Um ensaio fragmentado em notas sobre pensamentos inconclusivos que me acompanham há alguns anos dentro das salas de aula e de cinema. A ideia aqui não é um aprofundamento, mas sim um passeio sobre reflexões e acontecimentos que perpassam a minha prática educacional e o meu fazer cinematográfico. Esse diálogo parte do que chamo de cinema do cotidiano. Essa expressão não é um conceito formal, mas sim o modo como tenho chamado filmes que se debruçam sobre a vida ordinária, sobre acontecimentos e personagens tidos como comuns, se tomarmos como contraposição a produção hegemônica, em que o extraordinário se faz mais presente. Nesses fragmentos, o comum não é algo menor em relação ao extraordinário, mas sim algo a ser valorizado, algo que deve ocupar cada vez mais o espaço da tela de cinema.
fragmento 1 – o espanto
O pequeno, quando se torna grande, assusta. O plano detalhe — aquele momento em que elementos imperceptíveis na maior parte do tempo ocupam as proporções enormes de uma tela de cinema — é um recurso comum, mas fundamental na constituição da tal magia do cinema. Por poucos instantes, vemos o mundo a uma distância que não é usual. Os planos muito fechados exigem aproximação, intimidade e cuidado para que sejam bem realizados. Não por acaso, são planos raros em primeiras experiências com o fazer cinematográfico. Há alguns anos, dou aulas em oficinas e cursos regulares de produção audiovisual. Normalmente, há um receio em se aproximar radicalmente do que está sendo filmado. Existe um desconforto físico mesmo, que facilmente é substituído pelo zoom ou por planos mais abertos. Chegar muito perto não é fácil. É preciso observação e confiança.
Guardo uma recordação muito intensa do dia em que vi o curta “Pouco mais de um mês”, de André Novais, pela primeira vez. Não lembro exatamente qual era a mostra ou festival, mas ainda sei dizer o espanto que me tomou quando o filme terminou. A um olhar tão acostumado em ver o extraordinário e o incomum nas obras de ficção, foi um choque ver a grande tela ocupada por uma história pequena, que poderia ser vivida por qualquer um. O ordinário não estava apenas no plano detalhe. Ele tomava conta dos planos abertos, do som, da narrativa por inteira. Foi estranho perceber como uma situação absolutamente comum foi capaz de emocionar tanto. Sem que tivesse uma consciência imediata, “Pouco mais de um mês” inaugurou em mim a possibilidade de fazer cinema.
Anos depois decidi estudar o filme no mestrado, tamanho foi seu impacto para mim. Por sorte, agendei uma entrevista com o diretor André Novais. Ele participava de uma edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB), na cidade. Um novo espanto. Como uma boa pesquisadora iniciante, estava munida de teorias e hipóteses que explicassem essa opção de André Novais pelo banal. E era isso que eu esperava do cineasta: justificativas conceituais, referências acadêmicas e cinematográficas. Contudo, no decorrer da conversa, André me desmontou. A sua fala era constituída de um profundo vínculo com o seu cotidiano e território. Ele achava bonito a possibilidade do efeito da câmera escura no teto do apartamento da companheira. Assim como achava bonito o muro chapiscado no quintal da casa dos pais. E isso já era motivo o suficiente para se fazer um filme. Essa conversa me reconectou com aquela sensação da primeira vez em que assisti o curta. Cinema é sim muito estudo, pesquisa, trabalho; mas também é instinto e sentir.
fragmento 2 – o reconhecimento
Não é fácil propor uma curadoria de filmes que questione o modelo de produção audiovisual mainstream na escola, principalmente quando estamos diante dos jovens do ensino médio. A linguagem cinematográfica, para eles, é, em sua grande maioria, sinônimo dos filmes de heróis ou das séries do Netflix. Esse imaginário adolescente também é povoado pelos videoclipes, canais de Youtube e o conteúdo audiovisual de outras redes sociais, como o Tik Tok. Existe uma série de motivos para isso — a hegemonia econômica da indústria audiovisual norte-americana, a naturalização desse padrão de produção estado-unidense por nossas emissoras de TV e grandes produtoras audiovisuais brasileiras, falta de políticas públicas que estimulem verdadeiramente a distribuição de filmes nacionais independentes, entre outros —, mas esse texto não pretende discutir todas essas questões diretamente.
