Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

POR QUE DAMOS NOMES FEMININOS A ROBÔS?

A Inteligência Artificial é o sonho humano do serviçal perfeito: uma máquina que aja como nós, mas não tenha as necessidades mundanas que tanto dificultam a escravidão de outros humanos e animais. Uma entidade que não precise ser alimentada, não precise dormir, não tenha desejos e não anseie por liberdade. Queremos máquinas inteligentes e eficientes para identificar nossas necessidades e satisfazê-las, mas será possível desenvolver uma inteligência consciente que não possua sentimentos e sensações?

Desde o começo da Revolução Industrial, histórias sobre o medo de máquinas que tomam consciência própria e aniquilam seus criadores começaram a povoar o imaginário popular. O cinema também representou inúmeras vezes essa ansiedade humana. O modo como a figura feminina é implementada nessas máquinas, e a visível associação na vida real de assistentes eletrônicas a um gênero feminino chamou a atenção da escritora Laurie Penny. Traduzimos abaixo o seu texto sobre o assunto.

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Por que existem tantos robôs projetados para se assemelhar a mulheres? A pergunta está se tornando inevitável ao passo em que mais e mais Inteligências Artificiais (IAs), que não precisam ter um gênero, aparecem no mercado com vozes e rostos femininos, incluindo Cortana da Microsoft, Alexa da Amazon e uma nova onda de estranhas robôs sexuais comercializadas quase que exclusivamente para homens. Enquanto entramos em uma nova era de automação, a tecnologia que estamos criando diz muito sobre a maneira que a sociedade vê as mulheres e o trabalho.

Este mês, a Microsoft lançou Tay, robô com rosto e maneirismos de uma garota adolescente que foi projetada para aprender e interagir com usuários no Twitter. Dentro de horas, Tay tinha sido bombardeada com abuso sexual e foi ensinada a defender Hitler, que é o que acontece quando você dá ao Twitter um monstrinho para criar. O jeito que Tay foi tratada pelos usuários do Twitter foi abominável, mas não sem precedentes – os primeiros robôs e assistentes digitais foram projetados para parecer femininos, em parte para que usuários, presumidamente homens, pudessem explorá-los sem culpa.

Isso faz sentido quando consideramos que boa parte do trabalho que estamos antecipando que será feito um dia por esses assistentes é atualmente feito por mulheres e meninas, por salários baixos ou sem pagamento algum. Semana passada, um relatório da ONS (IBGE britânico) finalmente quantificou o valor anual da “produção econômica doméstica” – a manutenção doméstica, cuidado com os filhos e tarefas organizacionais feitas em sua maioria por mulheres – em 1 trilhão de libras, quase 60% da economia “oficial” (do Reino Unido). Desde enfermeiras, secretárias e profissionais do sexo a esposas e namoradas, o trabalho emocional que mantém a sociedade funcionando é ainda feminizado – e ainda estigmatizado.

Neste momento, enquanto antecipamos a criação das IAs para servir a nossas necessidades particulares, organizar nossas vidas e tomar conta de nós, e fazer tudo isso de graça e sem reclamações, é fácil ver quantos designers talvez se sintam mais confortáveis com essas entidades tendo vozes e rostos femininos. Se IAs forem projetados como masculinos, usuários podem ser tentados a tratá-los como iguais, reconhecê-los como humanos de alguma forma, talvez até oferecê-los um salário de nível inicial e um drink depois do trabalho.

Na imaginação pública, robôs humanóides tem sido por muito tempo substitutos para classes exploradas. Até mesmo a palavra “robô” é derivada da palavra tcheca para “escravo”. A filósofa Donna Haraway observa em Um Manifesto Ciborgue que “a divisão entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica”, e a história das robôs femininas em filmes é quase tão longa quanto a história do cinema em si. Em quase toda encarnação de robôs femininas na tela, de Metrópolis de Fritz Lang à obra prima moderna Ela, a mesma questão surge: IAs são realmente pessoas? E, se sim, podemos viver com o que fizemos a elas?

Em estórias como Blade Runner, Battlestar Galactica e Ex Machina, robôs femininas são estupradas por homens e os espectadores são convidados a ponderar se esses estupros foram realmente criminosos, baseados na nossa avaliação de se a robô tem consciência suficiente para merecer autonomia. Esta é a mesma avaliação que juízes homens ao redor do mundo estão tentando fazer sobre mulheres humanas hoje.

Toda a repetição da estória romântica é também uma estória de horror. O protagonista, que é geralmente frustrado sexualmente e rabugento, passa por agonias tentando definir se seu crush de silicone é realmente consciente. Se ela é, é certo ele explorá-la, ser servido por ela, dormir com ela? Se ela não é, pode ele realmente se apaixonar por ela? Isso importa? E – o mais aterrorizante de tudo – quando ela define sua própria posição, ela vai se rebelar? Como ela pode ser impedida?

Essas são questões que a sociedade em geral tem feito por séculos – não sobre robôs, mas sobre mulheres. As permutações ansiosas são familiares para a maioria das mulheres que namoram homens. Nós podemos vê-los, lentamente, tentando decidir se somos realmente humanas, se realmente pensamos e sentimos como eles.

Essa não é uma questão acadêmica abstrata. A ideia de que afro-americanos eram menos humanos que pessoas brancas estava consagrada na constituição dos Estados Unidos até 1868. Da mesma forma, a noção de que mulheres são menos humanas que homes tem sido usada desde os tempos de Aristóteles para justificar a privação de seus direitos básicos. Até mesmo hoje, encontramos homens argumentando que mulheres e meninas são menos inteligentes que homens, ou “programadas pela natureza” para uma vida de submissão e plácida reprodução. Por muitos séculos, a primeira tarefa filosófica das pessoas oprimidas tem sido convencer tanto a si mesmas quanto seus opressores – assim como as IAs em nossas ficções culposas – que eles são seres vivos, pensantes, e com sentimentos, e portanto merecem liberdade.

Consideremos a cena clímax em Ex Machina, onde o gênio megalomaníaco Nathan é mostrado colecionando corpos nus de modelos antigos de robôs femininas em seu quarto. Para Nathan, a consciência de suas escravas sexuais está fora de questão: de carne ou de metal, mulheres nunca serão realmente humanas. Para as robôs femininas, os homens que as possuem – quer seja o louco bilionário Nathan, ou o doce desafortunado Caleb – são obstáculos a serem vencidos, com violência se necessário.

