Em 1993, a pesquisadora Carol J. Clover cunhou um termo para caracterizar uma personagem típica dos filmes de serial killers que ficaram conhecidos como slasher. Tratava-se da Final Girl. Era ela quem, ao final do filme, permanecia viva.
Hoje, vê-se a Final Girl como uma espécie de heroína feminista, a última sobrevivente de um massacre, triunfante e vingada. E, embora algumas dessas características tenham algum fundamento, uma análise mais profunda nos permite ter uma visão mais completa. Enquanto Clover dedicou um longo estudo aos papéis de gênero nos filmes de horror, o conceito que ela criou parece ter se perdido com o tempo devido a sua apropriação pouco aprofundada pela cultura pop.
O horror tem um efeito tão forte sobre seus espectadores por comunicar medos e desejos reprimidos que temos como sociedade e, como os contos de fada, ele possui duas facetas: a que apoia as instituições vigentes (não vá para a floresta, não faça sexo, obedeça seus pais) e a anárquica, na qual tradições e regras são questionadas. Os filmes da Final Girl típica geralmente se encontram nessa primeira categoria. As últimas sobreviventes desses filmes são adolescentes que não fazem sexo, não se interessam pelas mesmas futilidades que as “outras garotas” e que muitas vezes possuem nomes andróginos e hobbies “masculinos”.
A Final Girl está ali na capacidade de vítima-herói. Herói por sobreviver até o final e, por vezes, por matar o vilão (mesmo que seja por puro acaso). Vítima por ter passado as últimas duas horas se escondendo, fugindo, caindo, sentindo dor, sendo perseguida, aterrorizada e vendo todos os seus amigos (especialmente as amigas) morrerem de forma brutal. Ela é “masculinizada” pelo seu nome, hobbies e, por vezes, aparência para que o espectador masculino possa se identificar com ela na capacidade de herói, mas ainda é uma mulher, e portanto pode ser torturada e vitimizada. A identificação com ela parte de um prazer sadomasoquista.
Com isso, não pretendo dizer que não há nada de subversivo sobre a Final Girl. A sua existência, que surgiu em filmes slasher marginalizados e de baixo orçamento dos anos 70, marcou uma presença feminina cada vez mais forte no cinema e permitiu o início de um debate muito pertinente sobre gênero no horror. Essa lista vem tanto para celebrar quanto questionar o papel da Final Girl no cinema.
Embora, oficialmente, a primeira Final Girl só tenha surgido em 1978 com Halloween, vários filmes de horror antes disso já traziam personagens com características que muito se assemelhavam ao que viria a ser a Final Girl clássica. Dentre elas podemos citar Sally do Massacre da Serra Elétrica (1974) e Lila de Psicose (1960) como um protótipo ainda mais conservador e distante da eventual Final Girl.
Jess, do filme canadense Noite do Terror, é um exemplo interessante. Como a Final Girl clássica, ela tem um nome que poderia ser masculino ou feminino e é a última sobrevivente de uma série de assassinatos que ocorrem dentro da casa onde ela e várias amigas moram. O que a diferencia é sua vida sexual ativa e sua gravidez revelada durante o filme. O fato de ela estar decidida a abortar é particularmente surpreendente e mostra a faceta anárquica da obra.
A primeira Final Girl foi imortalizada pela atriz Jamie Lee Curtis no papel de Laurie no filme Halloween. Diferentemente dos protótipos de Final Girls que vieram antes dela, Laurie foi uma das primeiras “última-sobreviventes” que teve um papel ativo e, em algum nível, bem sucedido na ação do filme. Ela não só se esconde aterrorizada, mas também procura se defender e ferir seu algoz.
Quando Halloween estreou, entretanto, a participação ativa feminina no filme não foi suficiente para convencer os críticos que isso significava uma mudança nos papéis das mulheres no cinema de horror. Andrew Tudor escreveu na época: “Mulheres sempre apareceram como vítimas no cinema de horror, então é esperado que elas pareçam mais proeminentes num período de centralidade da vítima. Se isso significa uma nova estrutura dos papéis de gênero nesse tipo de filme já é outra questão.” Felizmente, ele estava errado quanto a sua última afirmação e desde a primeira Final Girl o horror protagonizado por mulheres ativas se desenvolveu bastante. Por outro lado, não podemos ignorar seu primeiro comentário: a entrada das mulheres no protagonismo do horror se deveu a sua qualidade como vítima.
