Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

PIPILOTTI RIST NÃO SENTE FALTA

No presente ensaio são consideradas três instâncias do corpo: o corpo teorizado por estudos filosóficos, o corpo em cena da artista aqui estudada e o corpo da pesquisadora: meu corpo. Para isso, foi preciso, por alguns momentos, superar minha vergonha de ter um corpo.    

A partir da minha visita à Exposição ELLES: mulheres artistas na coleção do Centro Pompidou, que ocorreu em 2014 no CCBB em Belo Horizonte, minha visão sobre o espaço ocupado pelas mulheres nas artes foi definitivamente alterada. Uma das obras ali expostas me perturbou mais do que as demais. De longe ouvi que alguns garotos gargalhavam na sala da exposição, atraindo curiosos: o riso, aqui num tom de deboche e desaprovação masculina. Me aproximei das cortinas vermelhas, sem fazer ideia do que me esperava – e lá estava ela, descabelada, desfocada e gigante no telão.

Em 1962, nascia Elisabeth Rist e minha mãe também. No mesmo ano, Charles Schulz lançou um livro com os personagens de Peanuts, chamado Happiness Is a Warm Puppy (A felicidade é um cachorrinho fofo), frase da Lucy em uma das tirinhas da turma do Charlie Brown. Em 1968, John Lennon vê o slogan de um artigo numa revista sobre armas, uma paródia à tirinha do Snoopy, e assim batiza uma música nova dos Beatles: Happiness Is a Warm Gun. O músico nega que as metáforas da letra se refiram a seu vício em heroína. Segundo ele, a composição é sobre a adrenalina de ter acabado de atirar em algo, como reforçou Belchior ao inserir a tradução “a felicidade é uma arma quente” em uma de suas canções. Em 1980, Lennon foi assassinado.

Seis anos depois, em 1986, ano anterior ao meu surgimento no líquido amniótico, aos 24 anos, Pipilotti Rist1, então estudante universitária, gravou um vídeo para participar de um festival. A introdução da música dos Beatles: “She’s not the girl who misses much” é apropriada e reescrita para primeira pessoa e se torna o título do curta: I’m not the girl who misses much, verso que Rist canta repetidamente, como uma espécie de mantra macabro do qual ela faz questão de se convencer. 

Ao longo de sua carreira, Rist sempre teve uma ligação forte com música: ela foi integrante da banda Les Reines Prochaines e frequentemente canta nas trilhas sonoras de seus trabalhos. Sua voz distorcida no curta de 86 é mais um elemento que oculta e difunde qualquer ideia de identidade: o som que ela emite varia do extremamente agudo e feminino/infantil ao gutural grave masculino/adulto. Tais distorções fazem lembrar o efeito que modificava vozes em depoimentos de suspeitos de crimes ou de testemunhas anônimas em noticiários de TV dos anos 90. A sonoplastia é incômoda por remeter a figuras estereotipadas, como uma criança birrenta ou uma mulher histérica, com toda a carga pejorativa patriarcal que o termo evoca.

Rist está usando um vestido preto decotado, que ela posiciona de modo a deixar seus seios descobertos, além de um vívido batom vermelho em seus lábios: sistema muro branco/buraco negro da rostidade de Deleuze.2 Os poucos elementos perceptíveis em seu aspecto a ligam a um estereótipo de feminilidade sexualizada por ela mesma ou por outrem? e provocante, como uma boneca de corda, brinquedo que precisa ser manipulado para funcionar. Seus cabelos negros bagunçados formam mais um signo ligado à histeria, delicada palavra para esta doença mental.

O efeito esmaecido e sem nitidez causa o desconforto pela indeterminação do ser. Nas imagens monocromáticas que evocam uma fita VHS proibida e maldita em contraste com o azul, blue movie, o vermelho adiciona um filtro de sangue, horror, quando Rist se posiciona com os braços abertos, como que crucificada na parede. Ela dança em momentos ritualísticos, de possessão semelhante aos espasmos da tarantela e sorri um sorriso sardônico. Seu corpo não forma uma imagem assimilável, o que a torna a evidência de um movimento aberrante: uma aberração. Quando ela sorri, também afirma, de forma subversiva. Seu rosto é como um corpo sem órgãos, desorganizado, monstruoso.