Quando os ciborgues dominarem as máquinas, os homens ainda importarão? Na ficção, como na vida, uma maneira das pessoas oprimidas se libertarem é usando tecnologia para tomar o controle das máquinas que os fizeram. “O maior problema com ciborgues, claro, é que eles são a prole ilegítima do militarismo e do capitalismo patriarcal”, escreve Haraway. “Mas prole ilegítima é frequentemente infiel às suas origens. Seus pais, afinal, são não-essenciais”.

A triste paranóia que está no cerne dessas visões do futuro é que, um dia, IAs seriam capazes de se reproduzir sem nós, e sumariamente decidiriam que somos irrelevantes. Desde Metropolis até Matrix, o pesadelo é o mesmo: se andróides tiverem acesso aos meios de reprodução, nada os deterá. Isso é, coincidentemente, o medo básico que os homens tem nutrido em relação às mulheres desde o nascimento do feminismo, e particularmente desde o advento da contracepção e da tecnologia reprodutiva. Esse medo é a raiz de muito da opressão feminina atual.

Alan Turing, o pai da robótica, se preocupava que “máquinas pensantes” pudessem ser exploradas porque não eram conscientes do mesmo modo que “seres humanos reais” são. Nós ainda não decidimos, como espécie, que mulheres são conscientes – e enquanto mais e mais robôs femininas aparecem em nossas telas e nossas estórias, nós devíamos considerar como nossa tecnologia reflete nossas expectativas de gênero. Quem são os usuários, e quem é usado? A menos que possamos recalibrar nossa tendência a explorar uns aos outros, a questão pode não ser se a raça humana pode sobreviver a era das máquinas – mas se merece.


Tradução de Carol Lucena e ilustração por Deixadebanca

MASCULINIDADE TÓXICA: TOP OF THE LAKE

Quando eu vi que havia uma série criada pela Jane Campion, uma das mais prolíficas e importantes cineastas do mundo, disponível na Netflix, eu pensei que estava sonhando. Conhecendo o trabalho da diretora, entretanto, tive que me lembrar: Jane Campion se interessa mais por pesadelos que sonhos. Profundamente romântica – no sentido byroniano da palavra – Campion lida tanto com o amor quanto com o grotesco com maestria e nessa obra em particular ela não deixou a desejar.

Assistir a Top of The Lake é um desafio em resistência. Assistir aos seis episódios duas vezes em um espaço de duas semanas beira o masoquismo, mas cá estou eu, espelhando a protagonista: traumatizada, com o coração em frangalhos, e, apesar de tudo, viva. Eu queria poder dizer que o mundo retratado por Jane Campion – hostil, patriarcal, violento – não é representativo da realidade, que nossas perspectivas são mais otimistas, mas os jornais e as estatísticas não me permitem esse conforto. Na pequena cidade neozelandesa de Laketop, a masculinidade tóxica é mais que um problema a ser combatido, ela é parte do alicerce que estrutura todas as relações humanas. E não é nesse mesmo mundo em que vivemos?

A série começa com um caso desalentador: Tui Mitcham, grávida aos 12 anos, tenta se suicidar. A partir daí, somos introduzidos ao mundo sombrio e perturbador de Laketop junto à detetive Robin Griffin, que está voltando a cidade depois de quinze anos para visitar a mãe doente e acaba se envolvendo na investigação. Ela é recebida com desrespeito pelos outros detetives e tratada com descaso pelo investigador responsável pelo caso. Esse comportamento apresentado dentro da delegacia pelos próprios policiais expõe a institucionalização da misoginia na cidade, demonstrando que até mesmo as entidades que representam a lei foram corrompidas e não podem ser confiadas. A partir dessa primeira interação, somos preparados para uma agressividade ainda menos velada no resto da cidade. Desde a casa de Tui, controlada pelo patriarca violento Matt Mitcham, até o acampamento de mulheres que se instala na região, vemos mulheres fragilizadas e traumatizadas.

Nem todos os problemas em Laketop são por natureza misóginos, mas são enraizados em uma cultura masculina tóxica que tem como efeito colateral a misoginia. Todos na cidade, por exemplo, sabem que Matt Mitcham é o dono de um laboratório de drogas, mas ninguém tem coragem ou vontade de denunciá-lo pois boa parte dos empregos e da economia da cidade dependem do tráfico e do próprio Matt. A polícia, majoritariamente composta por homens, finge que não vê, e os cidadãos ignoram as eventuais tragédias que ocorrem em consequência. Todos são, portanto, cúmplices. Não é surpreendente que os mais afetados por esse sistema corrupto sejam jovens, em especial jovens mulheres. Uma adolescente morre com traços de cocaína na vagina e a conclusão que a polícia chega, sem nem ao menos fingir investigar, é que ela se suicidou. A reação do detetive responsável pelo caso de Tui, Al Parker, ilustra perfeitamente como a comunidade lida com o que há de podre em Laketop. Depois de exames e perguntas, ele manda Tui de volta para a casa do pai dizendo que “ela não pode ficar mais grávida”: o estupro não importa, os possíveis abusos sofridos na casa não importam, o “estrago” visível, e portanto condenável, já está feito, o resto é inconsequente e pode ser varrido pra debaixo do tapete, assim como a cocaína, os assassinatos e a violência.

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Para as mulheres, Laketop é um ambiente extremamente hostil e perigoso, para os homens que fogem ao padrão, sufocante. Entre os homens maduros conhecemos, só há um que rejeita o universo hiper-masculinizado e violento da cidade. Ele é, ironicamente, o filho mais novo de Matt, Johnno Mitcham, que vive em uma tenda na floresta. Como as mulheres do acampamento, ele vive à margem de uma sociedade à qual ele não pertence, mas diferentemente delas, ele escolhe não pertencer. Enquanto as mulheres buscam refúgio em apoio mútuo no qual elas encontram proteção, ele é completamente capaz de viver sozinho. Fica clara a diferença de como a violência afeta homens e mulheres, Johnno participa de atividades sociais quando quer e se omite a menos que alguém com quem ele se importa – Robin – passe por episódios de violência. As mulheres são constantemente sujeitadas a extremo desrespeito e até mesmo abuso quando tentam interagir com homens, dentro ou fora do acampamento. Em uma ocasião, Matt Mitcham xinga todas de “unfuckable”, dando a entender que o valor de uma mulher é diretamente proporcional a seu grau de atração física. E é isso que mulheres são para todos os homens da série, objetos sexuais com ou sem serventia.