Em Alien, o Oitavo Passageiro, a Final Girl saiu do slasher para entrar na ficção científica. Subtenente Ripley é a última sobrevivente de um massacre que acontece na nave espacial Nostromo. Extremamente competente e racional, traços geralmente reservados para os personagens masculinos, Ripley permanece viva pela sua engenhosidade e inteligência. Sua androginia é reforçada também pelo fato de a conhecermos por sua patente e sobrenome (o que não impede que ela seja objetificada em cenas que aparece de camiseta e calcinha).
Alien foi mencionado em uma tirinha de Alison Bechdel em 1985 como um exemplo de filme que possui duas mulheres que falam entre si sobre algo que não seja um homem. Desde então, o que se consagrou como o “Teste de Bechdel” tem marcado presença na discussão sobre representação feminina no cinema. Passar no teste não significa que determinado filme é feminista, afinal, se trata de uma piada em um quadrinho que não tinha nenhuma pretensão de se tornar uma referência científica, mas é a própria simplicidade do teste que nos ajuda a perceber a pequena presença de mulheres nos filmes. Deveria ser fácil encontrar duas personagens que não existam em função de um homem em uma história, mas o número assombroso de filmes que não passam no teste demonstra o contrário.
Mais de trinta anos depois da concepção da Final Girl, vivemos um novo momento do cinema de horror. Como de costume, o horror continua a tratar dos nossos medos e desejos recônditos, logo, conforme os medos e desejos da sociedade se desenvolvem e se modificam, o horror também o faz. Podemos ver isso claramente em A Corrente do Mal. O filme conta a história de Jay, uma garota que começa a ser perseguida por uma assombração após fazer sexo com um rapaz. Se isso parece uma trama conservadora, não se preocupe, a solução não é: Jay tem de fazer sexo novamente para passar a assombração para outra pessoa. Mas se a pessoa morrer, a assombração se voltará para ela mais uma vez.
Diferentemente dos filmes slasher, com seus vilões impotentes e sua ansiedade ao redor da sexualidade feminina, em A Corrente do Mal percebemos outras questões. O sexo aqui pode significar tanto morte quanto vida, a intimidade e a característica líquida das relações contemporâneas são possíveis temas. O filme também se opõe aos slashers pela sua protagonista. Jay faz sexo casual, apresenta características consideradas femininas e seus amigos não morrem e não fogem, permanecem com ela até o fim. Ela é a anti-Final Girl.
Colocar Thomasin como uma Final Girl pode ser uma decisão polêmica da minha parte, mas me permita justificar minha escolha. Apesar de A Bruxa não fazer parte do gênero slasher e se passar numa época muito diferente de todos os outros filmes em que temos uma Final Girl, ele tem como tema central a ansiedade em torno da sexualidade feminina e uma protagonista que sobrevive enquanto todos ao redor dela morrem. É por isso que a considero uma pós-Final Girl: ela ainda possui as características fundamentais da personagem, mas ela expandiu o alcance da Final Girl para outras épocas e gêneros dentro do horror.
Mais importante que essa migração do gênero slasher – que já havia acontecido antes com Ripley em Alien, o Oitavo Passageiro – em A Bruxa temos um filme que definitivamente vai contra as instituições estabelecidas. Se as Final Girls anteriores eram desencorajadas a fazer sexo, em A Bruxa, Thomasin é levada a buscar refúgio na perversidade justamente porque, o que quer que ela faça, será condenada. Apesar do título do filme, a verdadeira vilã da história é a sociedade conservadora em que Thomasin vive.
Damned if you do, damned if you don’t.
Mate-me por favor trata de um grupo de garotas adolescentes na Barra da Tijuca que se deparam com uma onda de assassinatos e estupros.
Desde uma das primeiras cenas do filme, em que a protagonista Bia (Valentina Herszage) nos olha através da câmera, percebemos que não há intenção da diretora de convencer os espectadores de qualquer naturalismo no que acontece na tela. O filme caminha sempre nesse espaço entre o exagero estilizado e a realidade absurda.
