Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

O QUE VEIO ANTES, O MONSTRO OU A SOLIDÃO?

Sempre me surpreendo quando o horror é tratado como um gênero apolítico e distanciado da realidade. Entendo que o uso de artifícios e metáforas para tratar dos nossos medos e ansiedades possam parecer um apelo a sentimentos poucos racionais, mas, observando os debates políticos, me parece que são justamente as emoções que mais têm ganhado adeptos de todos os lados da disputa. E isso não acontece só em eleições tão polarizadas quanto as que tivemos em outubro. Mesmo quando tomamos decisões a partir da razão, nos apegamos a nossas escolhas de forma apaixonada, procuramos pelos afetos que corroborem nossas convicções.

Falar sobre o irracional, o inconsciente, o que nos amedronta, isso não é se esquivar da realidade, é admitir e abraçar o fato de que somos movidos por forças mais complexas do que o pensamento lógico consegue abarcar. Como podemos dar as costas para um gênero que fala sobre o medo quando esse é o sentimento motivador de boa parte dos eleitores brasileiros? Alguns têm medo da ameaça comunista, outros das feministas, outros do fascismo, da misoginia, do racismo. Os medos existem de todos os lados, mas eles representam modos de ver, pensar e sentir muito diferentes e isso pode e deve ser examinado pelo horror. Onde nasce o medo? Quem são nossos monstros?

Já há algum tempo os monstros no cinema não são mais os mesmos dos filmes de horror do começo do século XX. Se antes eles representavam o perigo da floresta, o desconhecido, o Outro, os monstros têm estado cada vez mais próximos de nós. Eles têm sido protagonistas, heróis e anti-heróis, interesses românticos, amadas criaturas em animações infantis. A monstruosidade que diferencia os corpos aceitáveis daqueles que não o são, essa monstruosidade é algo que muitos de nós compreendemos. O corpo negro, o corpo gordo, o corpo queer, o corpo insubmisso da mulher, corpos que se atrevem a existir apesar da constante ameaça de apagamento e extermínio, esses corpos compartilham uma inadequação num mundo repressivo e conservador que encontra muitos paralelos nos monstros. E enquanto a forma monstruosa tem sido vista por uma luz cada vez mais positiva no cinema, nossos medos têm se voltado cada vez mais para nós mesmos. Como escreveu Angela Carter, ‘os piores lobos são peludos por dentro’.

Quando falo de um medo voltado para nós mesmos, não me refiro apenas a questões do indivíduo, mas a movimentos estruturais da sociedade de que fazemos parte e que mantemos em funcionamento. O medo voltado para nós mesmos diz respeito a nossa solidão, nossas doenças mentais, nossa desconexão, mas esses são apenas sintomas de um problema maior que se relaciona menos com o indivíduo e mais em como se organizam as relações humanas na contemporaneidade.

No curta-metragem da diretora Gabriela Amaral Almeida A Mão que Afaga, uma agente de telemarketing prepara a festa de aniversário de nove anos do filho. As referências ao horror na linguagem do filme causam um desconforto que provoca mais riso que medo, a inaptidão social de Estela (interpretada por Luciana Paes) assim como a iluminação dramática das cenas do apartamento apontam para o horror e o absurdo do cotidiano com um humor ácido. O verdadeiro pavor para mim, entretanto, está nas cenas de Estela no trabalho, onde vemos vários rostos e vozes indistintas que ligam para pessoas que nunca conhecerão, pessoas que se sentem no direito de hostilizar e humilhar os agentes de telemarketing porque esqueceram que existem pessoas com sentimentos do outro lado da linha. A busca por conexão de Estela é cômica, trágica e dolorosamente humana. Essa humanidade, tão frágil e tão rara, é também o que se perde e o que se procura no mais recente filme de Almeida, A Sombra do Pai, exibido no Festival de Brasília deste ano.