É interessante perceber, entretanto, que Top of The Lake não explora cenas explícitas de estupro. Vemos diversos filmes e séries que tentam representar realidades machistas e acabam por fazê-lo de forma machista, eles se utilizam de mulheres mortas para demonstrar a perversidade de determinado vilão e que acabam por glorificar imagens de extrema violência contra mulheres de forma quase fetichista. Muitos desses filmes são protagonizados por homens e seus vilões são homens e as mulheres – mutiladas, desfiguradas – só estão lá para avançar a trama. Vivemos, sim, num mundo machista em que mulheres são vítimas de crimes grotescos, mas existe uma forma de explorar isso sem comercializar e glorificar a violência contra a mulher. Em Top of the Lake, vemos um exemplo. As imagens de sexo consensual são amplamente exploradas, demonstrando um fascínio muito maior pelo prazer feminino do que pela dor. Nessas cenas, o corpo masculino é mais observado que o feminino, a mulher é o sujeito e o homem objeto. Crimes misóginos são representados, mas Campion não enaltece imagens de mulheres mortas ou estupradas. O crime contra Tui não a deixa prostrada, ela permanece viva e portanto ainda possui vontade própria e algum nível de autonomia. A investigação é protagonizada por uma mulher que também sofreu violência no passado e que não fica incapacitada por conta disso. Ela tem demônios com que lidar, sequelas que não serão apagadas nunca, mas ela é uma sobrevivente e sobreviventes têm uma característica muito particular: elas não desistem fácil.

CONFIDÊNCIAS FEMININAS SOBRE O PASSADO E O PRESENTE: A HORA DO CHÁ

Você já teve a impressão que fizeram o filme cujo qual você gostaria de ter feito? Foi o que eu senti ao me deparar com “La once”, ou a Hora do chá – documentário dirigido pela chilena Maite Alberdi. Há tempos venho pensando em filmar os encontros de minha avó e de suas amigas octogenárias que acontecem a cada semana. Denominado como “o jogo das meninas”, a reunião é repleta de lanches, jogos de baralho e confissões íntimas. Parece que a Maite teve a mesma ideia. Em seu longa-metragem documental, a diretora retrata o encontro da avó com mais cinco mulheres, amigas de escola que se reúnem mensalmente há 60 anos.

A princípio, somos guiados pela narradora Tereza que apresenta as integrantes do grupo a partir das personalidades e características de cada uma. Quando já familiarizados, sentamos à mesa para tomar um chá. Com planos muito próximos, nos sentimos verdadeiramente parte da conversa. Os vários planos-detalhe dos doces, tortas e salgadinhos nos trazem uma sensação de conforto e intimidade. Diante de tanto açúcar, seria possível esconder algum segredo? As senhoras seguem conversando sobre os temas atuais e tabus como a sexualidade.

Quando demonstram suas opiniões, as velhas amigas, por vezes, suscitam tendências mais conservadoras. A diretora optou por não esconder possíveis julgamentos ou preconceitos vindos das falas dessas mulheres. Exemplo é a presença das empregadas e o tratamento dado a elas durante o filme. Maite frisa como as domésticas são responsáveis por preparar e arrumar o lanche, mas entre as conversas são ignoradas. Estas senhoras são, de alguma forma, o retrato do Chile, um retrato da classe média chilena que pouco se difere da nossa. No entanto, o longa não destrincha sobre questões políticas e sociais, o foco do documentário é outro: a relação de amizade construída durante anos.

Nesse emaranhado de falas, encontramos muitas vezes opiniões parecidíssimas com as de nossas avós. A discussão sobre “o papel da mulher na sociedade”, por exemplo – e como isso foi ensinado a essas senhoras ainda na época da escola. A discussão se alonga e elas concordam que os valores mudaram e a noite de núpcias já não parece mais um bicho de sete cabeças para nenhuma moça. Uma das amigas leva ao encontro o antigo caderno da disciplina intitulada “Economia doméstica”, onde as características da “boa esposa” eram explicitadas, com destaque para o “ autocontrole”. As próprias senhoras riem após a leitura do caderno. O riso é necessário durante todo o filme. Afinal, elas acabam se criticando, pois muitas vezes não têm as mesmas opiniões.

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A conversa sai dos temas sociais para se tornar mais íntima. “Vocês preferem que seu marido lhe traia ou que ele morra?”, pergunta uma das personagens. O tema do amor e casamento surge como uma causa principal para essas mulheres, menos para Gema – que decidiu não se casar e por isso desperta desconfiança entre as amigas.

Estas senhoras que viveram a época de transição das conquistas feministas se veem, depois de velhas, mais empoderadas. Não tanto pelos direitos femininos adquiridos, mas pelo caráter de discernimento que a velhice possui. Não precisam aparentar mais nada. Não têm papas na língua. Falam o que vem à cabeça. Riem e discutem sem pisar em ovos. Nesse sentido, “La once” nos traz uma perspectiva sobre a percepção dos idosos sobre a realidade. Se na juventude, as regras lhes eram impostas e as alternativas eram segui-las ou quebrá-las, a velhice traz a possibilidade de ignorá-las, de transpô-las.

A hora do chá é também ritualística. Um encontro mensal que acontece religiosamente. Em entrevista, a diretora Maite Alberdi confessou que teve a ideia de fazer o longa após a avó negar de ir à premiação de um filme da neta, pois o evento iria acontecer no mesmo dia que a “hora do chá”. É como “o jogo das meninas”, quando acontece na casa da minha avó, todo mundo tem de sair. Os encontros entre amigas são sagrados. Nesse espaço, nesses dias tão específicos se trocam confissões, intimidades. Por mais diferente que sejam, essas velhas senhoras se sentem pertencentes a algo maior, em outras palavras, ao sentimento da amizade. Aqui relembro o conceito de sororidade. A hora do chá representa aquele encontro semanal com amigas no bar, pra falar de trabalho, de amor, de filhos, de coletor menstrual, “do papel da mulher na sociedade”, etc, etc.