A ideia é entender como lidar com essa realidade enquanto professora, pensar em estratégias para exibir produções diversificadas em sala de aula e compartilhar aqui algumas das situações mais significativas que vivenciei. Apresentar filmes com uma construção estética e narrativa distinta, costumeiramente, vem acompanhado de comentários como “Esse filme é muito devagar”. Quando, além de novos usos da linguagem, propomos filmes com temáticas do cotidiano, o desconforto é ainda maior: “Não acontece nada nesse filme”, “O assunto até que é importante…” e o clássico “Não entendi nada” são comentários recorrentes. A ruptura com esse modelo de cinema hegemônico na vivência dos jovens provoca estranhamentos; o conflito tradicional faz falta, assim como os acontecimentos e personagens extraordinários e a montagem veloz. Mas essa primeira impressão não é algo sólido e se dissolve a partir de algumas estratégias que buscam desconstruir esse padrão audiovisual como o único possível ou como aquele que deve ser considerado profissional.
O filme “A cidade é uma só?”, de Adirley Queirós, é um dos exemplos de produções não hegemônicas que possuem uma recepção fílmica diferente. Apesar de romper padrões de linguagem e de construção narrativa, a obra desperta muito entusiasmo em sala de aula. Não há uma única vez que o jingle da campanha da personagem do Dildo — “Vamos votar, votar legal, 77223 pra distrital, Dildo!” — não seja entoado pelos estudantes. Iniciar o processo de reflexão sobre a pluralidade do cinema a partir de uma obra que provoque esse interesse pode ser um bom começo.
Após as exibições do longa de Adirley, eu pedia uma crítica escrita sobre o filme. Costumava selecionar alguns textos para serem lidos na aula seguinte, retomando o debate da obra. Qual não foi a surpresa da turma, quando um dos textos escolhidos foi o de Luiz Henrique, um jovem querido pelos colegas, mas conhecido por ser muito “bagunceiro”. Mesmo sendo um garoto criativo, ele nunca era apontado como destaque por outros professores. Após um pequeno alvoroço, ele leu feliz o seu texto e foi muito aplaudido pela turma. Em seguida, questionei a turma: “Pessoal, por que o texto do Luiz ficou tão interessante?”. A resposta veio, em tom de piada, de outro colega: “Porque ele é cria, fessora!”
“O longa ‘A Cidade é uma só?’ é muito bom, pelo motivo de que retrata muito bem a realidade em que meu povo vive”, afirma o rapaz em seu texto. Chamou a sua atenção, a rotina de trabalho cansativa do personagem, a diferença entre a campanha política de Dildo e a de grandes candidaturas, mas ele também ficou satisfeito com a presença do rap. “Outro lado bem chamativo é que o longa é tão relacionado com nosso dia a dia que, quando estamos assistindo, parece que estamos na pele do personagem Dildo…”, escreve. Durante os debates em sala aula, percebi que vários estudantes também se relacionaram com a rotina do protagonista e que muitos deles tinham em sua família alguém que tivesse sido empurrado para uma região mais distante do Plano Piloto. A sensação de se reconhecer intimamente em uma história que ocupa a sala de cinema é estranha, pois o habitual é assistirmos acontecimentos distantes da nossa vida. Essa não é a única maneira de se relacionar com um filme, claro, mas comecei a perceber que era uma abordagem muito interessante para se trazer para estudantes de audiovisual. Afinal, quando é possível se reconhecer em uma obra, é muito nítida a emoção provocada. Tenho a impressão de que a nossa própria existência ganha um novo sentido.
fragmento 3 – elos
Abrir um diálogo entre os estudantes e os filmes que rompem com suas expectativas de cinema é um passo importante para o surgimento de um interesse real. Nessa linha, as sessões do filme Temporada, de André Novais, foram bons exemplos desses momentos nos quais o debate sobre a obra auxiliava a construção de um novo vocabulário fílmico.
Os planos longos e estáticos, a ação extremamente cotidiana, as pessoas de vidas absolutamente comuns estampam a cena. Tudo no longa se desvia de uma linguagem mainstream, causando desconforto nos jovens: “Mas professora, é um filme sobre o combate à dengue? Só isso mesmo?”, “A vida dessa moça parece a de uma vizinha”, “É um documentário?”. Essas percepções de que a vida comum só tem espaço no documentário são muito recorrentes. Nesse caso, a trajetória do diretor André Novais surge como uma maneira de estabelecer um vínculo entre os estudantes e a obra. Pode ficar mais fácil aceitar uma ficção que conte uma história próxima da sua realidade, quando se entende que o realizador também tem um percurso semelhante ao seu. A ideia de fazer um filme na sua cidade, com sua família e amigos para ser projetado nas salas de cinema, transforma a visão pré-concebida da própria vida cotidiana.