A respeito da nomenclatura para se referir a I’m not the girl who misses much, as distinções entre vídeo e curta terminologia que adotei aqui são exploradas por Philippe Dubois em Cinema, vídeo, Godard3:

um sistema de imagens tecnológicas que sempre teve problemas de identidade: o vídeo, esta ‘antiga última tecnologia’, que parece menos um meio em si do que um intermediário, ou mesmo um intermédio, tanto em um plano histórico e econômico (o vídeo surgiu entre o cinema, que o precedeu, e a imagem infográfica, que logo o superou e alijou, como se ele nunca tivesse passado de um parêntese frágil, transitório e marginal entre dois universos de imagens fortes e decisivos) quanto em um plano técnico (o vídeo pertence à imagem eletrônica, embora a sua seja ainda analógica) ou estético (ele se movimenta entre a ficção e o real, entre o filme e a televisão, entre a arte e a comunicação, etc.). Os únicos terrenos em que foi verdadeiramente explorado em si mesmo, em suas formas e modalidades explícitas, foram o dos artistas (a videoarte) e o da intimidade singular (o vídeo familiar ou o vídeo privado, o do documentário autobiográfico, etc.). Ele constitui, portanto, um ‘pequeno objeto’, flutuante, mal determinado, que não tem por trás de si uma verdadeira e ampla tradição de pesquisa. 

Me pergunto quais técnicas Pipilotti dispunha quando criou sua primeira obra. Àquela época, creio na possibilidade de uma destruição de negativos originais, como fazia Man Ray de forma artesanal nos anos 20. Salvas as devidas proporções tecnológicas, Rist interferiu na película, desenhando em sua velocidade, num movimento de rebobinar (RWD) e avançar (FFWD) permanente. Tais interferências realizadas na pós-produção deixam suas expressões e formas indistintas. A ausência narrativa e as imagens de Rist também se assemelham às de Man Ray em seu curta Estrela do Mar (1928), pois são difusas e têm algo de pictóricas, impressionistas. E assim, é como se ela segurasse um controle remoto em suas mãos, ela se apropria do controle sobre a performance de seu corpo, filmado em primeiro plano. A quebra da quarta parede é um recurso utilizado por Rist para criar certa cumplicidade com o espectador, além de conferir uma certa materialidade à fita: o que nós vemos, o que nos olha.4 Ela sabe que estoy aqui, o que aumenta meu pavor diante dela.

A música original é inserida ao final, rumo ao terceiro ato. Os primeiros versos da introdução suave promovem uma breve descrição distanciada de um ser feminino: “Ela conhece bem o toque da mão de veludo, como um lagarto na vidraça de uma janela”, emoldurada pelas guitarras distorcidas que logo surgem. A voz de Lennon proporciona um conforto, um alívio, pois soa familiar e possibilita um ritornelo diegético. A realidade normativa invade a cena do vídeo e Rist veste sua camiseta. Quando seu rosto torna-se mais visível e ao vestir outra roupa, a obra faz rizoma com o real. Ela cobre o corpo nu e sai do ambiente branco e vazio, mostrando que outros movimentos são possíveis: está pronta para criar novas linhas de fuga. Árvores balançando ao vento são mostradas através da janela, recorte de cena da natureza que afirma possibilidades da vida além das imagens perturbadoras.

Tenho me defrontado com este curta desde aquela época. As poucas pesquisas nacionais que encontrei apresentam alguns fragmentos de interpretação, mas quase nada sobre o dispositivo e as técnicas de vídeo utilizadas por Rist. Entre elas, Gomes (2009), em seu estudo O retrato e a relação com os dispositivos, destaca no curta de Rist “a distância de anos entre o momento em que a música foi lançada e o momento em que foi reinterpretada; a separação entre a performance ‘desengonçada’ da artista e a suavidade da interpretação da versão original; a paródia performática das gestualidades típicas das dançarinas dos anos 60”. Já Fortuna (2012) lembra que a artista “usa efeitos visuais, como o desfoque, para desgastar a imagem e tornar o reconhecimento impossível”.5  

