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MEDUSAS: A FÚRIA FEMININA NOS CURTA-METRAGENS DO FESTIVAL DE BRASÍLIA

Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.

Tendo decidido estudar e fazer filmes – e norteado toda a minha produção e desde então – pelo desejo de perseguir, desdobrar e escancarar tudo aquilo que o mundo costuma rejeitar no feminino, eu sempre senti um interesse especial por representações de mulheres se comportando de maneiras incômodas e indesejáveis para as pessoas ao seu redor. Mulheres que vomitam a dor de existir em um mundo capitalista, machista, racista e homofóbico em vez de engoli-la e, consequentemente, voltá-la contra elas mesmas. Mulheres que, diante de um conflito, recusam-se ao gesto apaziguador tão esperado no feminino, optando em vez disso por demonstrar abertamente seu desagrado, discordância ou ressentimento. Mulheres que não esquecem e não se submetem, convencidas de que o mundo lhes deve mais do que está dando e dispostas a lutar por isso. Nós precisamos ver e ouvir essas mulheres com mais frequência para lembrar que elas são possíveis, que a sua indignação é legítima e que não, a fragilidade, a gentileza, o acolhimento, a compreensão, a resignação e o sacrifício – esses lugares de aceitação da dor tão frequentemente atribuídos à condição feminina – não são os únicos que nós podemos habitar. E o cinema, com seu poder inigualável de lançar holofotes sobre existências e imaginar novas realidades, tem um papel crucial na missão de dar voz e visibilidade a elas.

No Festival de Brasília desse ano, que pela primeira vez na sua história teve mais mulheres que homens à direção dos filmes exibidos na mostra competitiva, não faltaram exemplos de mulheres em fúria para nos espelhar e inspirar. Considerando a força e a importância do curta-metragem enquanto espaço para o surgimento de novas vozes, novos olhares e novas temáticas no cinema, é em alguns dos curtas exibidos no festival – aqueles em que a força de comportamentos femininos desviantes se fez mais presente para mim – que irei me focar a seguir.

Jaqueline (Kauane Tarcila) em Impermeável pavio curto, de Higor Gomes.

De todas as inspiradoras mulheres presentes nas telas do Festival de Brasília, a que mais me impressionou talvez tenha sido a jovem Jaqueline de Impermeável Pavio Curto, de Higor Gomes, exibido na mostra universitária e vencedor do Prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta na categoria. Impaciente, explosiva e cheia de falsas certezas e autonomia, Jaqueline carrega seus olhos pesados de rímel, seus jeans e suas trancinhas com tanta imponência que até mesmo a câmera parece se intimidar diante dela, mantendo-se na maior parte do tempo a uma segura distância da adolescente, em planos abertos que privilegiam a nossa compreensão do modo como a personagem se relaciona com o espaço ao seu redor – no caso, não muito bem.

Como um animal enjaulado desesperado para dar vazão à toda a sua fúria e frustração com o mundo – e, assim como sua protagonista, o filme de Higor Gomes nunca se explica inteiramente, mas nos permite imaginar com muita clareza que motivos uma jovem negra, periférica e completamente alienada da mãe e suas falsas promessas teria para estar tão indignada – Jaqueline está sempre jogando objetos para longe, ignorando solenemente qualquer olhar, pergunta ou comentário que a incomodem, e em certo momento chega até a fantasiar cair no tapa com uma colega. Enquanto isso, paira sobre ela, o tempo todo, a sombra de um incidente na escola que também nunca é inteiramente explicado, mas sugere que a violência de Jaqueline, em algum momento, escapou da fantasia para ferir um objeto menos inócuo que uma chave de fenda ou uma garrafa de vidro, fazendo a protagonista finalmente encarar as desagradáveis consequências de seus atos.

Ainda assim, Jaqueline jamais se quebra, se dobra, se explica ou se desfaz. No fim, após receber mais um golpe de um mundo que não se cansa de decepcioná-la e magoá-la, ela parte estrada afora em sua bicicleta. Sozinha, ela sorri.

Vanessa (Noemia Oliveira) em Eu, Minha Mãe e Wallace, dos irmãos Carvalho.