Ampliar o olhar para o que está próximo permite ressignificar a relação com o ritmo do filme. Se a vida não possui um mesmo ritmo sempre, por que as obras cinematográficas precisam ter? Conciliar a velocidade da narrativa com os sentimentos com os quais ela dialoga são também uma opção. Essa descoberta é forte e abre espaço para o entendimento de que a vizinha e as suas transformações cotidianas também podem ser protagonistas. “Tem horas que a vida fica mais parada mesmo. Vou até ver o filme de novo”. Não sei se a estudante Jannielly cumpriu a promessa de rever o longa, mas entendi que a sua visão sobre narrativas não-hegemônicas começava a se modificar.
Fragmento 4 – explosão
Exibir o curta-metragem Travessia, de Safira Moreira, provoca reações explosivas. Em apenas 5 minutos, o documentário faz uma viagem ao passado, questiona um direito à memória que foi negado, e volta ressignificando o presente, com uma proposta de cura para séculos de apagamentos. Poesia, audiovisual e memória se entrelaçam para indignar e comover. Depois da sessão, a estudante Letícia, do segundo ano do ensino médio, procurou-me para confidenciar: “Essa é a história da minha mãe.” Dona Maria Aparecida não tinha fotos de sua infância e nem de seus pais. A lembrança guardada era representada por uma foice, instrumento utilizado para trabalhar na plantação de sisal. O filme contribuiu para uma compreensão inicial sobre a política do esquecimento e o racismo estrutural que atravessam a história de nosso país e de como isso impactava diretamente na trajetória singular da família de Letícia.
Durante o semestre, havia a proposta para realização de um dispositivo fílmico1sobre o afeto. Reencontro-me com a mãe de Letícia mais uma vez. Grandes tremores reverberam por muito tempo. A jovem tinha devolvido à dona Maria Aparecida o direito de contar sua história, de ter sua memória registrada, de ser lembrada. A mãe e sua foice, instrumento de trabalho que traz “lembranças boas e ruins”, haviam se tornado um pequeno filme. Maria Aparecida, uma mulher jovem e bonita, conta a história daquele objeto em sua vida. O plano médio e estático, feito no celular, se concentra no depoimento da mãe. Nas imagens de cobertura, Aparecida, generosamente, compartilha conosco o procedimento para transformar o sisal em fibra. Ela está consciente de como a condição do seu trabalho se aproximava a de um trabalho escravo. Respeita, no entanto, a ferramenta que carrega a história de sua família. Ao final do vídeo, as duas trocam de papéis: Maria Aparecida empunha a câmera — equipamento de trabalho da garota — e faz o contra plano de Letícia observando a foice. Um último plano simples, à princípio, mas nele, passado e futuro se cruzam. Com a câmera, a mãe olha para a frente. Com a foice, a filha não esquece de onde veio.2
Arrisco dizer que Letícia desenvolveu uma outra relação com o fazer cinematográfico e com o seu próprio cotidiano. O encontro com o que chamo de cinema do cotidiano movimenta novas possibilidades de narrativa. Muito embora já existissem, agora há a certeza de que elas podem e devem ocupar um espaço maior do que o de nossas casas.
Fragmento 5 – re-existências
“E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”. A frase do pensador indígena Ailton Krenak costurou anos de reflexões sobre cinema e educação, esse encontro incendiário, que retoma passados, subverte o presente e nos permite inventar um futuro verdadeiramente justo. Pensar sobre o cinema do cotidiano não é necessariamente impor uma estética realista, um determinado ritmo de montagem — até porque alguns dos realizadores citados nesse texto, se utilizam do fantástico em outras obras —, mas sim reacender o olhar para narrativas contra hegemônicas. É expandir percepções para que compreendamos os nossos arredores enquanto cenários, aceitemos nossos corpos enquanto protagonistas, e entremos na importante disputa para a constituição de imaginários. É sobre fortalecer subjetividades, para que todos se entendam também enquanto narradores/autores de seu cotidiano. Claro que o cinema do cotidiano não é o único capaz de realizar essa ampliação do olhar, mas acredito que ele permita processos muito interessantes para serem discutidos dentro da sala de aula de cursos de audiovisual.