O vídeo me provoca uma perturbação e fascinação diante das imagens, semelhante ao que senti quando ainda criança me deparei com Convenção das Bruxas (1990), com Anjelica Huston: meu medo infantil se tornou uma obsessão que me levou a assistir à fita diversas vezes. Sinto algo próximo ao assistir produções como o curta dentro do terror mainstream O Chamado (2002), de Gore Verbinski, como se o telefone pudesse tocar a qualquer momento. As primeiras jovens que aparecem na tela resumem a proposta crítica do longa, a ameaça de morte, leitmotiv de quase toda produção horrorífica, em uma conversa diante do aparelho televisivo. “Detesto televisão, me dá dor de cabeça” inicia a primeira delas, que continua:

Há tantas ondas magnéticas no ar por causa da TV e dos telefones que estamos a perder dez vezes mais células cerebrais do que deveríamos. As moléculas da nossa cabeça estão todas em desequilíbrio. Todas as companhias sabem disso, mas não fazem nada. É como uma conspiração. Você faz ideia de quantas ondas eletromagnéticas passam pela nossa cabeça por segundo?” conclui, ao que responde a amiga: “Tenho uma história melhor: Já ouviu falar da fita de vídeo que te mata quando você a assiste? As pessoas a alugam, parece. É como assistir a um pesadelo de alguém. De repente, aparece uma mulher, que te sorri, que está te vendo através da tela. Quando acaba, seu telefone toca: alguém sabe que a viu, e te dizem: “Dentro de 7 dias, você vai morrer”. 

She’s got a ticket to ride 

Em uma das poucas entrevistas que encontrei sobre o vídeo, realizada em 2011 e transcrita abaixo, Rist nos convida a refletir sobre o conforto nas sociedades contemporâneas isso claro, a partir do lugar de fala de uma mulher branca em um país como a Suécia, em um contexto muito diferente do atual. A artista alega que ainda considera I’m Not the Girl Who Misses Much (1986) o seu melhor trabalho, este que mais tarde a consagrou como a pioneira suíça da videoarte: “Acho que é o único trabalho bom que já fiz”. Ela inicia sua fala assim, e ri, muito. 

Naquela época eu não pensava em me tornar uma artista, eu enviei o vídeo para o National Film Festival com o único motivo de conseguir um ingresso grátis para ver o Festival de Cinema. Metade do som estava na faixa de áudio 1 e o restante estava na faixa de áudio 2, mas eles só conectaram a faixa de áudio 1 no momento da exibição. Então quando estava na metade eu me levantei na sala de projeção e fiz tudo isso sozinha [ela se levanta e imita os gestos das mãos, querendo dizer que dublou a si mesma, para preencher o som que faltava]. Eles reagiram muito emocionados, disseram “você me tocou extremamente”. Foi nesse momento que fui notada pela cena do cinema experimental, mas eu ainda estava muito longe das Belas Artes ou algo do tipo, era um filme experimental. Isso aconteceu antes da MTV, […] não havia distribuição, exceto no Festival de Cinema. Para mim, a memória desse trabalho está ligada às centenas de reações que recebi. Me disseram que se viram de forma absoluta nele e isso é o que eu espero da obra de arte: a identificação completa dos espectadores. É como uma boa canção, você não consegue mais distinguir entre você e a canção ao ouvi-la. No contexto que temos na sociedade moderna, muitas vezes tenho a sensação de que somos como fantoches […]. Se pensamos que não fomos nós que seguramos as próprias cordas, então nos perguntamos: ‘Quem diabos foi que nos guiou?’ Então, se esse vídeo nos ajuda a pensar que estamos sendo forçados a nos mover dessa forma, que poderíamos fazer de forma diferente, se você considerar sua situação e quais serão seus próximos passos, então acho que este trabalho tem uma razão para existir […]. Há outras camadas no trabalho, claro, há a parte do exorcismo. Nós somos muito bons em nos colocarmos para baixo. Vivemos em sociedades muito confortáveis, mas temos a tendência de tornar nossos pequenos problemas ENORMES […]. Não estamos num momento crítico que teremos que abrir mão de todo esse conforto. Este vídeo nos ajuda a nos colocar pra cima. Não devemos pensar no que nos falta, mas no que temos. Este vídeo nos ajuda e ajudou a mim mesma a fazer um exorcismo positivo (tradução nossa). 