Um sonho/pesadelo adolescente pop onde adultos não existem e tudo é percepção.
Enquanto assistia Mate-me por favor, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo. Durante muitos momentos conseguia me reconhecer. Talvez seja o fato de que a Barra de Tijuca se pareça com a cidade em que eu cresci, Brasília. Ou talvez seja o fato de que eu fui também uma garota branca de classe média que tinha bem menos acesso a internet do que gostaria e amigos e conversas bem menos elaboradas do que eu haveria de descobrir posteriormente possível.
Eu, aos quinze anos, era como Bia e suas amigas. Tirava fotos para a internet, insistia para transar logo com namorados que pareciam completamente perdidos em relação a toda a existência enquanto adolescente, beijava semi-desconhecidas no banheiro do colégio, tinha sonhos terríveis com situações de estupro e vez ou outra chamava ou era chamada de piranha.
E, assistindo àquele filme, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo porque eu sabia que aquela mise-en-scène não denotava falta de complexidade. Não denotava ausência de subjetividade. Não denotava um olhar apolítico e fetichista sobre garotas burguesas. Mas eu sabia também que o filme seria lido por muitos dessa forma por causa do ponto cego que existe no olhar que legitima os filmes.
Chegando em casa, por curiosidade, chequei algumas das críticas que havia evitado ler antes. Enquanto alguns textos estrangeiros frutos das passagens por grandes festivais internacionais falavam claramente da questão de gênero, inclusive se referindo a “masculinidade tóxica”, a maioria das críticas brasileiras que encontrei não chegava a tocar nesse assunto.
Por aqui, muitos comentários genéricos: “esteticamente interessante”, “pitadas de David Lynch”, “um olhar sobre a adolescência”. De um lado, diversas críticas elogiosas, mas vagas. De outro, críticas que diziam que o filme era apenas estilo sem conteúdo. Que não se aprofundava em nada. “Esvaziado de um conceito mais significativo, o que resta é a forma”, escreve Pedro Henrique Ferreira na Cinética, por exemplo.
Apenas aparência, sem conteúdo. Superficial. Vazio.
É curioso que é justamente assim que somos vistas quando existimos dentro do que foi definido feminino.
E enquanto assistia o filme, eu sabia. Por um lado, é engraçado ter uma consciência tão precisa do olhar que teriam sobre o filme — e sobre mim mesma aos quinze. Mas isso é também resultado da experiência feminina, acostumada a se dissociar e a enxergar a si própria como um outro, como objeto de observação. Algo que está presente ali não apenas nos olhares das personagens para a própria audiência. A cada morte anunciada, as meninas se imaginam morrendo. A cada morte no terreno baldio, vazio entre os prédios em uma cidade rarefeita, elas morriam um pouco. “Vocês não podem ficar andando assim sozinhas”.
E como responder a violência e resistir ao terror psicológico que pode te impedir de viver?
O filme parece existir ao redor dessa questão. Ao longo dele, personagens em diversas situações falam repetidamente coisas como: Sangrou muito. Foi muito sangue. Tinha sangue por todo lado. Nunca vi tanto sangue. Sangrou muito, muito mesmo. Muito.
Tesouradas na barriga, “o homem entrou em mim”, “dói perder a virgindade?”, “vem, Jesus, vem para dentro de mim”, as mãos ao redor do pescoço dele num impulso de curiosidade sobre o que seria essa sensação de ter poder. Em um dos melhores momentos, e que se mescla ao final do filme muito bem, Bia diz ao seu namorado palavras que marcam: Sangue é vida.
E é verdade que sim, de várias formas.
Esse texto foi citado na fala Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?
ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-…
Mais desdobramentos:
http://www.socine.org/encontros/aprovados-2017/?id=16646
Há séculos, o tema da mulher confinada tem sido explorado pela ficção. Somos presas em torres guardadas por dragões, em casas governadas por madrastas tiranas, em quartos minúsculos e sem luz, em abrigos subterrâneos. Dentre as versões audiovisuais desse pesadelo, podemos citar A Maçã de Samira Makhmalbaf, O Quarto de Jack de Lenny Abrahamson, As Virgens Suicidas de Sofia Coppola, Mad Max: Estrada da Fúria de George Miller, Cinco Graças de Deniz Gamze Ergüven, Rua Cloverfield 10 de Dan Tratchenberg e até mesmo a série cômica da Netflix, The Unbreakable Kimmy Schmidt.