Ao compartilhar com a turma de uma oficina na Ceilândia o processo de escrita de seu primeiro roteiro, a estudante Suéllen chorou. Uma jovem inteligente, militante e articulada se emocionou profundamente, pois confessou não se ver, até então, como alguém capaz de contar histórias. Acredito que, muito além de técnicas de estruturação narrativa ou regras de formatação, uma oficina de roteiro deve ser a formação de um espaço de confiança e intimidade. Chegar perto não é fácil, observar o pequeno não é uma atividade indolor. Amiudar o cinema é a compreensão que ele pode ser do tamanho da gente, e que a gente é enorme. No cinema, tudo é realmente possível.
fragmento 6 – utopias
Não é fácil sonhar, imaginar, inventar e educar em um mundo capitalista. A ideologia neoliberal adentra as salas de aula exigindo saberes objetivos, fórmulas que preparem para o mundo do trabalho. Nas regiões periféricas, essa cobrança se intensifica, pois não há sonho possível onde não há sobrevivência. Não dá para ignorar que existe um mercado, repleto de padrões que identificam uma produção como profissional, pois se o estudante periférico não conseguir fazer parte dele, provavelmente, a realização audiovisual não poderá fazer parte de sua vida. Experimentar, atualmente, é direito de poucos. E qual é o espaço que sobra para a invenção?
Por enquanto, o espaço são as brechas, os pequenos desvios na rigidez da estrutura educacional e do mercado de trabalho. A curadoria de filmes que levamos para a sala de aula planta sementes, mas tenho o palpite de que o mais valioso é iniciar a compreensão de que o cinema não é apenas um filme, mas sim uma mediação possível entre você e o mundo. Você vive em um território, que não existe sem uma comunidade. Cinema é coletivo, o território é coletivo, a educação é coletiva e o coletivo é público. O público é de todos. Parece apenas redundância, jogo de palavras, mas para mim, é a utopia a ser perseguida. Não é novidade também, mas sim uma luta travada por muitos. Sou só mais uma contando essa história.
Foi difícil começar a escrever sobre Temporada. Assistido naquela sala enorme onde acontece o Festival de Brasília, à medida em que seu tempo de duração avançava, eu sentia uma excitação tranquila tomar conta ao perceber o que estava diante de mim. Algo meio mágico, místico. Era um filme especial. Por isso mesmo, a dificuldade: como escrever um texto inteiro tecido em elogios que contribua para uma discussão estética? Como evitar a generalização e delimitar o que conferia ao filme tamanha suavidade e precisão?
Temporada acompanha Juliana, personagem vivida pela grande atriz e dramaturga Grace Passô, que se muda de Itaúna para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, consegue uma vaga para trabalhar no combate a endemias e espera a chegada de seu marido no novo endereço. A marca do naturalismo e sensibilidade com os quais o diretor e roteirista André Novais Oliveira trata suas histórias, em filmes anteriores vividas por atores não profissionais de sua própria família e de sua convivência, como em seus curtas-metragens e no longa-metragem Ela volta na quinta (2014), permanece presente.
Juliana, aos poucos, constrói laços com os personagens e com o espaço da cidade em seu novo contexto. Em planos em tons de azul claro com pitadas de amarelo e vermelho, assistimos a suas caminhadas pelos bairros batendo de porta em porta e interpelando desconhecidos para prevenir os focos de mosquitos. As interações são singelas. Vemos seu ponto de vista do alto de um telhado. A paisagem da cidade se alterando, Juliana como parte dessa paisagem.
Os laços que Juliana tece são tecidos por nós também. Os novos amigos de Juliana, com destaque para o personagem de Russão, são também nossos. Estamos ali. Na conversa que Juliana tem com uma amiga na pequena mesa encostada na parede da cozinha, em que o sentimento de confissão e confiança é tremendo, sentimos que também estamos guardando um segredo. A preocupação carinhosa que Juliana tem com os acontecimentos na vida de Russão é nossa também.
E, portanto, de cena em cena, de diálogo em diálogo, de movimento de câmera em movimento de câmera, com eventuais clarinetes, dos azuis aos amarelos até chegar ao maiô vermelho na cachoeira, Temporada se constrói como uma obra ritmada, de tempos e sensações que parecem ter sido esculpidos; chega a parecer uma música. Digo naquele sentido de que os sons, as canções, tocam o âmago de uma maneira tão visceral e simples que é difícil de ser destrinchada (e queremos destrinchá-la?).