SOBRE O QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DA MULHER CONFINADA

Há séculos, o tema da mulher confinada tem sido explorado pela ficção. Somos presas em torres guardadas por dragões, em casas governadas por madrastas tiranas, em quartos minúsculos e sem luz, em abrigos subterrâneos. Dentre as versões audiovisuais desse pesadelo, podemos citar A Maçã de Samira Makhmalbaf, O Quarto de Jack de Lenny Abrahamson, As Virgens Suicidas de Sofia Coppola, Mad Max: Estrada da Fúria de George Miller, Cinco Graças de Deniz Gamze Ergüven, Rua Cloverfield 10 de Dan Tratchenberg e até mesmo a série cômica da Netflix, The Unbreakable Kimmy Schmidt.

O confinamento tem uma série de significados recorrentes e também particulares a cada filme, livro ou conto de fadas em que ele aparece. Ele muitas vezes representa ambientes familiares abusivos, parceiros ciumentos, uma sociedade que limita a mulher ao ambiente doméstico, o pânico quanto a sexualidade feminina e a redução da mulher a suas funções reprodutivas. O aprisionamento das “noivas” de Immortan Joe em um cofre é infantilmente simples em sua conotação: mulheres são vistas como objetos de grande valor, mas ainda objetos. A mãe de O Quarto de Jack – no livro – não possui nome, só a vemos ser chamada de “ma”. Encarcerada com seu filho, todas as suas ações são tomadas em função dele, o livro compara a redução da mulher à maternidade com a angústia do confinamento ao mesmo tempo que explora uma certa idealização do que o tempo ilimitado gasto com uma criança – total atenção, zelo, proteção – o mito da mãe sempre presente. Quando “ma” e Jack finalmente escapam, ela já não sabe mais quem é. Fora do quarto, sem ser mãe 100% do tempo, “ma” tem problemas pra encontrar sua identidade.

Em As Virgens Suicidas, Cinco Graças e A Maçã, irmãs são trancafiadas dentro de casa para sua “própria proteção”, pretexto apoiado por convicções religiosas (católicas e islâmicas) que mal escondem a real motivação: o despertar da sexualidade feminina em adolescentes deve ser sufocado a qualquer custo. As Virgens Suicidas ressalta o estranhamento do feminino, elas são observadas pelos meninos da vizinhança com interesse, mas nunca compreensão. Elas exercem fascínio pelo mistério que as mantém distante do mundo, desconexas e perdidas. Cinco Graças busca representar a perda de direitos das mulheres turcas com a chegada ao poder de um partido fundamentalista, o encarceramento das cinco irmãs refletem ideias conservadoras alimentadas pelo cenário político do país.

É interessante observar que o confinamento em algumas histórias não se dão atrás de portas trancadas. No conto de fadas Barba Azul e na compilação de histórias populares As Mil e Uma Noites, em nenhum momento somos informados de que as protagonistas estão confinadas, mas, apesar de correrem risco de vida, nunca nem passa pela cabeça do leitor ou das mulheres que elas deixem seus maridos e famílias. Tratava-se de um confinamento baseado na dependência. A mulher não possuía nenhum tipo de autonomia financeira, não eram treinadas para ou bem-vindas no mercado de trabalho, a família em si era um encarceramento inescapável. Essa realidade, entretanto, não está tão distante quanto gostaríamos. Ainda existem mulheres no mundo que são impedidas de estudar, em alguns países mulheres tem os mesmos direitos legais de um menor de idade.

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A Maçã (1998)

Em cada história, as protagonistas apresentam diferentes formas de lidar com suas situações. Em filmes de ação, as mulheres são engenhosas ou fisicamente fortes e tentam escapar a todo custo. Em Rua Cloverfield 10, vemos Michelle afiar uma muleta de madeira para lutar contra seu captor já nos primeiros minutos do filme, em Mad Max: Estrada da Fúria, as “noivas” arriscam suas vidas para fugir com Imperator Furiosa numa alucinante perseguição. Embora seja revigorante ver mulheres enfrentarem seus algozes, é importante lembrar que situações abusivas são muito complexas e perigosas. Não é à toa que muitas mulheres permaneçam com seus parceiros abusadores e não é, como alguns dizem, porque elas gostam de apanhar, e sim, porque elas temem pelas próprias vidas. É irracional tratar de uma questão estrutural como individual. Esperar que mulheres sejam as únicas responsáveis pelo seu bem-estar dentro de uma sociedade que violenta mulheres é um pensamento simplista. Individualmente, as mulheres usam as armas que elas necessitam para sobreviver.

O conto de fadas da Gata Borralheira ilustra bem essa questão mesmo que inadvertidamente. Cinderela é encorajada pela mãe moribunda a permanecer gentil e afável. O que muitas vezes é interpretado como fraqueza e falta de personalidade é o que permite que Cinderela sobreviva aos abusos perpetuados pela madrasta e suas filhas durante toda a sua vida. O Quarto de Jack também mostra como a necessidade de sobreviver faz com que “ma” aja de forma submissa, demonstrando a consciência de que suas melhores chances para proteger a si e Jack estão na docilidade. Ela consegue escapar, e, apesar da tentativa de suicídio, sobrevive, enquanto outras não tem a mesma sorte. Em As Virgens Suicidas, as irmãs Lisbon estão todas mortas ao final do filme. Em Cinco Graças, duas das irmãs casam obrigadas, uma se mata e duas fogem, mas têm poucas perspectivas. Em A Maçã, as duas filhas que ficaram presas por onze anos dentro de casa apresentam sérios problemas de desenvolvimento, mal falam ou andam.

A recorrência do confinamento na ficção fala de um encarceramento maior e invisível, mulheres que são presas pelas amarras de uma sociedade que decreta como elas devem agir, mas não podemos esquecer que encarceramentos reais ainda acontecem. Não acredito que seja coincidência que os dramas que encaram o confinamento de forma mais realista sejam dirigidos por mulheres ou que as histórias mais desesperadoras venham de diretoras de países periféricos. A Maçã foi baseado em fatos reais e a maior parte dos atores viveram os acontecimentos retratados no filme, misturando o documental e a ficção e nos lembrando: embora possamos ver a mulher confinada como uma metáfora, não podemos escapar do fato que ela existe no mundo real.


Ilustração da Morgue.

O SIGNIFICADO DA MATURIDADE: CALIFÓRNIA

São Paulo, início dos anos 80. Uma menina menstrua pela primeira vez e sonha em visitar a Califórnia. Assim começa o novo filme de Marina Person, uma história de formação com uma forte nostalgia alimentada pelo universo musical da década de 80. A atmosfera saudosista do filme, entretanto, não é pelo Brasil de outrora, mas sim por um Outro Lugar que, no caso, é representado pela costa oeste Estados Unidos que nunca vemos ao longo do filme. É uma saudade de algo que não se conhece, um simples querer estar em um lugar que não aqui.