O confinamento tem uma série de significados recorrentes e também particulares a cada filme, livro ou conto de fadas em que ele aparece. Ele muitas vezes representa ambientes familiares abusivos, parceiros ciumentos, uma sociedade que limita a mulher ao ambiente doméstico, o pânico quanto a sexualidade feminina e a redução da mulher a suas funções reprodutivas. O aprisionamento das “noivas” de Immortan Joe em um cofre é infantilmente simples em sua conotação: mulheres são vistas como objetos de grande valor, mas ainda objetos. A mãe de O Quarto de Jack – no livro – não possui nome, só a vemos ser chamada de “ma”. Encarcerada com seu filho, todas as suas ações são tomadas em função dele, o livro compara a redução da mulher à maternidade com a angústia do confinamento ao mesmo tempo que explora uma certa idealização do que o tempo ilimitado gasto com uma criança – total atenção, zelo, proteção – o mito da mãe sempre presente. Quando “ma” e Jack finalmente escapam, ela já não sabe mais quem é. Fora do quarto, sem ser mãe 100% do tempo, “ma” tem problemas pra encontrar sua identidade.
Em As Virgens Suicidas, Cinco Graças e A Maçã, irmãs são trancafiadas dentro de casa para sua “própria proteção”, pretexto apoiado por convicções religiosas (católicas e islâmicas) que mal escondem a real motivação: o despertar da sexualidade feminina em adolescentes deve ser sufocado a qualquer custo. As Virgens Suicidas ressalta o estranhamento do feminino, elas são observadas pelos meninos da vizinhança com interesse, mas nunca compreensão. Elas exercem fascínio pelo mistério que as mantém distante do mundo, desconexas e perdidas. Cinco Graças busca representar a perda de direitos das mulheres turcas com a chegada ao poder de um partido fundamentalista, o encarceramento das cinco irmãs refletem ideias conservadoras alimentadas pelo cenário político do país.
É interessante observar que o confinamento em algumas histórias não se dão atrás de portas trancadas. No conto de fadas Barba Azul e na compilação de histórias populares As Mil e Uma Noites, em nenhum momento somos informados de que as protagonistas estão confinadas, mas, apesar de correrem risco de vida, nunca nem passa pela cabeça do leitor ou das mulheres que elas deixem seus maridos e famílias. Tratava-se de um confinamento baseado na dependência. A mulher não possuía nenhum tipo de autonomia financeira, não eram treinadas para ou bem-vindas no mercado de trabalho, a família em si era um encarceramento inescapável. Essa realidade, entretanto, não está tão distante quanto gostaríamos. Ainda existem mulheres no mundo que são impedidas de estudar, em alguns países mulheres tem os mesmos direitos legais de um menor de idade.
Em cada história, as protagonistas apresentam diferentes formas de lidar com suas situações. Em filmes de ação, as mulheres são engenhosas ou fisicamente fortes e tentam escapar a todo custo. Em Rua Cloverfield 10, vemos Michelle afiar uma muleta de madeira para lutar contra seu captor já nos primeiros minutos do filme, em Mad Max: Estrada da Fúria, as “noivas” arriscam suas vidas para fugir com Imperator Furiosa numa alucinante perseguição. Embora seja revigorante ver mulheres enfrentarem seus algozes, é importante lembrar que situações abusivas são muito complexas e perigosas. Não é à toa que muitas mulheres permaneçam com seus parceiros abusadores e não é, como alguns dizem, porque elas gostam de apanhar, e sim, porque elas temem pelas próprias vidas. É irracional tratar de uma questão estrutural como individual. Esperar que mulheres sejam as únicas responsáveis pelo seu bem-estar dentro de uma sociedade que violenta mulheres é um pensamento simplista. Individualmente, as mulheres usam as armas que elas necessitam para sobreviver.