Ao mesmo tempo, vejo Temporada como um filme de cumplicidade. É um filme de silêncio: o nosso, do espectador, que silencia para ouvir melhor. Para sentir um clima e intuir. Sem megalomanias ou exageros de complexidade artificialmente implantados com o objetivo de produzir emoções específicas, sem uma instrumentalização óbvia do cinema. E, nesse sentido, me peguei pensando no potencial político de um filme como esse.
Caminhando pelo Festival de Brasília nas edições dos últimos quatro anos, foi possível ouvir comentários pejorativos sobre a política que se constrói nos filmes. Como se um filme político fosse um filme que não pensa suficientemente na forma, na estética, em questões existenciais e universais. Como se fosse possível fazer um filme sem se imbricar na forma, na estética e em questões também universais. Existe um olhar anacrônico que defende que um filme precisa optar entre a política e a estética. E, normalmente, é justamente esse olhar que cobra de sujeitos que escapam aos marcadores sociais hegemônicos (que talvez possam ser definidos no Brasil como: um homem branco, heterossexual, da capital, sudestino e de classe média alta) algo que represente alguma “reivindicação” evidente.
Quando a estrutura que nos constrói como sujeitos históricos está organicamente entrelaçada à experiência do filme, por vezes corre o risco de se tornar ponto cego no olhar dos que nunca precisaram fazer esse esforço para ver. Desacostumados. Felizmente, sinto que o caminho que tem sido trilhado possibilita que cada vez mais essas opacidades no olhar sejam desmanchadas e/ou reconhecidas; que exista ao menos consciência do que não se vê, do que não se ouve. Em Temporada, ouvimos e vemos nossos arredores (os de Juliana, na verdade). Sentimos o tempo passar entre as caminhadas, a mudança do penteado, a nova estação vindo no vento.
Não sou a primeira a dizer que o filme de André Novais Oliveira sinaliza algo nesse sentido de uma política que se dá pelo cotidiano e pela relação. Entre masculinidades, feminilidades, negritudes, ausências e presenças, a existência no espaço de Contagem. Questões sociais fundamentais dessa rede de afetos e solidões de Juliana estão presentes ali no filme para serem sentidas, vividas e discutidas, enquanto há essa magia no ar que se alastra. Temporada é um filme preciso, suave e verdadeiro. É especial, por ser assim de uma forma que talvez não deva ser esmiuçada em palavras, muito menos em termos técnicos. Uma questão de intuição.
Leia também o texto sobre Ela volta na quinta (2016).
A intimidade é o tema central dos filmes de André Novais, cineasta mineiro, diretor dos curtas-metragens Fantasmas, 2010, e Pouco mais de um mês, 2013. Em Ela volta na quinta, 2014, não é diferente. Novais apreende o cotidiano doméstico de Noberto e Maria José, um casal de idosos com dificuldades em se relacionar após 35 anos juntos. A trama ficcional, no entanto, com personagens reais – quem atua é a própria família do diretor – nos surpreende ao levantar discussões para além da linguagem cinematográfica. O fim de um relacionamento de anos, a dificuldade de seguir os sonhos, o sentimento de apego, a velhice, as questões sociais e tantos outros temas elevam a qualidade de Ela volta na quinta, que deixa de ser apenas uma obra experimental para se tornar um ensaio sensível sobre a vida cotidiana. Sem megalomania ou “grandes dramas”, o longa retrata nada mais do que a vida doméstica e íntima, ela própria digna de poesia.