O longa é marcado por ausências. Dalva de 9 anos tem que lidar com a ausência da mãe que faleceu, a iminente ausência da tia que vai casar e deixá-la e a ausência do pai que está sempre trabalhando. A ausência de Jorge, o pai de Dalva, como bem ilustra o título, deixa uma sombra: seu corpo. Depois do cadáver da esposa ser exumado, ao invés de ir para casa lidar com seu luto, Jorge volta ao trabalho. Depois que sua irmã deixa sua casa, ao invés de ficar com a filha, Jorge volta a trabalhar. Jorge não é mais uma pessoa, é uma máquina, um corpo que não processa dores ou alegrias, apenas trabalha ininterruptamente até adoecer e esquecer que um dia foi gente.

Se os zumbis de George A. Romero representavam as massas consumistas e descerebradas caminhando em direção a shoppings em grandes grupos, o zumbi de Almeida é solitário, ao invés de consumir, ele apenas produz, não lhe falta o cérebro e sim sua alma. Mais que a ausência material, o que se sente é a perda dos afetos, enquanto Jorge continua seu interminável trabalho maquinizado e hostil, o trabalho emocional que exigimos que as mulheres exerçam não pode ser executado, as mulheres se vão, morrem, fica Dalva, ainda menina e relegada a carregar todo o peso desse trabalho ingrato. Ela é capaz de fazer algumas tarefas de casa, mas precisa conjurar forças sobrenaturais para suprir suas carências mais profundas.

Para Dalva, os filmes de horror de madrugada, a trança de sua mãe morta, suas pequenas bruxarias, é ali que ela encontra algum grau de controle no mundo. Seu conforto está no que se convencionalmente atribui um caráter repulsivo, trata-se de uma estranheza familiar, uma conexão com o irracional e o abjeto que a mantém mais próxima da humanidade do que o mundo civilizado e industrial de seu pai é capaz. E não é essa uma das grandes contradições da contemporaneidade? Quanto mais nos agrupamos em cidades gigantescas, mais solitários nos sentimos. Quanto mais próximos do mundo construídos pelos homens, mais longe nos encontramos da nossa humanidade. Existem horrores piores que bruxas, fantasmas e mortes sangrentas: o vazio intransponível que existe entre uma pessoa e outra.

CÂMARAS SANGRENTAS E MONSTROS EM AS BOAS MANEIRAS

(Re)ler A Câmara Sangrenta da escritora Angela Carter este ano me fez adentrar mais uma vez no mundo dos contos de fada pelos seus caminhos mais sombrios: a floresta que esconde o monstro, o sexo e a violência que habita em todos nós. Uma leve obsessão pelas histórias, os temas e símbolos explorados por Carter tem me acompanhado pelos últimos meses. Ao longo dos dez contos em A Câmera Sangrenta, Carter explora contos de fadas já conhecidos do imaginário popular evidenciando os temas latentes dessas histórias ao mesmo tempo que os subverte e se aprofunda neles através de uma sensibilidade contemporânea e feminista.

A recorrência de dois temas em particular tem me interessado: a câmara sangrenta, que dá título à coletânea e ao seu primeiro conto, e a experiência liminal, a existência em um lugar onde se é duas coisas ao mesmo tempo. Esse segundo tema é explorado ao longo de todo o livro, mas em especial nos contos sobre lobisomens, The Werewolf, Wolf-Alice e The Company of Wolves.

Por sua própria natureza, o lobisomem é duas coisas ao mesmo tempo, uma criatura entre a humanidade e a bestialidade que não pertence a nenhuma das duas. As dicotomias entre educação e instinto, civilização e natureza, bem e mal são questionadas por Carter utilizando-se desse não-lugar do homem-lobo. Esses questionamentos foram levados para a tela do cinema quando Neil Jordan, acompanhado de Carter como co-roteirista, dirigiu a versão cinematográfica de The Company of Wolves, traduzida como A Companhia dos Lobos (1984), mais uma das minhas obsessões nos últimos tempos.

