual lidamos diariamente em proporções bem maiores. A proposta da diretora é de uma análise de discurso da mídia que reproduz e recria um imaginário machista na sociedade, que a nível macro pode parecer imperceptível para a maioria da população consumidora dos grandes veículos de comunicação de massa. Mesmo para quem acredita estar seguindo um caminho de constante desconstrução, ao observarmos com mais atenção as nossas próprias falas, atos e mesmo trabalhos cotidianos, fica evidente que também repetimos e alimentamos à exaustão esse discurso machista.

Através desses recortes exibidos em uma tela de cinema, podemos entender a proporção dessas incoerências. Há determinado momento no filme em que uma cena de novela é exibida para que os convidados discutissem. A cena consistia em um homem e uma mulher tendo relações sexuais, enquanto um homem, que seria o marido, dá um tiro em ambos ao encontrá-los. Um dos convidados da sala, ao fim da exibição da cena, diz rapidamente e com convicção que isso é completamente normal e plausível. Esse momento demonstra a gravidade e a naturalização do feminicídio tanto na mídia quanto na abordagem cotidiana sobre o assunto.

Na van de Precisamos Falar do Assédio, notamos que as proporções que esse discurso têm e como trazem reflexos diretos e concretos na realidade das mulheres. A retro-alimentação do machismo não fica apenas na esfera das ideias, mesas de bares, discussões em comentários de portais de notícias: ela chega nos nossos corpos e psicológicos de formas muito dolorosas, deixando profundas cicatrizes. E é isso o que traz a diretora e as corajosas mulheres que compartilharam com seus fortes depoimentos no filme.

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No filme, há relatos de mulheres da mais variada faixa etária. Algumas delas, já idosas, falavam pela primeira vez na vida sobre o assédio vivido. Através dessa câmera fechada em uma van, sem ninguém que as julgasse ou repreendesse ou amedrontasse, essas mulheres encontraram uma oportunidade para, de alguma forma, libertar um pouco de uma dor que não pode ser compartilhada por diversos fatores na vida cotidiana de cada uma. E esse formato do filme, além de auxiliar na catarse vinda da fala do próprio processo de abuso, causa a catarse em quem as assiste e se identifica em algum ponto com a sua fala. O filme se estende em outros desdobramentos interativos: convida a todas as mulheres que compartilhem depoimentos online em seu portal.

Outra característica inerente aos filmes-dispositivos é que eles funcionam, individualmente, em seu próprio modelo. Não há um formato específico e universal, os dispositivos são construídos diferentemente a cada obra, de forma a fazer sentido de acordo com o seu propósito enquanto filme. Mas, nesse caso, os dois filmes exibidos possuíam uma semelhança em seu dispositivo: o confinamento em locais fechados.

A leitura em cada um traz uma simbologia forte: os homens em Câmara de Espelhos, mesmo em ambiente enclausurado, estão sentados confortavelmente em sofás, com televisão, com homens ao redor, criando um senso de companheirismo. Eles falam à vontade sobre as opressões que praticam, conscientemente ou não, em clima descontraído. Mesmo que discordem entre si em alguns pontos, e ainda que falem coisas que soem absurdas, estão à vontade. Já as mulheres de Precisamos falar do assédio estão sozinhas, em um ambiente pequeno e fechado. Ainda que a intenção seja de acolhê-las, de lhes oferecer um lugar no mundo exclusivamente delas com a oportunidade de falar sobre algo que as oprime, as mulheres se sentem acuadas, envergonhadas.

A forma distinta como os homens e as mulheres se sentem perante os dispositivos é um simulacro da sociedade em que vivemos. Essas diferentes formas de lidar com o confinamento evidenciam como os lugares de fala refletem no pensar e agir dos homens, que não se sentem responsáveis pelas suas próprias agressões (sejam elas em potencial ou realizadas). E, por outro lado, a punição, culpabilização e silenciamento das vítimas estão arraigadas nas estruturas da sociedade, e demonstram o quanto o processo das mulheres que vivenciam isso é solitário.