Tão imponente quanto Jaqueline é a Vanessa (Noemia Oliveira) de Eu, Minha Mãe e Wallace, dos irmãos Carvalho, que ganhou os prêmios de júri popular e melhor atriz coadjuvante (Noemia Oliveira) na mostra competitiva, além do prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta. No filme, Vanessa é uma mãe solteira que recebe relutantemente a visita de Wallace (Fabrício Boliveira), o pai ausente, apavorado e ansioso para conhecer a filha Gabrielle (Sophia Rocha) numa saída temporária da prisão na época do Natal. Desde o instante em que abre a porta para Wallace, Vanessa deixa muito claro que dentro de sua casa, com a sua família, tudo o que acontecer será segundo as suas regras, e que está aceitando a presença dele apenas por Gabrielle, para quem reserva todos os seus breves sorrisos e sua disponibilidade emocional. De fato, Vanessa não interfere nas interações de Wallace com a filha, e até mesmo as incentiva ao seu modo, mas jamais gasta qualquer esforço para fazer o visitante se sentir mais à vontade, forçando-o a se virar quando não sabe o que fazer e criticando-o sem pudor quando erra.

Mais velha, madura e dona de si que Jaqueline, Vanessa não se mantém à distância. Ao contrário, ela se agiganta monumentalmente sobre a câmera, encurralando-a no pequeno espaço de sua casa e até mesmo comandando-a a quebrar o seu registro de filmagem fluido e naturalista com um repentino plano frontal, totalmente fechado em seu rosto furioso, quando Wallace revela a intenção de fugir em vez de retornar à prisão, e portanto, nunca mais voltar, nunca ser um pai para Gabrielle, nunca assumi-la como prometido, levando consigo apenas uma fotografia de lembrança. “Olha pra mim caralho”, Vanessa diz, e nós olhamos, pois ela exige ser vista e ouvida, e é impossível não obedecê-la. Seu olhar, como o da Medusa – mitológico símbolo de fúria e poder femininos – nos paralisa.

No fim, Vanessa permite que Wallace tire a tão desejada foto de família e vá embora. Na imagem desbotada revelada ao fim, o rosto de Vanessa é uma rígida máscara de fúria, contando uma história muito mais longa que os vinte minutos do filme dos irmãos Carvalho poderia contar.

Maria (Maria Leite) em Mesmo com Tanta Agonia, de Alice Andrade Drumond.

Em Mesmo com Tanta Agonia, de Alice Andrade Drumond, que ganhou os prêmios de melhor atriz (Maria Leite), melhor fotografia (Anna Santos) e menção honrosa de atriz coadjuvante (Rillary Rihanna Guedes) na mostra competitiva, além do Prêmio Abraccine e do Prêmio de Aquisição Canal Brasil de melhor curta, a protagonista Maria (Maria Leite) é mais uma mãe que reserva para a filha todo o seu afeto, protegendo-se das infinitas dores e exigências do mundo através de um estoicismo que beira o embrutecimento diante de tudo que não diz diretamente respeito à sua felicidade. No filme, que acompanha Maria tentando chegar a tempo para o aniversário de Julya (Julya Inhota) depois de um dia exaustivo no trabalho, apenas para ficar presa no trem quando um homem é duplamente atropelado nos trilhos, chama atenção a austeridade da protagonista, que jamais esboça qualquer horror, choque ou piedade diante da brutalidade do incidente, qualquer incômodo diante das exigências no trabalho, qualquer desagrado diante do trem lotado. Dura, cansada e muito prática, Maria simplesmente não tem capacidade para se compadecer e desmanchar diante dos infortúnios anônimos do mundo. Seu sorriso relutante e seus olhos cansados só se abrem de fato, monumentais entre as luzes coloridas, quando Maria encontra Julya, para quem reserva todo o seu amor e suas alegrias – é como se, para a protagonista, tudo que existe entre ela e sua filha fosse apenas mais um obstáculo. Como diz a fenomenal Rillary Rihanna em certo momento, Maria é “uma guerreira” – em todos os sentidos da palavra.