O conto de fadas da Gata Borralheira ilustra bem essa questão mesmo que inadvertidamente. Cinderela é encorajada pela mãe moribunda a permanecer gentil e afável. O que muitas vezes é interpretado como fraqueza e falta de personalidade é o que permite que Cinderela sobreviva aos abusos perpetuados pela madrasta e suas filhas durante toda a sua vida. O Quarto de Jack também mostra como a necessidade de sobreviver faz com que “ma” aja de forma submissa, demonstrando a consciência de que suas melhores chances para proteger a si e Jack estão na docilidade. Ela consegue escapar, e, apesar da tentativa de suicídio, sobrevive, enquanto outras não tem a mesma sorte. Em As Virgens Suicidas, as irmãs Lisbon estão todas mortas ao final do filme. Em Cinco Graças, duas das irmãs casam obrigadas, uma se mata e duas fogem, mas têm poucas perspectivas. Em A Maçã, as duas filhas que ficaram presas por onze anos dentro de casa apresentam sérios problemas de desenvolvimento, mal falam ou andam.
A recorrência do confinamento na ficção fala de um encarceramento maior e invisível, mulheres que são presas pelas amarras de uma sociedade que decreta como elas devem agir, mas não podemos esquecer que encarceramentos reais ainda acontecem. Não acredito que seja coincidência que os dramas que encaram o confinamento de forma mais realista sejam dirigidos por mulheres ou que as histórias mais desesperadoras venham de diretoras de países periféricos. A Maçã foi baseado em fatos reais e a maior parte dos atores viveram os acontecimentos retratados no filme, misturando o documental e a ficção e nos lembrando: embora possamos ver a mulher confinada como uma metáfora, não podemos escapar do fato que ela existe no mundo real.
Ilustração da Morgue.
Eu esqueci a suavidade porque ela não me serviu.
Catherynne M. Valente
Eu tenho falado de filmes de terror com certa frequência nos últimos meses e prometo que não é intencional, é só que é muito fácil contar histórias aterrorizantes protagonizadas por mulheres. Até pouco tempo atrás, esse protagonismo significava sermos mortas, estupradas, perseguidas e intimidadas, e, embora isso ainda aconteça, em alguns poucos e preciosos filmes, a moral se inverteu. Não somos mais aterrorizadas por nos comportarmos mal, nos comportamos mal por sermos aterrorizadas e essa inversão faz toda a diferença.
Mulheres que transgridem determinados preceitos e são castigadas por isso reforçam nossos valores, enquanto mulheres-monstros produto de uma sociedade tóxica nos fazem questioná-los. A Bruxa está, claramente, posicionada nesta segunda categoria, então, não é muito difícil entender por que, na sessão lotada em que assisti o filme, as reações – comunicadas com bastante ênfase – foram de negativas a indignadas.
Thomasin, a jovem protagonista do filme, é tratada desde o início como um tipo de mercadoria por sua família. Quando essa “mercadoria” começa a se mostrar inconveniente, seu despacho é abertamente discutido pelos pais da menina. A inconveniência que ela apresenta tem muito pouco a ver com qualquer comportamento que ela apresenta, e sim do que é projetado sobre ela. Thomasin é repetidas vezes acusada por membros da sua família pelas ações daqueles a sua volta. O pai vende uma taça de prata da mãe e deixa a culpa recair sobre a filha quando a ausência do objeto é sentida. A mãe está convencida de que ela está seduzindo o irmão, mas todas as vezes que vemos Caleb olhar para Thomasin com desejo, ela não parece estar ciente do fato. A primeira vez que acontece, ela está dormindo. Fica claro que o próprio corpo da menina, que começa a mostrar sinais de estar alcançando maturidade, é o seu maior pecado. “O inferno é uma garota adolescente”, afinal de contas.
Os problemas domésticos somados a acontecimentos sobrenaturais que acometem a família acarretam na histeria que leva as acusações contra a filha mais velha se tornarem em violência. “A Bruxa” que daria título ao filme é apresentada quase como um mau neutro, onipresente e imbatível. O espectador, consciente da inocência de Thomasin, é levado a observar os pais da menina como os verdadeiros vilões da história.