É nas minúcias que André encontra o inteligível: em um diálogo com o irmão em que mostra um vídeo engraçado no YouTube ou na trajetória de trabalho do pai ao deixar cair uma geladeira já quebrada que deveria ser levada para o conserto. Em situações tão específicas, pontuais, irrisórias se acessa o espectador de forma terna – nos sentimos parte da situação dando boas risadas. Em contraponto, também podemos nos emocionar com o diálogo sobre sonhos e capacidade de realização dos mesmos entre a mãe e André, enquanto o diretor tira a pressão da genitora. Neste ponto, Novais opta por um recurso bastante utilizado durante o filme: a ausência de plano e contra-plano, deixando a câmera fixa e próxima ao rosto de Maria. Quando vi o filme pela primeira vez no Festival de Brasília em 2014, chorei ao assistir essa cena. São diálogos comuns; eu diria, até banais – e é justamente por isso que têm a capacidade enorme de acesso ao espectador. Todo o banal é poético. Relembro o Manifesto de Poesia escrito por Pasolini que discutia a presença de poesia no cinema; neste manifesto, entre vários apontamentos sobre discurso e linguagem cinematográfica, Pasolini discute sobre a imersão do autor na alma da sua personagem e que seria necessário não só a adoção da psicologia como da língua dessa personagem. Nesse sentido, o longa que mistura personagens reais que vivem uma ficção ganha vários pontos em noção de poesia. Ali todos falam a mesma língua. Nem podemos dizer que os “personagens foram bem construídos”, como comumente fazemos ao criticar obras cinematográficas. Afinal, todos aqueles personagens “estão se construindo”, eles são reais, participam de um devir que acompanhamos durante a narrativa. A ausência do contraplano, os planos fixos e contemplativos nos aproximam desses personagens de forma substancial. Os diálogos ordinários colocados criam simultaneamente sensações de distanciamento e proximidade que nos deixam em estado de fascínio, sem saber muito bem o que pensar sobre a obra.
Recentemente debrucei-me sobre um projeto que envolvia aspectos dos relacionamentos e da velhice na vida afetiva. Cheguei a conclusão um tanto simplista, porém realista. A vida seria dividida em três partes: envelhecer, construir nós e desatar nós. Além de Simone de Beauvoir, que escreveu A Velhice, e de tantos outros escritores, filmes como Ela volta na quinta me ajudaram bastante a pensar sobre os aspectos que envolvem o envelhecimento e principalmente o sentido do amor nesse período da vida. É muito difícil falar sobre o amor. Há quem diga que a melhor forma de falar sobre ele é não tocando em seu nome, mas exemplificando, metaforizando – sem teorizar. É exatamente isso que Novais faz em seu primeiro longa. Um casal de idosos que pretende se separar pois já não conseguem mais estabelecer um diálogo. Não vemos barracos, tão pouco um grande drama. Mais que isso, vemos situações comuns. O casamento desgastado, os filhos adultos, um relacionamento extra-conjugal e as dificuldades impostas naturalmente, mas também, socialmente quando o assunto é velhice, principalmente em relação à mulher. Enquanto Maria sofre de ataques de pressão alta, Noberto, que aparentemente é um bom pai e um bom marido, mantém uma relação fora do casamento – ao passo que não assume e não toma nenhuma posição, aguardando Maria agir de alguma forma. Cansada de esperar, ela resolve ir a uma excursão em Aparecida do Norte, da qual só volta na quinta-feira – daí o nome do filme.
Os filhos estão preocupados com o casamento dos pais, mas não interferem, afinal, eles já têm seus próprios problemas. André não sabe onde morar com a namorada, a falta de dinheiro é empecilho para alugar um apartamento no centro de Belo Horizonte. Renato quer ter um filho com a namorada, mas os dois ainda não têm casa e “nem mesmo são casados”. A cama é o lugar de conversa central dos personagens, todos eles conversam em cima dela com seus respectivos parceiros amorosos. Normalmente, as conversas estão em busca de decidir ações para mudar a vida destes personagens. Entendo a cama como um divã, um espaço ao qual os personagens estão livres para se expressar e tomar decisões conjuntas. Os diálogos ficam no nível da discussão e não alcançam o tom de briga. O sotaque mineiro carregado também nos traz uma noção de intimidade, ele é contraposto, no entanto, com a paisagem urbana e concreta da periferia de Minas Gerais.
Enquanto a vida dos filhos segue, Noberto aproveita para visitar a sua outra parceira, uma moça mais nova que ele. Ela decide terminar o relacionamento e mais uma vez o lugar de confissão é a cama. Noberto não encara bem a notícia, mas não briga, lamenta pela o distanciamento com a filha da mulher – que não sabemos se é ou não filha também de Noberto. Nesta cena, a utilização de não atores dá um tom especial ao diálogo que se torna triste, pois trata-se de um fim, mas ao mesmo tempo cômico. Silêncios constrangedores que costumam aparecer em conversas, mas não aparecem nos filmes, neste filme eles aparecem e nos mostram como somos incapazes de ser completamente naturais dadas as regras de sociabilidade e civilização.