No fundo, tudo é fuga. Estela, a protagonista, como muitos adolescentes, sente-se deslocada e reprimida pelo pai conservador. Para Estela, a Califórnia é o tio gay, subversivo, irreverente, a Califórnia é o rock, rebelde, a música das pessoas que não se encaixam. É um baque enorme, então, quando o tio volta pro Brasil, doente, derrotado. A AIDS representa muito mais que uma doença, é um perigo que se corre quando fogem-se às regras.

Aqui, permita-me fazer um pequeno e infame jogo de palavras, chegamos à grande fuga do filme: as regras (menstruais). A menarca significa, em muitas culturas, a entrada da mulher na vida adulta e não é à toa que o filme comece com a visão da calcinha suja de sangue de Estela dois anos antes dos acontecimentos do resto do filme. Não sabemos o que acontece com Estela no tempo entre sua primeira menstruação e seus 17 anos, mas ao a reencontramos, não vemos uma adulta. Fica clara a intenção de Person de diferenciar o que marca a maturação de uma mulher para o mundo e o que é de fato essa maturação – um caminho complexo que não pode ser resumido a processos biológicos. Quando vemos Estela aos 17 anos ainda no começo do filme, vemos uma criança. Seus pais não conversam abertamente com ela, ela está passando pelas tribulações de um primeiro amor, e ela eventualmente descobre que não está pronta para começar sua vida sexual.

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Clara Gallo e Caio Horowicz

A adolescência é uma fase confusa e contraditória, ao mesmo tempo que Estela não se sente preparada para encarar a vida adulta, ela deseja a liberdade que ela proporciona desesperadamente. Tio Carlos, ao ir para os Estados Unidos, fugia do que era ser um homem gay no Brasil durante a ditadura militar, mas a realidade bate à porta de todos, e, no final, ele tem de retornar. Estela, também, não pode continuar a sonhar com o Outro Lugar.

Ao longo da história, nossa jovem protagonista tem que encarar suas próprias transformações. Decepções amorosas, livros complexos, uma viagem para a praia, a doença e morte do tio fazem parte da sua jornada de maturação. Ao final, vemos enfim uma mulher capaz de tomar decisões sobre seu próprio corpo, fechando um ciclo. No começo, tínhamos uma menina sonhando em encontrar o tio na Califórnia, no final, uma mulher que troca cartas com um amante na Índia. Ela ainda está no mesmo lugar, no Brasil, se correspondendo com homens em fuga, mas a ditadura militar está chegando ao fim, ela é uma mulher adulta e está preparada para ficar.

A JORNADA INDIVIDUAL DAS MULHERES PELO COLETIVO: MAD MAX

O cenário é um deserto pós-apocalíptico. Terras inférteis, escassez de água e um povo miserável, que carrega marcas, deformações e mutações causadas pelas radiações e clima do futuro distópico. O mundo é reimaginado através de todas as consequências das falhas de estruturas que pautam a nossa realidade atual.

Várias questões são tratadas de forma sutil ou um pouco mais explícita, como a questão dos latifúndios que exploram a terra e a torna infértil quando maltratada à exaustão; a água, que, por ter ficado escassa graças ao uso inconsequente de outrora (os tempos atuais), torna-se uma riqueza que poucos têm acesso; a exploração de alimentos e produtos derivados de origem animal; as relações de poder atuais levadas ao extremo.

Tudo isso num cenário composto pelo deserto, cuja simbologia traz, parafraseando Julio Bressane, o privilegiado centro de percepção dos rumores e ecos da inquietação espiritual: é uma reflexão interna e externa ao ser humano, dos rumos que a nossa sociedade tem tomado – visto no filme de forma mais simbólica, repleto de alegorias.

Gosto muito de buscar simbologias e relações com arquétipos em filmes que assisto, e Mad Max foi um prato muito bem servido disso, pois traz simbologias em quase todos os detalhes, desde os enquadramentos, as paletas de cores até em detalhes de figurinos.

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Tom Hardy como Max Rockatansky

Como disse, as simbologias trazidas no filme estão em todos os detalhes, vou me permitir dar uma viajadinha nessas interpretações. É curioso o visual que traz a focinheira que é colocada à força em Max Rocktansky (interpretado por Tom Hardy), ao ser capturado para servir de bolsa de sangue para um dos Garotos de Guerra de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne). O objeto faz alusão ao tritão de Poseidon, cuja narrativa traz vários traços do mito, além da semelhança com o símbolo da Psicologia, o que remete à ideia de que A Estrada da Fúria é também sobre a jornada interna de Max em consequência ao que viveu nos episódios anteriores da trama. No início do filme são muito mais recorrentes as imagens e alucinações que o levam aos seus traumas de perder toda a família e o caos instaurado no mundo. No decorrer da história essas alucinações não só diminuem, mas quando aparecem servem de motivação e instrução para resoluções dos problemas que encontra no caminho. Ele vê todo esse processo como algo solitário e individualista, sendo o seu único motivador inicial a sobrevivência, até que encontra a Imperatriz Furiosa (Charlize Theron).

Ambas as personagens, Max e Furiosa, estão em busca de redenção. Mas enquanto ele vê todo esse processo como algo solitário e individualista, Furiosa a vê como algo pelo bem comum, na salvação de outras mulheres para que não vivam o que ela também já viveu, e na esperança de um lugar melhor que a realidade da Cidadela, que é completamente controlada por Immortan Joe.

A jornada de Furiosa consiste em encontrar redenção salvando as esposas do tirano, que são tratadas como objetos e mantidas sob proteção para fins reprodutivos, e levá-las ao Vale Verde das Muitas Mães, o lugar do qual nunca esqueceu de ter sido capturada, que seria um paraíso acolhedor. A esperança de chegar a esse lugar é o que move a personagem e motiva as esposas.

É interessante perceber que Furiosa, apesar de resgatá-las, não as ensina nada, são elas que vão se descobrindo e ganhando mais complexidade ao longo do filme. A própria Furiosa ainda não tinha muita certeza do que poderia ser dali em diante, tudo o que ela tinha era uma missão para a sua redenção e a lembrança de um lugar melhor. No entanto, ao descobrir que esse lugar não existia mais, há uma frustração muito grande. A personagem se depara então com as suas raízes e ancestralidade, representadas pelas anciãs que guardam um valioso tesouro, que são as sementes.