Ao conversar com um amiga, depois de termos assistido a Cinco Graças, falamos brevemente sobre a cena em que uma das meninas é levada ao hospital para que seja comprovada sua virgindade. Antes que o médico a examine, ele pergunta se ela já fez sexo e ela diz que sim, com várias pessoas. Após o exame, ele questiona a mentira, ela responde com um ar cansado que beira o deboche “quando digo que sou virgem, ninguém acredita”.
Cinco Graças é um drama que se passa na Turquia contemporânea, A Bruxa, nos Estados Unidos do século XVII, mas a conclusão que as adolescentes de ambos os filmes chegam não é muito diferente: estamos condenadas de uma forma ou de outra. Chega a ser um pouco trágico que esses dois filmes – o primeiro, um drama realista, o segundo, um filme de terror sobrenatural – encontrem pontos de convergência, mas o que torna A Bruxa tão apavorante, como em qualquer bom filme de terror, é justamente o fato de sua alegoria ter raízes muito reais no mundo do espectador no momento em que ele assiste. E no caso d’A Bruxa especificamente, essas raízes estão fincadas há alguns milênios: não existe monstro mais terrível do que uma mulher. Mas essa é a visão simplista a que já fomos expostos repetidas vezes, A Bruxa vai além e diz: não existe monstro mais poderoso do que uma mulher que já nasceu condenada e se entrega à perversidade de que a acusaram desde o início.
Conte uma mentira vezes o suficiente e ela se torna realidade.
(spoilers a seguir)
No final do filme, vemos toda família de Thomasin assassinada. A menina, ensanguentada, mas ainda inocente, toma o que parece ser sua primeira decisão autônoma. Ao assinar o livro do demônio, ela entrega sua alma e sentimos um alívio que se reflete no rosto extasiado de Thomasin em perceber que ela é, afinal, livre.
Ao sair do cinema, satisfeita, comecei a questionar as minhas próprias conclusões sobre a obra. Mas que liberdade é essa? Se, no final de tudo, ela não tinha nenhuma alternativa? Caso tivesse permanecido na casa isolada, morreria de fome antes do fim do inverno, se voltasse para o vilarejo, seria condenada pelo assassinato da família.
Que liberdade é essa em que falamos quando falamos em sexo livre nos dias de hoje, em que nossos corpos, ora, necessariamente castos, ora, necessariamente profanos, continuam a ser alvo de regras criadas por outras pessoas? De que liberdade estamos falando quando dizemos a mulheres mulçumanas que elas devem retirar seus véus para serem livres? Por que, ao invés de dizer o que uma mulher deve fazer, não perguntamos a ela como ela deseja viver?
A Bruxa, no final das contas, não é um filme sobre empoderamento feminino, mas não tenciona ser. O fato de seus diálogos terem sido retirados de documentos históricos sobre bruxaria serve de lembrete: a realidade e o terror, quando diz respeito a vivência feminina, são quase indistinguíveis e a liberdade ainda está muito, muito distante.
Nós conhecemos a história. Estuprada dentro do templo de Atena, Medusa é transformada pela deusa em um monstro horrível cuja visão transformaria qualquer homem em pedra. Conhecemos não porque a mitologia grega é assunto cotidiano, mas porque ainda perguntam que roupa uma mulher estava usando ao ser estuprada, porque ainda dizem que “ela estava pedindo”. Porque nas últimas semanas, temos sido bombardeadas por histórias de terror, mulheres que têm seus direitos tomados, seus corpos transformados em espaço público, um campo de batalha sangrento.
Sangue. Sangue me lembra Carrie, sangrando no chão do vestiário feminino, com medo de morrer, sem saber que “se tornou mulher”, o que quer que isso queira dizer. Carrie, reprimida, vivendo sob o jugo da mãe religiosa, seus poderes incontidos explodindo de dentro dela. “Tampa isso”, dizem as colegas, jogando absorventes na cara dela. Mas, no final, Carrie está coberta de sangue.
Os filmes de terror tem um histórico peculiar no que diz respeito às mulheres. É um dos gêneros em que somos mais representadas, entretanto, um análise crítica nos permite perceber sem grandes dificuldades que a mensagem passada não é que mulheres são protagonistas empoderadas de suas próprias histórias, e sim, que se elas não seguirem um determinado comportamento elas serão devoradas. Só interessa sermos vistas quando somos possuídas, torturadas, caçadas e mortas, então, não é de se admirar que tantas mulheres sejam apresentadas centralmente em filmes de terror. Os homens tem mortes rápidas, as mulheres são aterrorizadas longamente.