Outra coisa que estava me tirando o sono este ano era a expectativa para a estreia comercial do longa-metragem As Boas Maneiras (2017) dos cineastas Juliana Rojas e Marco Dutra, dois dos diretores cujo trabalho eu acompanho com maior avidez. Qual a minha surpresa, então, ao descobrir que Dutra e Rojas haviam escolhido justamente o filme A Companhia dos Lobos para compor uma sessão com os dois longas dirigidos pela dupla, Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras, no Instituto Moreira Salles em São Paulo. Meu primeiro pensamento foi ‘Conexão mental-artística-espiritual!’, mas, é claro, é natural que artistas cujo trabalho nós admiramos tenham referências que dialogam com as nossas. Mas, além dessa explicação um tanto quanto óbvia, eu acredito que exista algo de fundamental e primitivo que faça humanos retornarem ao folclore e aos contos de fada.

Voltei a pensar sobre isso quando a cineasta Anna Biller – que ficou conhecida por dirigir o filme de horror camp-vintage-feminista The Love Witch (2016) – tuitou sobre seu próximo projeto, um filme baseado no conto de fadas O Barba Azul, a mesma história que dá nome à coletânea de Angela Carter, A Câmara Sangrenta, remetendo ao lugar onde a violência e a libertação ocorrem. Ao longo do livro, a câmara reaparece em todas as histórias, ele é o quarto da vovozinha que é devorada pelo lobo e onde Chapeuzinho e o lobo se confrontam, o quarto onde o mestre do Gato de Botas e a mulher que ele ama transam e matam o marido dela, é onde o Tigre e sua noiva se despem de suas roupas e pele humanas.

Em As Boas Maneiras também há uma câmara sangrenta. O quarto da violência e da transformação. Como A Câmara Sangrenta, The Love Witch e tantas outras obras que exploram o horror, a fantasia e os contos de fada, As Boas Maneiras retorna a esse lugar metafórica e literalmente. Não por acaso, a lenda do lobisomem existe em quase todas as culturas do mundo e continua a ser revisitada e recontada por novas perspectivas.

As Boas Maneiras (2017)

Antes de assistir a As Boas Maneiras, ouvi o filme ser descrito como um horror-musical-lésbico-com-lobisomens e meu primeiro pensamento foi que a personagem lésbica era o lobisomem – ou a lobiswoman, no caso. Associei o não-lugar da sexualidade rejeitada com o não-lugar do monstro automaticamente e cresceu minha vontade de ver o filme não porque eu acredito que lésbicas sejam monstruosas, mas porque eu acredito que é o momento de reclamar a monstruosidade como um direito de existir para além do não-pertencimento imposto a qualquer um que não se enquadra numa sociedade conservadora.

Em muitas das histórias com lobisomens e outros monstros, eles são colocados na posição de vilões. Como nos contos de fadas, no cinema e na literatura os monstros por muito tempo foram aquilo que dava forma aos medos e ansiedades da cultura dominante. Marcados pela suas diferenças, na grande maioria das histórias, os monstros deveriam morrer, como King Kong, ou se transformar para se integrar à sociedade e ser amados, como a Fera.

Mesmo representações mais complacentes para com monstros ainda terminavam com a sua transformação ou destruição, como a Criatura de Frankenstein. Mary Shelley, inspirada por pesadelos e os rápidos avanços científicos da revolução industrial, escreveu  sobre um homem que descobre como criar a vida e dá origem a um monstro que ele abandona – assim como Deus teria abandonado Lúcifer e Adão depois de os criar. A Criatura de Mary Shelley não representava só uma ameaça aos humanos, mas era também uma vítima deles. O medo que ela inspira devido a sua aparência monstruosa é tão grande quanto o medo que ela sente após ter sido abandonada por um criador que a despreza. O monstro é, a princípio, ainda mais humano que o homem que o criou e a sociedade que o rejeita, mas a revolta contra sua exclusão faz com que ele se entregue à perversidade que todos dizem fazer parte de sua natureza. Para Shelley, a morte do criador e da criatura é o único desfecho possível.