Maria volta da sua viagem decidida a se separar, em diálogo com a amiga, admite saber do relacionamento extraconjugal do marido. Ao voltar para casa, reclama do teto que o marido não arrumou – aqui podemos entender como uma metáfora, Noberto ainda não agiu – ela ainda não menciona sua decisão sobre o divórcio. Caminhando pela rua, mais uma queda de pressão. Nos planos seguintes, Noberto canta uma música de amor no carro, logo depois família assiste um jogo de futebol sem a presença da matriarca.
Ela volta na quinta fala sobretudo de amor, o amor íntimo que se transforma, sobre a necessidade de se reapaixonar a cada instante. Através desse longa, Novais nos mostra que o amor é uma aceitação cotidiana do que somos frente ao outro. Envelhecer junto é compreender a mudança do ser amado como uma nova possiblidade de relação. O amor é possível, é banal, é íntimo e está em cada instante: em um diálogo engraçado com o irmão, ou ao tirar a pressão da mãe, mas também em dançar Roberto Carlos na sala de casa.
O quinto dia do Festival de Brasília merece um destaque especial, não apenas pelos filmes exibidos na noite de sexta-feira, mas também pela manifestação política que se deu durante a fala do diretor pernambucano Cláudio Assis. Depois do seu papel no episódio lamentável envolvendo a diretora Anna Muylaert no cinema da Fundação em Recife, o público brasiliense demonstrou sua revolta contra a misoginia do diretor com vaias e gritos de “machista”. Ficou claro, entretanto, que o público separou o diretor da obra ao aplaudir entusiasticamente o ator Matheus Nachtergaele quando este tomou a palavra.
Dos filmes exibidos no dia 19 de setembro escolhemos focar especialmente nos curta-metragens (considerados média-metragens pelo Festival de Brasília) Quintal, do mineiro André Novais, e Afonso é uma Brazza, produção brasiliense dirigida por Naji Sidki e James Gama.
Quintal
O filme Quintal de André Novais conta a história de um dia comum na vida de um casal de idosos que vive na periferia de Belo Horizonte. O filme é estrelado pelos pais do diretor, os carismáticos Maria José e Norberto Novais, que também protagonizaram o longa do filho, Ela Volta na Quinta. A Filmes de Plástico, produtora de Novais, também produziu outro filme da mostra competitiva do Festival de Brasília, o Rapsódia para o Homem Negro de Gabriel Martins.
Entre ventanias inexplicáveis e telefonemas misteriosos de políticos envolvidos em escândalos, é impossível não se afeiçoar ao adorável par de velhinhos que levam todas as situações absurdas como parte do seu cotidiano. O nonsense e a fantasia se misturam no média-metragem de Novais, demonstrando uma aguçada habilidade para o humor comprovada pelas risadas e palmas do público. É intrigante, entretanto, pensar de onde vem esse riso. Viria ele das situações inusitadas ou do fato de quem as vivem serem uma senhora negra e seu marido? E se esse for o caso, o que isso diz sobre o público do filme e das nossas expectativas?
Além do Festival de Brasília, o Quintal fez parte também da seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e não é muito difícil de entender por quê.
Afonso é uma Brazza
Afonso Brazza é, sem sombra de dúvidas, um mito do cinema brasiliense. Com oito longa-metragens realizados antes de sua morte aos 48 anos, nada mais justo que ele fosse homenageado pela arte que ele tanto amava.
A maior ironia de assistir Afonso é uma Brazza ser ovacionado no Cine Brasília durante o Festival de Brasília do cinema brasileiro é que nenhum dos filmes dessa figura mítica jamais foi selecionado para o festival quando ele era vivo. O documentário, que mistura imagens retiradas diretamente de seu penúltimo longa-metragem, Tortura Selvagem – A grade, making of do mesmo e entrevistas, possui uma leveza e humor tornam o filme uma experiência divertida, mas que é assombrada por essa consciência.
Os filmes de Afonso Brazza, com seu sangue falso, suas dublagens e histórias mirabolantes nunca foram levados a sério pelo Festival, mas o que alicerça todas as produções era coisa séria, sim: um profundo e genuíno amor pelo cinema. Amor este que levava Brazza a atuar, dirigir, montar, produzir, usar película vencida para filmar, fazer sangue falso a base de cola, corante e café. O filme podia muito bem cair na armadilha de explorar risada às custas de Brazza, ridicularizando sua ingenuidade, mas não é isso que acontece e assim que o filme ganha em profundidade.
O filme faz jus ao seu protagonista, trata-o com o respeito e não como um excêntrico, e, 12 anos após sua morte, conquista o reconhecimento que nunca lhe foi dado pelo Festival de Brasília.