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Charlize Theron como Imperator Furiosa

Embora quase todas as terras estivessem inférteis e sem a possibilidade do uso da água, elas mantiveram a esperança de um dia plantar essas sementes e recuperarem o local que perderam. É entrando em contato com elas que Furiosa percebe que, apesar da busca pelo lugar ideal em uma longuíssima jornada, a própria Cidadela poderia se tornar a terra utópica, se as estruturas de poder mudassem e os recursos fossem utilizados visando o bem comum. Acaba sendo uma bela crítica e uma reflexão sobre os rumos que o sistema tem levado e o que tem feito com os indivíduos que vivem nele: talvez não estejamos tão distantes da distopia da Cidadela, em vários aspectos.

REPRESSÃO E REBELDIA: CINCO GRAÇAS

No ano passado, o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro foi um filme curto, apenas 80 minutos, que contava a história de duas mulheres que pouco falavam e, mesmo assim, conseguiram encapsular boa parte da história da Polônia pós-Segunda Guerra durante a ditadura stalinista no começo da década de 60.

A conversa ao entorno de Ida nas semanas que precederam a premiação, entretanto, girou em torno da fotografia estonteante da obra, que rendeu outra indicação ao filme, algo raro quando se trata de filmes estrangeiros e o Oscar. Sua capacidade de contar histórias que ultrapassam o individual para abarcar o coletivo, embora menos comentada, permanece notável. A diretora turco-francesa Deniz Gamze Ergüven exibiu uma habilidade narrativa semelhante este ano com seu primeiro longa-metragem, Cinco Graças, que concorre ao mesmo prêmio que Ida ganhou em 2015.

Ergüven nos apresenta cinco irmãs cheias de vida e liberdade. Órfãs, as cinco moram com a avó em uma pequena cidade do interior que, com crescente conservadorismo, observa o comportamento das meninas com reprovação. Após brincadeiras com garotos na praia, comentários maldosos chegam aos ouvidos do tio das meninas e ele obriga as irmãs mais velhas a passar por um teste de virgindade. Depois disso, as cinco são submetidas a mais uma série de situações humilhantes: grades são instaladas em toda a casa, elas param de ir a escola, casamentos começam a ser arranjados para as mais velhas.

A falta de direitos é especialmente amarga quando eles um dia nos pertenceram. O mais doloroso para elas ao lidar com sua nova situação é saber que antes eram livres. Felizmente, é essa mesma consciência que mantém a rebeldia viva dentro delas, andando de calcinha pelo quintal– mesmo sendo obrigadas a usarem vestidos “cor de cocô” do lado de fora – fugindo de casa para assistir a um jogo de futebol, fazendo sexo anal com o namorado para conservar o hímen intacto.

Contra a perda de direitos, as Cinco Graças ainda possuem algumas ferramentas com que lutar, mas a situação se agrava de forma preocupante quando elas se veem isoladas. A separação das irmãs é o que as debilita mais profundamente. A atmosfera da casa a que estão confinadas se torna cada vez mais opressora conforme elas são separadas uma das outras.

Ergüven nos mostra uma geração de mulheres turcas que está sendo reprimida, mas ao mesmo tempo nos dá esperança em sua união. Juntas elas são mais fortes. Vemos essas meninas serem submetidas a testes de virgindade e serem trancadas como princesas em suas torres, e quem as salvará não será nenhum príncipe. Elas só podem contar com elas mesmas e suas irmãs para sobreviver.

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A Turquia foi um dos primeiros países do mundo em que mulheres conquistaram o direito ao voto, na década de 30, muito antes da França, por exemplo. O país possui uma população majoritariamente mulçumana e é oficialmente laico. Da década de 80 a 2000 o movimento feminista teve grande força no país e, desde 1983, o aborto até a décima semana de gestação é legal. Em 2003, entretanto, com a chegada do partido conservador AKP ao poder, muito do progresso que havia sido conquistado até então caiu por terra.

O atual presidente turco, Tayyip Erdoğan fez declarações públicas dizendo que métodos contraceptivos são traição e que ameaçam a linhagem turca. Desde 2012, a constante comparação entre o aborto e assassinato feita por Erdoğan tem incentivado hospitais públicos a se recusarem a realizar a operação, desafiando a lei vigente. Mesmo em grandes cidades como Istambul, existe uma grande dificuldade em conseguir o cuidado apropriado, o acesso a abortos seguros fica restrito a mulheres que podem pagar pelo procedimento em hospitais particulares. As mudanças no país, entretanto, podem se mostrar ainda mais profundas. Escolas que a princípio eram laicas estão sendo transformadas em colégios religiosos, a educação básica do país está reproduzindo ideais conservadores que podem significar décadas de retrocesso.

A Turquia se encontra profundamente dividida entre dois lados opostos, um progressista, outro retrógrado, não muito diferente do acontece aqui no Brasil e  nos Estados Unidos. A ascenção de políticos como Jair Bolsonaro e Donald Trump marca um crescente conservadorismo ao mesmo tempo que grupos de resistência ficam mais fortes. O movimento feminista turco continua a existir e a lutar, e Cinco Graças dá a entender que as mulheres estão muito longe de desistir dos seus direitos sem uma boa briga.

SORORIDADE E LARICA: BROAD CITY

Fevereiro traz de volta Ilana e Abbi para a Comedy Central na forma da terceira temporada de Broad City, e, se o vídeo promocional da série nos informa de uma coisa, é que a ridícula, brilhante amizade entre elas continua a mesma. Vestidas como boxeadoras, as duas imitam o famoso smack talk anterior a luta, em que os participantes se xingam e quase partem para cima do outro. Mas o que ouvimos são coisas como “eu estou olhando você de frente, mas sei que sua bunda é perfeita” e “por que você está usando esse casaco fofo se todos sabemos que debaixo seus peitos são lindos?” e só o fato de elas estarem sendo barradas por seguranças as impedem de pular nos braços uma da outra.