Dirigindo depois da festa com a filha adormecida no banco de trás, o rosto de Maria, imerso num mundo todo colorido em tons de roxo, finalmente se desfaz, transitando entre a exaustão, a tristeza e o desafio, num furioso grito sem palavras que a música ao fundo canta: esse é o mundo de uma mulher.

O lendário refúgio uterino de Boca de Loba, Bárbara Cabeça

Finalmente, em Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, a fúria feminina é representada não por um rosto ou uma voz específicos, e sim por uma onda de mulheres silenciosas e anônimas que, escapando como um jorro de água sob a força da “pressão assediadora das ruas”, recobrem a cidade buscando invocar o poder de uma mulher lendária – “circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda” – que vive num lugar oculto, à espera daqueles que não têm um lugar no mundo e capaz de reviver e tornar livres e fortes todos os seres que correm o risco de se perder.

Vestidas em trajes fantásticos, essas mulheres percorrem as ruas frias e vazias de uma cidade que claramente não lhes pertence como se estivessem em batalha – como de fato estão – marcando territórios, rastejando nos subterrâneos, se esgueirando e correndo pelas sombras. Paralelamente, reúnem-se num recanto úmido e profundo, uterino, perpetuamente banhado por uma suave luz vermelha, onde compartilham brincadeiras, histórias e contemplações ao som de risos abafados. Que todas essas explorações, mesmo que urgentes, jamais estejam acompanhadas por uma sensação de ameaça para essas mulheres vagando pela noite, é um feito fabuloso do filme, que nos faz acreditar verdadeiramente nesse poder de comunhão, ocultamento, cura e comunicação entre mulheres.

Sobre uma obra construída por símbolos, códigos e linguagem tão próprios, tão desinteressados no discurso padrão de todos os dias, é difícil formar qualquer tipo de certeza, mas se eu fosse escolher alguma, seria essa: quem corre perigo, no sombrio e gotejante universo de Boca de Loba, não são as mulheres – são seus inimigos. É uma mudança bela, e bem-vinda.


Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.

Ainda assim, nós estamos. Furiosas, na verdade. Há um limite, afinal, para o tanto de violência que uma mulher é capaz de digerir dia após dia sem acabar implodindo ou explodindo, e se o mundo nos ensinou que o certo é voltar toda a nossa fúria para dentro de nós mesmas em nome da conveniência alheia, bem, os tempos nos mostraram que, doa a quem doer, nós não somos obrigadas a cumprir regras que não ajudamos a criar.

A nossa fúria é uma rebelião, e ela está só começando.

A CULPA E O SILÊNCIO COMO HERANÇA DAS MULHERES: JULIETA

Pedro Almodóvar volta ao melodrama em sua melhor forma em Julieta, filme aparentemente contido, em que uma mulher de meia-idade busca acertar as contas com o passado. Essa aparência pode explicar o pouco sucesso que o filme vem angariando entre os críticos apaixonados pelo deslumbramento e exagero que marcam a obra do diretor espanhol.

Quem não se deixar abalar pelo ritmo mais lento e o tom reservado do filme encontrará vários elementos que nos remetem aos trabalhos anteriores de Almodóvar. Ainda que de maneira elegante e menos febril, estão ali o suspense, acentuado pela trilha e pelos flashbacks e as cores fortes dos cenários, que se confundem com os sentimentos das personagens. Isso além de fortes mulheres, entre o desejo e a culpa, em um conflito que se arrasta pelos anos e deforma vidas.

Julieta é uma mulher aparentemente bem-sucedida financeiramente, casada e independente que está de mudança para Portugal, para não mais voltar. Logo no início do filme há uma conversa com Bea, antiga amiga de sua filha Antía, que Julieta não vê há treze anos, por motivos até então desconhecidos. A partir daí, torna-se imperioso para a personagem escrever uma carta, um relato frágil que estivera estancado pelo tempo, desde quando era apenas uma jovem que não sabia o que esperar da maternidade e da vida a dois.

É revivida então uma história que parece muito particular e misteriosa, graças à personalidade esquiva e ao mesmo tempo encantadora de Julieta na juventude, e ao relacionamento intenso e cheio de mágoas com o pescador Xoan, uma espécie homem símbolo de uma liberdade mental e sexual que atrai e machuca as mulheres que tentam se aproximar.