Em Frankenstein, Shelley explorou a ideia de que a monstruosidade que existe dentro de nós é tão destrutiva quanto a do Outro. Sua inspiração não estava só nos medos e ansiedades causados pelas rápidas mudanças trazidas pela revolução industrial, mas em sua própria vida. Shelley foi filha de dois intelectuais que nunca casaram e seu nascimento causou a morte de sua mãe com poucos dias de vida. A própria Mary Shelley se envolveu com Percy Shelley quando ele ainda era casado com outra mulher e os dois tiveram uma filha prematura que morreu pouco tempo antes de ela começar a escrever Frankenstein, aos 19 anos. Partos monstruosos e a exclusão social eram duas coisas que ela conheceu na própria pele. Não é de se admirar que ela tivesse simpatia pela figura do monstro, ela mesma – bastarda, adúltera, mulher – vista também como O Outro.

Com o nascimento do cinema, muito da representação dos monstros nos filmes de horror e fantasia se voltou para fora. A monstruosidade estava novamente localizada no exterior, e não em nós mesmos. Muitos desses monstros carregavam códigos que remetiam a grupos marginalizados. Bela Lugosi, por exemplo, ficou célebre por encarnar o vampiro Drácula em diversos filmes com forte sotaque que evidenciava seu status de imigrante, filmes como King Kong (1933) e O Monstro da Lagoa Negra (1954) remetem à ideia de homens não-brancos obcecados por mulheres brancas, muitos vilões e monstros ao longo de toda a história do cinema foram e ainda são codificados como queer – não é preciso analisar muitos filmes da Disney para ver esse padrão se repetir, mas talvez o maior exemplo seja a bruxa do mar, Úrsula, de A Pequena Sereia (1989), inspirada pela drag queen Divine.

Não é de se admirar que, conforme o cinema se torna uma arte mais aberta à diversidade (mesmo que timidamente), pessoas que se identificam com os monstros – os  seres que a sociedade em geral rejeita – comecem a fazer filmes em que os monstros não precisem mudar, não precisem se conformar a uma sociedade que os exclui, não precisem aprender boas maneiras. Nos últimos anos, temos visto uma leva de filmes que os colocam numa posição muito mais empática do que no passado, e sua jornada em direção à monstruosidade tem sido explorada, eles têm se tornado protagonistas, heróis e objetos de desejo.

Analisando por esse aspecto, fica ainda mais clara a escolha de Dutra e Rojas de exibir A Companhia dos Lobos junto aos seus dois filmes. O conto em que o filme se inspira apresenta um narrador que nos orienta a ficar longe da floresta e temer os lobos, ele é a voz do senso comum da vila. No filme, ao invés de um narrador, temos uma velhinha que conta histórias. É a avó de da Chapeuzinho Vermelho – chamada Rosaleen, no filme – tecendo narrativas a fim de desencorajar sua neta adolescente a se deixar seduzir pelo uivo melancólico das criaturas que não têm lugar entre os aldeões.

A menina ama a avó e se encanta pelas histórias, mas nem seu afeto nem encanto são suficientes para deter sua curiosidade e autonomia. Quando Rosaleen afinal se vê cara a cara com um lobisomem, ela não sente o medo nem o desprezo que sua avó tentou despertar. Pela primeira vez, Rosaleen  toma as rédeas da história e ocupa o lugar de narradora, compartilhando com o lobisomem a história de uma mulher-lobo ferida pelos humanos, demonstrando não só compaixão por ele, mas também identificação. A menina ama o monstro, a menina é o monstro.

A Companhia dos Lobos (1984)

Além desses monstros-marginais chegarem ao centro das histórias no cinema, outros monstros têm se tornado mais presentes, monstros que podem ou não ter forma, mas que remetem a medos cada vez mais discutidos pela sociedade contemporânea, como a depressão, o capitalismo, a misoginia e a desigualdade social. Podemos ver isso com muita clareza no cinema de Rojas e Dutra e de outros diretoras brasileiras contemporâneas como Anita Rocha da Silveira e Gabriela Amaral Almeida.