As comparações são inescapáveis, o enfoque em personagens femininas e a amizade entre elas com Nova York como plano de fundo nos leva naturalmente a pensar em outras séries com essa proposta como Sex and the City e Girls. No entanto, a Nova York de Ilana e Abbi é bem diferente de qualquer coisa que vimos antes com Carrie Bradshaw ou Hannah Horvath. As duas protagonistas judias convivem diariamente com uma miríade de personagens diversos e comicamente reais enquanto exploram seus empregos medíocres, um gosto duvidoso para roupas, colegas de quarto insuportáveis, sexo – de fato – casual, muita maconha, e, o mais importante de tudo, a sua adoração compartilhada uma pela outra. A originalidade de Broad City está, por falta de palavra melhor, no amor entre suas protagonistas.

É revigorante assistir a uma série em que a amizade entre mulheres não é retratada como uma sucessão de episódios ambíguos em que a malícia e o afeto se confundem numa paródia de uma relação saudável. Ao invés disso, vemos duas jovens mulheres cuja amizade é fundamental e necessária em seu cotidiano, mais ainda do que qualquer romance que uma das duas venha a ter. Sim, amizades tóxicas que vemos representadas em tantas séries e filmes existem, é claro, mas a representação contínua da competitividade entre mulheres não é só cansativa como também datada. Com tantas discussões sobre sororidade e suporte feminino, Ilana e Abbi chegaram em um momento em que a sede por histórias indubitavelmente positivas sobre amizade feminina tornou a criação de Broad City oportuna e necessária.

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Depois de duas temporadas aclamadas pela crítica, o que esperar da terceira? Bom, já falamos da amizade inabalável das duas, entretanto, outros aspectos permaneceram igualmente constantes nas duas primeiras temporadas. Elas ainda trabalham nos mesmos lugares, vivem com as mesmas pessoas e têm os mesmos não-namorados (Lincoln, te amo!), logo, não seria de se estranhar se a série logo se tornasse repetitiva e entediante como outros sitcoms que não conseguiram evoluir depois de um início promissor. Mas isso não acontece.

Broad City consegue se manter tão cômica quanto no início em primeiro lugar por não se encaixar como sitcom, já que o seu humor stoner/nonsense não configura nesse gênero já exaurido. Em segundo lugar, porque o sucesso da série não envolve tanto a vida cotidiana da dupla quanto as situações inusitadas em que elas se envolvem e mais importante: os personagens recorrentes. Assim como The Office e Shameless US, boa parte do envolvimento emocional do espectador vem do conhecimento prévio dos personagens. Isso explica por que o piloto da série pode parecer sem sentido – até mesmo absurdo – para um espectador desavisado, mas conforme somos apresentados às idiossincrasias e particularidades de Ilana, Abbi, Lincoln, Bevers e Jaime, a série se torna cada vez mais cativante assim como eles. Nos sentimos próximos desse círculo de pessoas pois estamos por dentro da piada interna. Na primeira cena da nova temporada, vemos Ilana e Abbi em seus respectivos banheiros em diversas situações íntimas e sabemos de cara que esse relacionamento – nós e a série – só vai se aprofundar.

MANIFESTO PELA MONSTRUOSIDADE

Nós conhecemos a história. Estuprada dentro do templo de Atena, Medusa é transformada pela deusa em um monstro horrível cuja visão transformaria qualquer homem em pedra. Conhecemos não porque a mitologia grega é assunto cotidiano, mas porque ainda perguntam que roupa uma mulher estava usando ao ser estuprada, porque ainda dizem que “ela estava pedindo”. Porque nas últimas semanas, temos sido bombardeadas por histórias de terror, mulheres que têm seus direitos tomados, seus corpos transformados em espaço público, um campo de batalha sangrento.

Sangue. Sangue me lembra Carrie, sangrando no chão do vestiário feminino, com medo de morrer, sem saber que “se tornou mulher”, o que quer que isso queira dizer. Carrie, reprimida, vivendo sob o jugo da mãe religiosa, seus poderes incontidos explodindo de dentro dela. “Tampa isso”, dizem as colegas, jogando absorventes na cara dela. Mas, no final, Carrie está coberta de sangue.

Os filmes de terror tem um histórico peculiar no que diz respeito às mulheres. É um dos gêneros em que somos mais representadas, entretanto, um análise crítica nos permite perceber sem grandes dificuldades que a mensagem passada não é que mulheres são protagonistas empoderadas de suas próprias histórias, e sim, que se elas não seguirem um determinado comportamento elas serão devoradas. Só interessa sermos vistas quando somos possuídas, torturadas, caçadas e mortas, então, não é de se admirar que tantas mulheres sejam apresentadas centralmente em filmes de terror. Os homens tem mortes rápidas, as mulheres são aterrorizadas longamente.

Em diversos filmes desde os anos 70, grupos de amigos são perseguidos por psicopatas e assassinados um por um até restar apenas uma sobrevivente. Uma mulher, jovem, atraente e, na maioria das vezes, virgem. Em O Exorcista (1973), a puberdade da pequena Reagan se confunde com sua possessão demoníaca, ela geme, se contorce, fala palavrões e o mais chocante: se masturba com uma cruz. A mensagem é óbvia. O diabo e a sexualidade feminina são uma coisa só.

Não é de se estranhar que todos esses filmes tenham sido dirigidos por homens. Nossas narrativas foram roubadas e deturpadas, distorcidas em moralismo contra nós mesmas. Mas e se contássemos nossas próprias histórias? O que aconteceria quando tivéssemos um teto todo nosso? Talvez então víssemos por outra perspectiva. Uma deusa, furiosa por uma mulher ter sido violentada dentro de seu templo, lhe dá uma forma impressionante, poderosa, capaz de manter longe aqueles que podem feri-la. Talvez, se a história fosse contada por uma mulher, então perceberíamos que a feiura, tão detestada, era não um castigo, mas uma dádiva. Proteção. Empoderamento. Nos filmes de terror dirigidos por mulheres, temos sido monstros, vampiras, mães imperfeitas, e é justamente quando abraçamos nossos lados sombrios que nossos corpos passam a nos pertencer.

Nossa monstruosidade, nossa feiura, ela deve ser nossa, as histórias por trás de nossas cicatrizes devem ser contadas por nós mesmas, não podemos mais deixar que elas sejam apropriadas e jogadas contra nós. Em O Riso da Medusa, Hélène Cixous diz que “a mulher deve se escrever: deve escrever sobre mulheres e trazer outras mulheres para a escrita, de onde elas foram violentamente retiradas como dos seus próprios corpos[…] Mulher deve se colocar em texto – assim como no mundo e na história – por seu próprio movimento” (tradução livre).