Ainda nessa entrevista, quando Rist lembra que seu primeiro trabalho é anterior à MTV, é possível pensá-lo como uma espécie de vanguarda do videoclipe, linguagem influenciada pela videoarte de modo geral. Há quebras e fases diferentes no curta, como na música, que em vários momentos foge ao compasso 4/4, padrão musical ocidental. “O conhecimento e a arte podem iluminar as pessoas e fazê-las pensar democraticamente e torná-las menos vulneráveis ​​ao uso indevido de poder. Quero contribuir com um centímetro para essa tendência”, disse a artista. Nesta outra declaração sobre o curta, feita em 2007 ao centro Pompidou, Rist é mais específica quanto à sua intencionalidade:

Neste vídeo as figuras flutuam no ar […]. Com uma espécie de soberania, se redescobre o estado primitivo da existência. Com esse trabalho, pretendo criar um flash de consciência na mente dos espectadores que deveria fazê-los sentir um tipo de suavidade em relação a eles mesmos, com o intuito de relativizar seus problemas pessoais. O vídeo flutua entre o microcosmo e o macrocosmo de forma tal que novas abordagens se abrem para temas tão complexos como a digestão de impressões, nossas origens no líquido amniótico, a hipótese do purgatório e o sistema econômico. Espera-se que os espectadores cheguem a um estado de incerteza em que de repente muitas [outras] coisas parecem possíveis.6   

O vídeo completo tem pouco mais de 5 minutos, mas está sem áudio no YouTube parece parte da maldição da fita mal assombrada o que a torna muito menos perturbadora. Não temos Rist para levantar na sessão e dublar a si mesma. Tive o privilégio de assistir a obra completa e na tela grande da exposição. Apesar de considerá-lo um objeto de fascinação, meu primeiro contato com este vídeo visceral me deixou agoniada por muitos dias, tendo visões noturnas da protagonista. O vídeo que está disponível com áudio no YouTube tem 2:46, uma amostra fragmentada da minha experiência. A lembrança fiel é impossível e ilusória, resta trabalharmos com as sobras. 

José Gil (1980) define a espontaneidade como “a manifestação da energia num corpo não codificado” e lembra que nos estudos corporais se comete uma “violência real sobre o corpo: quanto mais sobre ele se fala, menos ele existe por si próprio” 7Gil considera que “a gratuidade e o carácter de jogo absoluto da dança só são obtidos a preço de uma libertação dos constrangimentos corporais” e para Nóbrega (2010), “nem tudo na linguagem é consciente ou pensado, porém, precisa ser vivido para adquirir sentido”. 8Para colocar tais conceitos em prática, durante a disciplina Poéticas do Corpo, ministrada pela professora Olga Valeska em 2017 no mestrado em Linguagens do CEFET, no intuito de superar meu pânico relacionado ao curta, me propus a não apenas encarar o objeto de frente como estudá-lo e incorporá-lo.   

No momento da recriação do curta, mantive meu celular fixo por um tripé que segurava o aparelho a determinada distância e gravei alguns vídeos individuais de teste para posteriormente selecionar os melhores trechos na montagem. Adaptei filtros físicos, não digitais, como uma tampa vermelha transparente e um plástico que envolvia a lente deixando a tela azul clara. A câmera de qualidade baixa que eu tinha disponível me renderia imagens intencionalmente nebulosas. Nesse sentido, em defesa de produções que não estejam necessariamente em alta resolução, Hito Steyerl STEYERL,9  critica a hierarquia contemporânea de imagens: O foco é identificado como uma posição de classe, uma posição de facilidade e privilégio, enquanto estar fora de foco diminui o valor de uma pessoa como imagem” (tradução nossa). 