Em diversos filmes desde os anos 70, grupos de amigos são perseguidos por psicopatas e assassinados um por um até restar apenas uma sobrevivente. Uma mulher, jovem, atraente e, na maioria das vezes, virgem. Em O Exorcista (1973), a puberdade da pequena Reagan se confunde com sua possessão demoníaca, ela geme, se contorce, fala palavrões e o mais chocante: se masturba com uma cruz. A mensagem é óbvia. O diabo e a sexualidade feminina são uma coisa só.
Não é de se estranhar que todos esses filmes tenham sido dirigidos por homens. Nossas narrativas foram roubadas e deturpadas, distorcidas em moralismo contra nós mesmas. Mas e se contássemos nossas próprias histórias? O que aconteceria quando tivéssemos um teto todo nosso? Talvez então víssemos por outra perspectiva. Uma deusa, furiosa por uma mulher ter sido violentada dentro de seu templo, lhe dá uma forma impressionante, poderosa, capaz de manter longe aqueles que podem feri-la. Talvez, se a história fosse contada por uma mulher, então perceberíamos que a feiura, tão detestada, era não um castigo, mas uma dádiva. Proteção. Empoderamento. Nos filmes de terror dirigidos por mulheres, temos sido monstros, vampiras, mães imperfeitas, e é justamente quando abraçamos nossos lados sombrios que nossos corpos passam a nos pertencer.
Nossa monstruosidade, nossa feiura, ela deve ser nossa, as histórias por trás de nossas cicatrizes devem ser contadas por nós mesmas, não podemos mais deixar que elas sejam apropriadas e jogadas contra nós. Em O Riso da Medusa, Hélène Cixous diz que “a mulher deve se escrever: deve escrever sobre mulheres e trazer outras mulheres para a escrita, de onde elas foram violentamente retiradas como dos seus próprios corpos[…] Mulher deve se colocar em texto – assim como no mundo e na história – por seu próprio movimento” (tradução livre).
Então, este é o meu manifesto. Escrevam. Contem-nos sobre Perséfones que pulam no buraco ao invés de serem puxadas, sobre Medusas que são abençoadas ao invés de castigadas, sobre Reagans que se masturbam e falam palavrão e não precisam ser salvas disso, se apropriem de seus corpos, sejam poetas, monstros, mulheres, mulheres, mulheres.
Escrito ao som de Selvática da Karina Buhr e ilustrada por Morgue.
Preparem seus chapéus pontudos, é outubro! Compilamos uma pequena e singela lista para o mais aterrorizante – e divertido – dia do ano com filmes para todos os gostos, desde a comédia musical ao romance e sem deixar de fora, claro, o terror.
O Thriller
O Silêncio dos Inocentes (1991)
Direção: Jonathan Demme
Famoso por um dos mais memoráveis vilões da história do cinema, O Silêncio dos Inocentes nos traz uma dupla improvável, o psicopata canibal Hannibal Lecter e a ambiciosa, mas ingênua detetive do FBI, Clarice Starling. Juntos, os dois tentam desvendar a identidade de um serial killer conhecido pelo apelido “Buffalo Bill”, que tem esfolado suas vítimas. Ainda mais intrigante que a resolução do crime é a peculiar dinâmica que se desenvolve entre Lecter e Starling, uma intimidade inesperada e fascinante.
O Terror
The Babadook (2014)
Direção: Jennifer Kent
O filme da australiana Jennifer Kent não só é aterrorizante como também trata de temas bem espinhosos como a depressão, a maternidade solitária e o luto de forma muito habilidosa. Utilizando-se mais do suspense psicológico do que de sustos baratos, Babadook provoca uma crescente tensão nos espectadores com cada pequeno detalhe culminando num clímax surpreendente. Amantes do terror e do cinema não terão do que reclamar.
