O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.
No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.
Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.
Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).
O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.
Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.
Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.
O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.
Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.
A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.
O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.
O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.