Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

ADENTRAR A DISTOPIA/UTOPIA DO OUTRO: DIVINO AMOR

O universo criado pelo diretor pernambucano Gabriel Mascaro em seu último longa-metragem, intitulado Divino Amor, não está tão distante do nosso. O filme se passa no futuro recente: o ano é 2027 e não há mais Carnaval. Ao invés disso, comemora-se a festa do Amor Supremo, uma espécie de rave evangélica. Apesar da mudança de propósito e da forma da nova maior festa brasileira, podemos encontrar pontos em comum entre o Carnaval e a festa do Amor Supremo: a euforia dos corpos, a alegria encontrada na música, a busca por transcendência.

Nesse contexto, somos apresentados a Joana, interpretada por Dira Paes, uma funcionária pública que trabalha no registro de divórcios. Joana procura aconselhar os casais para que eles não se divorciem e crê que, com esse serviço prestado a Deus, Ele lhe concederá um milagre. O filme, assim, abre caminho para diferentes subjetividades, partindo de uma posição de não-julgamento e com enormes possibilidades de interpretação.

Um filme de personagem? Mascaro disse sobre Dira Paes: “É uma atriz muito mágica, cinéfila, intelectual, pensadora, mas ao mesmo tempo muito intensa. Ela não julga a personagem. Este é um filme sobre fé, e eu precisava muito de uma pessoa como ela, sem preconceitos”. Paes destrói a dicotomia da puta e da santa tão presente no cânone ocidental: é uma mulher de fé, crente, sexualmente liberada e participante de orgias. Ela contém multidões.

Um filme distópico ou utópico? Depende de onde se coloca o espectador, já que o filme evita o olhar de julgamento. As coisas não parecem tão ruins: há um clima melancólico, mas a sociedade de Divino Amor é aparentemente pacífica e estável. Enquanto espectador que acredita que aquela seria uma sociedade distópica, é possível entender como outras pessoas poderiam ver uma utopia ali e vice versa.

Um filme neon? Sim, mas não apenas. Há o aspecto performático das reuniões do amor divino que Joana e seu marido frequentam, das raves sagradas, do drive-thru da oração. Fora daquilo, a sociedade mostrada é burocrática, as casas todas iguais, os prédios de concreto lembram Brasília, há uma ideia ultrapassada de futuro. Já não é um futuro que traz muita esperança.

Um filme futurista? “O Estado ainda se diz laico”, diz o narrador. É algo que já faz sentido hoje em dia. Ou seja, é um futuro “recente”. Um dos sinais do futuro: uma máquina semelhante a um detector de metais acusa o estado civil das pessoas e é capaz de detectar gravidez nas mulheres. E mais: se o bebê tem registro paterno ou não. É um controle biopolítico.

Um filme de suingue? “Quem ama, não trai. Quem ama, divide”. Para estimular a concepção de bebês e começar a “família tradicional brasileira”, a inseminação artificial não é considerada como uma possibilidade, é necessário que a concepção aconteça de forma “natural”, nem que isso seja feito a partir de uma troca de casais. O orgia é justificada pela religião, o que nos leva a crer que seres humanos sempre vão encontrar uma forma de fazer um suingue.

Um filme de amor? Não estamos mais na era da razão. Hoje, nós nos apoiamos até mesmo politicamente através dos afetos, e isso está presente nas reuniões do Divino Amor. E de que amor estamos falando? Na sociedade de Divino Amor, a lógica do amor romântico dá lugar a outro tipo de regulamentação das trocas afetivas. O amor divino, a serviço de algo maior, é que media as relações e justifica os atos. A distopia aqui é a perda da subjetividade, dos direitos individuais. E nós temos sementes para esse tipo de futuro na sociedade brasileira. “Tudo que é feito em amor a deus não pode ser pecado”.

Um filme de sexo? Há espaço para o erotismo no amor divino. As cenas de sexo, no entanto, provocam estranhamento. O aspecto da “animalidade dos corpos”, do distanciamento da câmera, provoca sensualidade ou não? Há uma transcendência divina no ato sexual dentro da performance do suingue sagrado. Joana, em especial, realmente acredita que é um ato de fé. Ela se pergunta: “será que meu pecado é amar demais?”

Um filme sem respostas fáceis? Joana transcende inclusive aquela sociedade. Com a gravidez de pai desconhecido, ela se torna marginalizada. Joana se torna uma espécie de santa, que sacrifica a própria família em nome de um amor transcendental e, paradoxalmente, incompreensível para todos. O mundo aguardava a volta do messias e é Joana que traz a provável semente da mudança.