Os monstros que eram O Outro agora estão dentro de nós, são nossas doenças mentais, a estrutura da sociedade de que fazemos parte e ajudamos a sustentar. Se antes nós tínhamos medo de ir para a floresta onde o desconhecido habitava, nosso medo agora está no isolamento que sentimos cercados de pessoas na cidade grande, no shopping que é exatamente igual a todos os outros shoppings no mundo inteiro, com sua frieza fabricada e replicada.

É interessante perceber esse movimento em As Boas Maneiras em especial porque as subversões e críticas sociais trazidas tornam a atmosfera de conto de fadas do filme algo quase difuso. Duas mulheres vivendo juntas isoladas do resto do mundo (no meio de uma metrópole) em uma cidade cortada por um rio (separando a parte rica da parte pobre) esperando um monstro (bebê) que quando cresce foge para o bosque (Bosque de Cristal, o shopping do outro lado do rio) onde coisas horríveis acontecem.

Os três protagonistas do filme rejeitam e são rejeitados pelas convenções sociais: Joel, o lobisomem que aos sete anos começa a tomar consciência de si como um indivíduo e do espaço que ocupa no mundo, Ana, a mulher abandonada pela família por recusar ter a autonomia de seu corpo violada por um aborto forçado e Clara, a mulher negra, lésbica e pobre que os ama a ponto de dar seu próprio sangue.

Em uma dinâmica estranha e delicada, as três personagens navegam esse espaço de exclusão, exclusão essa que, apesar de compartilhada, não é igual. As relações raciais e de classe pesam no romance construído por Ana e Clara, uma relação que começa como um vínculo empregatício desigual e que segue em desequilíbrio, mesmo quando o dever vira afeto. Clara se dedica a Ana e, depois, a Joel, com um amor que a torna feroz. Sua força se origina do afeto e também de sua própria exclusão, afinal, ela é, também, um monstro, os três são.

A câmara sangrenta de As Boas Maneiras é o quarto onde Joel fica preso nas noites em que se transforma. Acorrentado à parede para não ferir e não ser ferido, ele se revolta contra essa exclusão, seu desejo é participar, como todos as outras crianças, da festa junina da escola que acontece em noite de lua cheia. A consciência de sua diferença causa uma transformação ainda maior que aquela pela qual ele passa todos os meses, é algo que vem de dentro.

O não-lugar dos marginalizados o transforma em monstros, mas a monstruosidade já não é algo a se temer, é arma e armadura, é ponto de encontro. No final, encurralados na câmara sangrenta, Clara e Joel se veem igualmente ferozes, e rugem, preparados para atacar o mundo de volta.


Eu falei sobre a gravidez em As Boas Maneiras no meu podcast, o méxi-ap, você pode escutar o episódio aqui.

Falei também sobre filmes de horror brasileiros lá no Expresso Café, você pode escutar o episódio aqui.

5 MULHERES QUE SOBREVIVEM NO CINEMA DE HORROR

Em 1993, a pesquisadora Carol J. Clover cunhou um termo para caracterizar uma personagem típica dos filmes de serial killers que ficaram conhecidos como slasher. Tratava-se da Final Girl. Era ela quem, ao final do filme, permanecia viva.

Hoje, vê-se a Final Girl como uma espécie de heroína feminista, a última sobrevivente de um massacre, triunfante e vingada. E, embora algumas dessas características tenham algum fundamento, uma análise mais profunda nos permite ter uma visão mais completa. Enquanto Clover dedicou um longo estudo aos papéis de gênero nos filmes de horror, o conceito que ela criou parece ter se perdido com o tempo devido a sua apropriação pouco aprofundada pela cultura pop.