O terceiro dia da mostra competitiva Festival de Brasília contou com um curta-metragem produzido pela Filmes de Plástico, produtora mineira responsável por curtas premiados como Quinze, Quintal e pelo aclamado longa Ela volta na quinta, seguido de um curta-metragem co-dirigido por uma das únicas diretoras mulheres da seleção e feito pelo mesmo grupo que organiza o Olhar de Cinema, um dos mais interessantes festivais internacionais atualmente no Brasil. O longa da noite, Fome, de baixíssimo orçamento e feito em São Paulo, contava com a participação de Jean-Claude Bernardet, que, na apresentação, declarou fazer parte agora da tradição cinema de deambulação, antecipando a temática do filme.
Nesse texto vamos focar nos dois primeiros filmes da noite; Tarântula, de Aly Muritiba e Marja Calafange e Rapsódia para um homem negro, de Gabriel Martins.
Tarântula
O curta dos paraenses Aly Muritiba e Marja Calafange apresenta uma família que vive em um casarão. A mãe e as duas filhas parecem viver imersas em uma vivência religiosa que mistura o temor a Deus com o medo do que há “lá fora”. Como uma metáfora do que algumas expressões da religiosidade pode realmente trazer a algumas pessoas. A presença de um homem na casa, no entanto, parece quebrar certo equilíbrio na vivência familiar.
O envolvimento amoroso (não se sabe desde quando, no filme) deste homem com a mãe provoca sentimentos diferentes na criança e na adolescente. Enquanto a mais nova experimenta identificação (pois o homem não tem uma perna, ao passo que a garota não tem um dos braços), a mais velha se mostra avessa à nova presença e atua como agente do terror, na tentativa de expulsa-lo (ou exorcizá-lo). A motivação por trás dessas tentativas é envolta em mistério. Alguns colegas me disseram que viram ali fortes indícios de abuso sexual do homem com a filha mais velha, que levariam a moça a usar de todos os recursos para afastar a irmãzinha do mesmo mal. A vaguidão das motivações e intenções do curta é um dos elementos que tornam o filme pouco palpável.
O casarão representa sempre aquele lugar de onde é quase impossível sair. Os sonhos da menina mais nova encontram-se todos dominados pelos signos que ela conhece, e o homem é como uma porta que se abre para outras possibilidades. Fica a dúvida, então, se a jovem é apenas um espírito atormentado tentando se defender do mal (o homem), ou se é dominada por ciúme ou medo do desconhecido. Ambas as interpretações se encaixam bem na lógica dos filmes de terror. No entanto, a paralisia dos enquadramentos e da mise-en-scéne excedem a história do curta, e por fim temos uma obra que não entrega o que promete, demorando-se tanto em criar a tensão que, quando alcança o clímax, parece uma pequena surpresa.
Rapsódia para um homem negro
Mais um homem negro foi morto pela polícia. Em um dia comum, tudo o que veríamos seria uma família desolada por alguns segundos na rede local, algumas pessoas tentando se fazer ouvir, e a sociedade seguindo em frente, porque o mundo não espera, e a vida do preto vale pouco, bem pouco.
Nesse curta-metragem dirigido por Gabriel Martins, a dor se faz ouvir de maneira dilacerante em todo a primeira parte do filme, em que vemos Odé sentindo, através de sonhos e lembranças, todo o impacto da perda do irmão. A formalidade do lamento não tira sua profundidade, embora possa levar a certo distanciamento, num momento inicial. Não se sabe exatamente o que aconteceu, para além do espancamento, da brutalidade. Nem é necessário sabe-lo: o curta tenta nos levar para dentro da tragédia, dos poemas e alegorias, que falam de Oxóssi e Ogum, do caçador e de sua missão, e do que Odé precisa lembrar para trazer sentido ao que aconteceu em sua vida e ao que acontece na periferia, em Minas Gerais, no Brasil.
A sequência final do filme, em que a missão do caçador se revela, é de tirar o fôlego. A vingança através do arco e flecha de Odé, com os homens brancos e engravatados caindo como bonecos no chão, poderá tocar a ferida de muitos. A aproximação com os sentimentos do vingador quem assiste ao filme que aquele não era só mais um homem preto morto. Era o irmão, o pai, o filho, o amor de alguém. Um guerreiro, um caçador, de valor intrínseco, com sangue correndo pelo corpo. E que os Odés do mundo continuarão clamando por justiça.