O Romântico
Garota Sombria Anda Pela Noite (2014)
Direção: Ana Lily Amirpour
Como já falamos anteriormente, esse faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros subverteu tanto o faroeste quanto o terror ao ser protagonizado por uma mulher que é tanto um monstro como uma heroína. Ela desliza com seu skate pelas ruas de Bad City a caça de homens desprezíveis ao longo da noite e ainda encontra tempo para se apaixonar pelo James Dean da cidade ao som de uma trilha sonora de morrer.
O Clássico
Noite do Terror (1974)
Direção: Bob Clark
O filme que começou a tradição da “Última Sobrevivente” nos filmes slashers é surpreendentemente progressivo em comparação aos que o seguiram. Embora a maioria das “Últimas Sobreviventes” sejam moças recatadas e virgens, nossa heroína não só está grávida como também está decidida a abortar e recusa o pedido de casamento do namorado possessivo e desequilibrado, tudo isso enquanto ela e suas amigas são aterrorizadas por um psicopata dentro da sua própria casa.
O Infantil
O Serviço de Entregas da Kiki (1989)
Direção: Hayao Miyazaki
Uma ótima pedida para as crianças – e adultos que não querem ser assustados nesse 31 de outubro – O Serviço de Entregas da Kiki é um belo filme sobre independência e maturidade protagonizado por uma jovem bruxinha que deve deixar sua casa ao completar 13 anos. Junto ao seu gato preto, Kiki conhece várias mulheres que vão ajudá-la na sua jornada de autoconhecimento em rumo ao mudo adulto.
O Musical
The Rocky Horror Picture Show
Direção: Jim Sharman
Que tal destruir paradigmas este Halloween? The Rocky Horror Picture Show nos introduz a um mundo estranho, onde os moradores andróginos do castelo do Dr. Frank-N-Fruter vão apagar todas as concepções monogâmicas e binárias heteronormativas de um jovem casal de noivos. Com passar dos anos e a crescente popularidade do filme, suas sessões à meia-noite em salas de cinema ao redor do mundo ficaram famosas pela participação ativa espectadores, homens e mulheres se vestindo de Dr. Frank, cientista que desafia qualquer tentativa de enquadrá-lo em um gênero específico.
Alguém bate à porta. Baba-dook-dook-dook. Antes que se perceba, ele está na sua casa, no quarto do seu filho, dentro de você. Ele não te deixa trabalhar, dormir ou mesmo pensar.
No filme de Jennifer Kent, somos envolvidos por uma alegoria protagonizada por Amelia, cujo filho, Samuel, nascido no mesmo dia da morte do pai, possui uma estranha obsessão por monstros que começa a se tornar violenta. A estrutura narrativa do filme conta com um recurso bastante eficaz: mãe e filho são reflexo um do outro. Os dois tem pesadelos, dificuldades em seus respectivos ambientes (escola/trabalho) e brigas com familiares paralelamente. A diferença entre eles e o que despista o espectador é a oposição de seus temperamentos. Amelia é uma mulher doce e cansada, Samuel aparenta ser uma criança perturbada com ecos de Kevin Khatchadourian. O uso de paralelos em todos os outros aspectos nos previne sobre o que nos aguarda: mãe e filho trocarão de lugar em algum momento.
Mais que um recurso narrativo, as crescentes pressões sob Amelia fazem parte do cotidiano de muitas mães solteiras. O julgamento dos desconhecidos, isolamento do resto da família, a sobrecarga de problemas na escola e o uso de medicamentos para dormir não são nenhum segredo, e um tema surpreendentemente apropriado para um filme de terror.
A abordagem da maternidade em Babadook merece destaque particular. O filme traça uma linha muito tênue ao representar a monstruosidade de Amelia juntamente a sua humanidade. No começo vemos uma mãe dedicada exclusivamente ao filho, meiga, e paciente. Aos poucos, percebemos que ela possui desejos próprios que estão além de sua identidade como mãe, o que é inaceitável para sociedade em que estamos inseridas, por isso, poderíamos facilmente interpretar esses desejos como a fonte da sua perversidade posterior. Entretanto, não é isso que acontece. O Babadook não é a mãe imperfeita, defeituosa, e sim o medo de sê-la, as expectativas sociais, a depressão e o luto e é isso que a nossa protagonista deve enfrentar para se ver salva ou, ao menos, temporariamente liberta.