Atenção: a partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.

Antía (Blanca Parés) e Julieta (Emma Suaréz).

Antía (Blanca Parés) e Julieta (Emma Suaréz).

É uma história intimista, que se desenvolve também em tudo o que não é mostrado em tela: através da carta, estamos com Julieta em um momento em que ela fala com sinceridade sobre sua vida pela primeira vez. Não podemos esquecer que todo o mistério em torno dos acontecimentos de sua vida parte de seu olhar exclusivo e limitado, desde a viagem de trem com seus prenúncios de morte até a revelação de sua depressão durante o crescimento de Antía.

O universo de esquecimento que Julieta construiu para se proteger se desconstrói quando ela conversa com a amiga de Antía. Ela percebe que não sabe todos os pedaços da própria história. Ao saber que Antía vive na Suíça e tem seus próprios filhos, Julieta se permite buscar uma chance de redenção.

A revelação pessoal de Julieta através da carta não explica precisamente de onde vem toda a mágoa, culpa e revolta que a afastaram da filha. E nem poderia: ao optar por se calar a vida inteira, Julieta tinha pouco ou nenhum acesso à intimidade dos outros, e com isso limita nosso olhar para dentro do filme e para a vida das personagens.

Julieta descreve Antía como uma jovem forte e independente, que cuidou dela durante um período de profunda depressão, mas as revelações posteriores entregam pistas de que a jovem não é quem a mãe descreveu.

Por trás desse retorno à juventude, há um enredo muito sensível às mulheres de meia-idade e com filhos, quando afinal se veem sozinhas: o de uma vida cimentada sob a culpa, e a transferência desse sentimento para os filhos, como uma herança amarga que nunca se rompe, graças ao silêncio.

Ava e Julieta: curiosamente, as duas eram capazes de manter um relacionamento de amizade, embora a culpa que perpassa as duas tenha origem no mesmo homem.

Ava (Inma Cuesta) e Julieta quando jovem (Adriana Ugarte).

Há um tratamento de gênero interessante em torno dessa culpa. Os homens do filme realizam seus desejos, independentemente das críticas que recebem: Xoan era um pescador libertário, sexualmente resolvido, e o pai de Julieta logo se casou com uma moça mais jovem, quando a esposa começou a perecer. Às mulheres do filme resta, como uma herança feminina, a culpa e o inconformismo por ter que ver suas vidas esfacelando em função dos homens e dos filhos. Até mesmo Ava, amiga de Julieta, perece sob a culpa que lhe cai por ter sido amante de Xoan, ainda que simbolicamente, através de sua doença. As mortes e desaparecimentos no meio do caminho são como avisos para que Julieta tome conta da própria vida: ela, no entanto, as compreende como castigo e impedimento para que viva plenamente.

Parte do estranhamento da crítica e do público talvez se dê pela economia de sentimentos expostos das personagens, a exemplo do belo Volver (2006), que trata de temas semelhantes e expõe as feridas que atravessam gerações de mulheres. Em Julieta, esses sentimentos muitas vezes se encontram apenas numa simples troca de informação: que deverá ter sentido Julieta quando Bea conta a ela que tivera um relacionamento amoroso com Antía? Que reação será possível para uma mãe que ignorou a vida inteira o que a filha vivia e sentia bem debaixo de seu nariz? Aos mais sensíveis só resta pensar no quanto disso pode existir em suas próprias vidas.

No fim, Julieta é mesmo um filme que opta por evitar picos emocionais, o que se demonstra pelo seu final aparentemente aberto, no qual só vislumbramos a esperança da reconciliação entre as duas, que só será possível a partir do rompimento do silêncio. Não conheceremos mais de Antía do que a mãe nos permitiu ver durante a história, o que considero uma decisão que demonstra maturidade criativa e emocional por parte de Almodóvar. Julieta está a caminho de se livrar da própria culpa após anos de sofrimento, e nós voltaremos para casa para nos confrontar com o peso de nosso próprio silêncio.