Uma filme crítico à religião evangélica? Mais que uma crítica, um convite a imaginar possibilidades. E se a religião virar parte do Estado, o que acontece com ela? Em Divino Amor, a fé burocratizada pelo peso das instituições se torna artificial, melancólica; é necessário buscar a transcendência pelas celebrações, pela rave evangélica, pela orgia religiosa. A religião se apropria de ferramentas do “mundo”.

Um filme de gênero? Mascaro disse em entrevista: “[O longa-metragem anterior] Boi Neon era uma alegoria muito material em função do espetáculo do evento. Agora é diferente. Eu tinha o desafio de pensar uma religião que negou a tradição da arte sacra, é uma religião antimatéria”. Na sua construção de um mundo evangélico estético do futuro próximo, ele se aproxima por vezes da ficção científica, embora o filme evada classificações simples.

Um filme ousado? É um filme que, como outras obras brasileiras recentes, se arrisca a pensar possibilidades para a conjuntura política e social que está se desenhando no presente, um filme que precisa ser revisitado no futuro, à luz do Brasil que nascerá deste momento muito específico que estamos vivendo.


Letícia e Glênis, duas das editoras do Verberenas, assistiram ao filme de Mascaro e se reuniram para conversar em um episódio do podcast méxi-ap (disponível aqui). O presente texto é um desdobramento desse diálogo, publicado originalmente em 2 de julho de 2019.

PERFUMES, LANTEJOULAS E DESVIOS: BOI NEON

Muito se falou sobre como Boi Neon, o mais recente filme do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, desfaz estereótipos de gênero e sobre como mostra um nordeste pop, um nordeste moderno e ousado, distante de clichês sobre o sertão brasileiro. É verdade: as cores fluorescentes e os dourados e os vermelhos intensos que enchem a tela do cinema nos remetem a um nordeste que a gente conhece, sabe que existe, mas não costuma ver retratado em arte, ou ao menos não na arte que mais apetece parte da classe média brasileira. Mas isso está mudando. Esperemos que mude de forma a não gentrificar as músicas e cenários e vivências para burguês ver. Quando assisto alguns dos filmes brasileiros contemporâneos que ressignificam essas experiências, esse é um debate que retorna à cabeça.

A questão de gênero permeia o filme todo e interessa que um dos caras tenha um cabelo longo e o outro goste de desenhar roupas ao ponto de desenhá-las por cima do nu da foto pornográfica de revista. Interessa que a mãe seja uma mãe da vida real, que de vez em quando se irrita com a criança e que possui vida própria. Interessa que a menina se interesse pelos animais e prefira ficar “perto de bosta de cavalo” a ficar com a mãe na cozinha. Não chega a ser tão questionador como alguns de seus outros filmes, mas importa pois além de tornar o filme mais rico, os personagens mais complexos e tridimensionais, acrescenta aos sinais que se acumulam nas entrelinhas.

Mascaro parece estar interessado em mostrar os animais. O boi, a vaca, o cavalo. Boa parte dos planos do filme nos presenteiam com essas imagens: é o gado confinado entre grades em um caminhão, andando pelo cerco estreito, sendo preso e irritado antes da vaquejada, sendo violentado na vaquejada. São os animais sempre entre pedaços de madeira, de ferro, entrando, ficando presos, até que um humano abre a porta. São os cavalos se reproduzindo, o preço do sêmen de cavalo de raça. Reprodução, alimentação, morte. Todo o ciclo de vida desses animais está ali, enquanto Iremar (Juliano Cazarré) e Junior (Vinícius de Oliveira) conversam, enquanto a vendedora de perfumes aparece, enquanto Galega transa na calada da noite.

Outra recorrência no filme são justamente as imagens que remetem a sexualidade dos corpos. Seja Galega (Maeve Jinkings) dançando em uma boate cheia de homens que parecem completamente enlouquecidos por ela, seja ela flertando com um vendedor de calcinhas ou Iremar abrindo uma revista pornô melecada de porra; até as cenas de sexo de fato. Uma delas, com os bois ao fundo, mugindo. O que Mascaro quer dizer?

Saí do filme pensando nas artificialidades que impomos aos animais e como impomos isso a nós mesmos, a nossa própria espécie. Temos nosso próprio cerco, nossos próprios estereótipos, nossa própria ideia de reprodução, de homem e mulher, que sentimos que devemos seguir. Ninguém fecha a porteira de madeira na nossa frente para que a gente não avance, ou, ao menos, não exatamente. Mas a gente não avança, pois aprendeu bem.

Eis que, em Boi Neon, os personagens avançam. E em uma cena de dez minutos cuidadosamente capturada, de iluminação e mise-en-scéne impecáveis, Iremar transa com Geise, uma mulher grávida, longamente, até que ela goza e ele também. Importante: ela está grávida. Importante: ela goza.

O gado não merece o cerco de utilitarismo que colocamos ao redor dele.

Nós também não.