O horror tem um efeito tão forte sobre seus espectadores por comunicar medos e desejos reprimidos que temos como sociedade e, como os contos de fada, ele possui duas facetas: a que apoia as instituições vigentes (não vá para a floresta, não faça sexo, obedeça seus pais) e a anárquica, na qual tradições e regras são questionadas. Os filmes da Final Girl típica geralmente se encontram nessa primeira categoria. As últimas sobreviventes desses filmes são adolescentes que não fazem sexo, não se interessam pelas mesmas futilidades que as “outras garotas” e que muitas vezes possuem nomes andróginos e hobbies “masculinos”.

A Final Girl está ali na capacidade de vítima-herói. Herói por sobreviver até o final e, por vezes, por matar o vilão (mesmo que seja por puro acaso). Vítima por ter passado as últimas duas horas se escondendo, fugindo, caindo, sentindo dor, sendo perseguida, aterrorizada e vendo todos os seus amigos (especialmente as amigas) morrerem de forma brutal. Ela é “masculinizada” pelo seu nome, hobbies e, por vezes, aparência para que o espectador masculino possa se identificar com ela na capacidade de herói, mas ainda é uma mulher, e portanto pode ser torturada e vitimizada. A identificação com ela parte de um prazer sadomasoquista.

Com isso, não pretendo dizer que não há nada de subversivo sobre a Final Girl. A sua existência, que surgiu em filmes slasher marginalizados e de baixo orçamento dos anos 70, marcou uma presença feminina cada vez mais forte no cinema e permitiu o início de um debate muito pertinente sobre gênero no horror. Essa lista vem tanto para celebrar quanto questionar o papel da Final Girl no cinema.

A PRÉ-FINAL GIRL: Jess de Noite do Terror (1974)

bcblu_shot20l

Embora, oficialmente, a primeira Final Girl só tenha surgido em 1978 com Halloween, vários filmes de horror antes disso já traziam personagens com características que muito se assemelhavam ao que viria a ser a Final Girl clássica. Dentre elas podemos citar Sally do Massacre da Serra Elétrica (1974) e Lila de Psicose (1960) como um protótipo ainda mais conservador e distante da eventual Final Girl.

Jess, do filme canadense Noite do Terror, é um exemplo interessante. Como a Final Girl clássica, ela tem um nome que poderia ser masculino ou feminino e é a última sobrevivente de uma série de assassinatos que ocorrem dentro da casa onde ela e várias amigas moram. O que a diferencia é sua vida sexual ativa e sua gravidez revelada durante o filme. O fato de ela estar decidida a abortar é particularmente surpreendente e mostra a faceta anárquica da obra.

A PRIMEIRA FINAL GIRL: Laurie de Halloween (1978)

jlc

A primeira Final Girl foi imortalizada pela atriz Jamie Lee Curtis no papel de Laurie no filme Halloween. Diferentemente dos protótipos de Final Girls que vieram antes dela, Laurie foi uma das primeiras “última-sobreviventes” que teve um papel ativo e, em algum nível, bem sucedido na ação do filme. Ela não só se esconde aterrorizada, mas também procura se defender e ferir seu algoz.

Quando Halloween estreou, entretanto, a participação ativa feminina no filme não foi suficiente para convencer os críticos que isso significava uma mudança nos papéis das mulheres no cinema de horror. Andrew Tudor escreveu na época: “Mulheres sempre apareceram como vítimas no cinema de horror, então é esperado que elas pareçam mais proeminentes num período de centralidade da vítima. Se isso significa uma nova estrutura dos papéis de gênero nesse tipo de filme já é outra questão.” Felizmente, ele estava errado quanto a sua última afirmação e desde a primeira Final Girl o horror protagonizado por mulheres ativas se desenvolveu bastante. Por outro lado, não podemos ignorar seu primeiro comentário: a entrada das mulheres no protagonismo do horror se deveu a sua qualidade como vítima.