Como trilha sonora, escolhi a faixa Bull In The Heather, do Sonic Youth, que teve uma importância na minha juventude bem maior do que os Beatles, além de ser cantada por uma mulher, Kim Gordon. Em meados de 2004 eu tinha um CD pirata e arranhado da banda, que começava a pular em determinado momento, e retomar a faixa corrompida me traz nostalgia desses tempos. Além disso, as distorções de guitarra combinam com a textura destruída do vídeo de Rist, que eu procurei emular no meu. Cantei a tradução para o português da primeira parte “ten, twenty, thirty, forty” e a partir do refrão continuei em inglês. A edição no After Effects simulou efeitos como o glitch e demais interferências na fita de vídeo cassete. Rodrigo Bomfim Oliveira (2011), em Hibridismo das linguagens audiovisuais, considera o vídeo como “importante artefato cultural na construção de uma estética imbuída de características impuras, não normativas”: 

Com os dispositivos das novas tecnologias, o cinema parece bem mais próximo do público, que imprime suas avaliações por meio de comunidades virtuais, parodia as obras no YouTube e cria vídeos de tipografia cinética com diálogos dos filmes editados em softwares básicos. Assim, embora ainda haja diversos problemas quanto à produção e distribuição de longas-metragens no cenário brasileiro, o cinema tornou-se factível. Afinal de contas, habitam em blogs e sites de compartilhamento audiovisual curtas-metragens de iniciantes, feitos com equipamentos de baixo custo e editados em casa. Além do mais, muitos desses filmes ganham destaque em festivais alternativos em torno do mundo.10

Meu vídeo tem alívios cômicos que me fazem gargalhar principalmente das minhas vozes fininhas distorcidas (pelo programa Audacity). O riso aqui é afirmativo e foi catártico no sentido de me lembrar de que Rist também era uma humana de carne e osso em processo de criação e não um espírito assustador de uma garota presa numa fita de vídeo, como Samara n’O Chamado.

Depois desse processo, me desespero menos ao ler o nome do curta de Rist, que descobri mexer comigo principalmente devido ao horror do corpo feminino fragmentado, jovem e efêmero, não presente em toda sua previsibilidade no espaço tempo, e não presente em corpo físico para sempre. A partir disso, notei como o link com o verso por mim cantado (“10 20 30 40”) foi eficiente, pois mostra a passagem do tempo inscrita no corpo da mulher que envelhece. Dessa forma, reuni dança, canto e performance no meu caótico e catártico vídeo intitulado 101 2 304 0.

Sinto um misto de vergonha e orgulho ao reassistir meu experimento, quase 4 anos depois. Confesso que esperava algum comentário de choque de alguém que esbarrasse acidentalmente nele em algum vídeo relacionado no YouTube (algo como “estou na deep web?”), mas não obtive mais que 69 visualizações até o momento em que escrevo. Nessa espécie de fracasso bem sucedido, reconheço minha coragem e ousadia no empenho de uma criação de algo diferente, que reverencia11 a obra de Rist, sem propor uma repetição desta. Não foi intencional, mas ao final do vídeo, filmada em preto e branco, me pareço mais com Thom Yorke, do Radiohead, dançando Lotus Flower, uma das partes mais dissociadas do original. 

I need a fix ‘cause I’m going down

Por fim, considero o primeiro trabalho de Rist como um curta de terror experimental. Para Carroll (1999), o horror “é uma força de atração, pois convida à interrogação (…) uma parte suficiente é deixada na ambiguidade para que não possamos, em sã consciência, aceitá-la com plena convicção (…) Queremos ver o incomum, ainda que ele seja, ao mesmo tempo, repelente”.12Desse modo, na construção do horror, muito é deixado irresoluto, sem resposta, e assim, I’m not the girl who misses much conserva a eficácia estética e continua a carregar toda a violência e a virulência de quando foi concebido. 

A presença criada por Rist é monstruosa, pois em sua indeterminação se afasta do humano, ainda que ela afirme a condição de mulher. As imagens não têm sentido, são etéreas. A personagem vira pixel, aparição transcendental, um fantasma digital eternizado na película. Continuo sem respostas, continuo me perguntando: por que ela continua a me aterrorizar tanto? Meu medo é o medo da vulnerabilidade a que me expõe o riso alheio? 

É possível discutir o horror, mas não é preciso compreender a simbologia dos signos evocados pela obra para uma experiência completa de apreciação. Aqui não são muitos, pois o curta prioriza a opacidade: “Não há nada a explicar, nada a interpretar”.13 Nesses tempos distópicos em que meu cérebro parece funcionar flutuando em um jarro e meu corpo está quase atrofiado pelo sedentarismo compulsório do confinamento pandêmico, eu quis retomar essa história corpórea também pelo medo da morte, eu quis tirar potências de escrituras e danças das gavetas virtuais e enviá-las para as nuvens.