A FINAL GIRL E BECHDEL: Ripley de Alien, o Oitavo Passageiro (1979)

c580ce792b3390637129515c55c13e7b

Em Alien, o Oitavo Passageiro, a Final Girl  saiu do slasher para entrar na ficção científica. Subtenente Ripley é a última sobrevivente de um massacre que acontece na nave espacial Nostromo. Extremamente competente e racional, traços geralmente reservados para os personagens masculinos, Ripley permanece viva pela sua engenhosidade e inteligência. Sua androginia é reforçada também pelo fato de a conhecermos por sua patente e sobrenome (o que não impede que ela seja objetificada em cenas que aparece de camiseta e calcinha).

Alien foi mencionado em uma tirinha de Alison Bechdel em 1985 como um exemplo de filme que possui duas mulheres que falam entre si sobre algo que não seja um homem. Desde então, o que se consagrou como o “Teste de Bechdel” tem marcado presença na discussão sobre representação feminina no cinema. Passar no teste não significa que determinado filme é feminista, afinal, se trata de uma piada em um quadrinho que não tinha nenhuma pretensão de se tornar uma referência científica, mas é a própria simplicidade do teste que nos ajuda a perceber a pequena presença de mulheres nos filmes. Deveria ser fácil encontrar duas personagens que não existam em função de um homem em uma história, mas o número assombroso de filmes que não passam no teste demonstra o contrário.

bechdelrule

A ANTI-FINAL GIRL: Jay de A Corrente do Mal (2014)

it follows film still

Mais de trinta anos depois da concepção da Final Girl, vivemos um novo momento do cinema de horror. Como de costume, o horror continua a tratar dos nossos medos e desejos recônditos, logo, conforme os medos e desejos da sociedade se desenvolvem e se modificam, o horror também o faz. Podemos ver isso claramente em A Corrente do Mal. O filme conta a história de Jay, uma garota que começa a ser perseguida por uma assombração após fazer sexo com um rapaz. Se isso parece uma trama conservadora, não se preocupe, a solução não é: Jay tem de fazer sexo novamente para passar a assombração para outra pessoa. Mas se a pessoa morrer, a assombração se voltará para ela mais uma vez.

Diferentemente dos filmes slasher, com seus vilões impotentes e sua ansiedade ao redor da sexualidade feminina, em A Corrente do Mal percebemos outras questões. O sexo aqui pode significar tanto morte quanto vida, a intimidade e a característica líquida das relações contemporâneas são possíveis temas. O filme também se opõe aos slashers pela sua protagonista. Jay faz sexo casual, apresenta características consideradas femininas e seus amigos não morrem e não fogem, permanecem com ela até o fim. Ela é a anti-Final Girl.

A PÓS-FINAL GIRL: Thomasin de A Bruxa (2015)

thewitch

Colocar Thomasin como uma Final Girl pode ser uma decisão polêmica da minha parte, mas me permita justificar minha escolha. Apesar de A Bruxa não fazer parte do gênero slasher e se passar numa época muito diferente de todos os outros filmes em que temos uma Final Girl, ele tem como tema central a ansiedade em torno da sexualidade feminina e uma protagonista que sobrevive enquanto todos ao redor dela morrem. É por isso que a considero uma pós-Final Girl: ela ainda possui as características fundamentais da personagem, mas ela expandiu o alcance da Final Girl para outras épocas e gêneros dentro do horror.

Mais importante que essa migração do gênero slasher – que já havia acontecido antes com Ripley em Alien, o Oitavo Passageiro – em A Bruxa temos um filme que definitivamente vai contra as instituições estabelecidas. Se as Final Girls anteriores eram desencorajadas a fazer sexo, em A Bruxa, Thomasin é levada a buscar refúgio na perversidade justamente porque, o que quer que ela faça, será condenada. Apesar do título do filme, a verdadeira vilã da história é a sociedade conservadora em que Thomasin vive.

Damned if you do, damned if you don’t.

O VAZIO E A PENETRAÇÃO: MATE-ME POR FAVOR

Mate-me por favor trata de um grupo de garotas adolescentes na Barra da Tijuca que se deparam com uma onda de assassinatos e estupros.

Desde uma das primeiras cenas do filme, em que a protagonista Bia (Valentina Herszage) nos olha através da câmera, percebemos que não há intenção da diretora de convencer os espectadores de qualquer naturalismo no que acontece na tela. O filme caminha sempre nesse espaço entre o exagero estilizado e a realidade absurda.

Um sonho/pesadelo adolescente pop onde adultos não existem e tudo é percepção.

Enquanto assistia Mate-me por favor, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo. Durante muitos momentos conseguia me reconhecer. Talvez seja o fato de que a Barra de Tijuca se pareça com a cidade em que eu cresci, Brasília. Ou talvez seja o fato de que eu fui também uma garota branca de classe média que tinha bem menos acesso a internet do que gostaria e amigos e conversas bem menos elaboradas do que eu haveria de descobrir posteriormente possível.

Eu, aos quinze anos, era como Bia e suas amigas. Tirava fotos para a internet, insistia para transar logo com namorados que pareciam completamente perdidos em relação a toda a existência enquanto adolescente, beijava semi-desconhecidas no banheiro do colégio, tinha sonhos terríveis com situações de estupro e vez ou outra chamava ou era chamada de piranha.

E, assistindo àquele filme, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo porque eu sabia que aquela mise-en-scène não denotava falta de complexidade. Não denotava ausência de subjetividade. Não denotava um olhar apolítico e fetichista sobre garotas burguesas. Mas eu sabia também que o filme seria lido por muitos dessa forma por causa do ponto cego que existe no olhar que legitima os filmes.

Chegando em casa, por curiosidade, chequei algumas das críticas que havia evitado ler antes. Enquanto alguns textos estrangeiros frutos das passagens por grandes festivais internacionais falavam claramente da questão de gênero, inclusive se referindo a “masculinidade tóxica”, a maioria das críticas brasileiras que encontrei não chegava a tocar nesse assunto.

Por aqui, muitos comentários genéricos: “esteticamente interessante”, “pitadas de David Lynch”, “um olhar sobre a adolescência”. De um lado, diversas críticas elogiosas, mas vagas. De outro, críticas que diziam que o filme era apenas estilo sem conteúdo. Que não se aprofundava em nada. “Esvaziado de um conceito mais significativo, o que resta é a forma”, escreve Pedro Henrique Ferreira na Cinética, por exemplo.

Apenas aparência, sem conteúdo. Superficial. Vazio.

É curioso que é justamente assim que somos vistas quando existimos dentro do que foi definido feminino.

E enquanto assistia o filme, eu sabia. Por um lado, é engraçado ter uma consciência tão precisa do olhar que teriam sobre o filme — e sobre mim mesma aos quinze. Mas isso é também resultado da experiência feminina, acostumada a se dissociar e a enxergar a si própria como um outro, como objeto de observação. Algo que está presente ali não apenas nos olhares das personagens para a própria audiência. A cada morte anunciada, as meninas se imaginam morrendo. A cada morte no terreno baldio, vazio entre os prédios em uma cidade rarefeita, elas morriam um pouco. “Vocês não podem ficar andando assim sozinhas”.

E como responder a violência e resistir ao terror psicológico que pode te impedir de viver?

O filme parece existir ao redor dessa questão. Ao longo dele, personagens em diversas situações falam repetidamente coisas como: Sangrou muito. Foi muito sangue. Tinha sangue por todo lado. Nunca vi tanto sangue. Sangrou muito, muito mesmo. Muito.

Tesouradas na barriga, “o homem entrou em mim”, “dói perder a virgindade?”, “vem, Jesus, vem para dentro de mim”, as mãos ao redor do pescoço dele num impulso de curiosidade sobre o que seria essa sensação de ter poder. Em um dos melhores momentos, e que se mescla ao final do filme muito bem, Bia diz ao seu namorado palavras que marcam: Sangue é vida.

E é verdade que sim, de várias formas.


Esse texto foi citado na fala Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?
ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-…

Mais desdobramentos:
http://www.socine.org/encontros/aprovados-2017/?id=16646