Então, este é o meu manifesto. Escrevam. Contem-nos sobre Perséfones que pulam no buraco ao invés de serem puxadas, sobre Medusas que são abençoadas ao invés de castigadas, sobre Reagans que se masturbam e falam palavrão e não precisam ser salvas disso, se apropriem de seus corpos, sejam poetas, monstros, mulheres, mulheres, mulheres.


Escrito ao som de Selvática da Karina Buhr e ilustrada por Morgue.

CARTA À PETRA: ELENA + OLMO E A GAIVOTA

Quando assisti Elena, em 2013, já havia pensado e desistido várias vezes da ideia de fazer um filme sobre a minha avó, pensando na superexposição que isso poderia ser, na má-interpretação que poderia gerar por parecer egocentrismo ou mesmo pela aparente facilidade de tema, realização e produção. Tudo isso, depois de ver Elena, se revelou exatamente o contrário: falar sobre si e sobre as suas próprias origens é um ato de coragem. Uma coragem não só de se expor, mas de encarar a si própria, à sua família, ao que está mais intrínseco ao que é você. É também um ato de humildade. Colocar sua própria história e, especialmente no seu caso, entre outros tantos temas abordados no filme falar também sobre um assunto tão delicado, o suicídio de sua própria irmã, no intuito de poder, de alguma forma, contemplar, como que abraçar outras pessoas que possam ou não ter passado por algo semelhante. É preciso sim falar sobre o que está dentro de nós. Tornar-se uma ponte para outras pessoas que lidam com situações semelhantes, mas que não são ditas pelos tabus, pela sociedade cada vez mais rápida, agressiva, do movimento contínuo sem reflexão, yang, que não permite que tragamos à tona as sutilezas que habitam as nossas almas e que às vezes atrapalham nossas próprias tarefas cotidianas – que são tão exigidas por esse sistema – por serem deixadas de lado e nunca entendemos o porquê.

Peço licença, Petra, para expor o que eu vejo dos seus filmes e que me encorajou a ser cineasta, a permitir que eu me buscasse no meu trabalho, e que o meu trabalho fosse reflexo dessa busca. Seus filmes mostram o processo de autodescoberta, e é como se você estivesse compartilhando todas as suas inquietações, como um fluxo de pensamentos, que a gente consegue captar – pelo menos quem é mulher e passa por essas questões. Em Elena, é como se fosse necessário pra você fazer emergir e expelir suas angústias em forma de filme. As imagens têm cunho quase onírico, com imagens de arquivo pessoal no quais podia-se ver e ouvir depoimentos de Elena, fragmentos de sensações do real, depoimentos seus e de sua mãe. A partir disso, é possível ver uma correlação entre as três.

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A escolha de composição das imagens para retratar as sensações em Elena é repleta de planos fechados, buscando detalhes de pele, querendo mostrar algo além das imagens das personagens. A câmera na mão é elemento marcante no filme, percorrendo pessoas e ruas, ficando difícil definir o que está sendo buscado: a câmera está perdida com e como você, como todos nós. Essas imagens são colocadas em contraste com as de arquivo, que, montam uma memória imagética existente fora e dentro de Petra: fora ao ser mostradas, remetem a uma memória externa a você – eram fatos meramente registros de situações; dentro uma vez que essas imagens são mostradas poeticamente a partir da memória da sua própria memória e suas vivências.

Além das questões que envolvem a irmã, você busca retratar também o seu estar se tornando mulher – a mesma fase em que Elena se encontrava. Isso é mostrado, externalizando o que mais de interior nos afeta, na cena em que várias mulheres descem rio abaixo, buscando suas próprias origens, tudo o que todas nós passamos, que nossas mães, nossas avós passaram, simbolicamente pelo fluxo das águas. E foi o mesmo momento em que me encontrava, que várias mulheres com quem convivo se encontravam: o que sou eu e o que são as construções em mim, o que é meu e o que é das minhas antepassadas?

E qual não foi a minha surpresa ao me deparar Olhos de Ressaca, sobre seus avós maternos. O mesmo ponto em que eu me encontrava: tentando resgatar as minhas origens para entender os meus próprios processos. É como se você já quisesse falar de Elena, mas ainda precisasse entender outros momentos, suas próprias origens, para deixar vir à tona outras feridas. Um processo de libertação. Já se vê muito do que o seu longa-metragem seria, em especial na cena em que sua avó é filmada flutuando na piscina, com a mesma trilha-sonora que marcaria Elena.

Elena, o filme, é a trajetória de uma mulher em busca de ser não mais duas, mas uma. Trata de um tema crucial para todas as mulheres, a individuação. O arrancar-se do corpo de uma outra – mãe… (irmã…) – para poder existir. Quando esse movimento de matar e morrer simbólico, necessário para o tornar-se mulher, é atravessado por uma morte literal, concreta, tudo ao mesmo tempo se torna mais urgente e mais enroscado. Como matar quem já está morto e que dói em nós como uma saudade brutal? Como ferir de novo a mãe, ainda que desta vez de modo simbólico? (BRUM, 2013, Revista época on-line)

Você chama Elena de memória inconsolável. A realização desse filme não tem a intenção de dar respostas, mas de compreender o que há de Elena dentro de você, e dentro de todas nós, perceber esse ciclo no qual ela se encontrava, de perceber que frequentemente enfrentamos exatamente as inquietações que a sua irmã vinha sofrendo sozinha. A tentativa de fechamento de uma cicatriz, e também seu próprio processo de individuação: deixar a Elena que habita dentro de nós morrer, para nos tornarmos.

O momento em que Olmo e a Gaivota chegou, pessoalmente pra mim, mas principalmente nessa discussão efervescente deste momento em que, ao mesmo tempo vemos mulheres cada vez mais emponderadas sobre si, por outro lado o poder do país – majoritariamente composto por homens – tentando estraçalhar essa conquista que ainda engatinha no mundo.

E eu não posso deixar de fazer uma análise além de estética desse filme, que lindamente faz uma mistura de linguagens e idiomas, do Teatro, da Literatura, do ficcional e do documental, mas a análise social que é urgente, presente nesse filme. Esse filme é sobre o mito da maternidade construído em todas nós desde muito cedo. Como Eliane Brum, mais uma vez se utilizando brilhantemente do seu trabalho para aplicar aos contextos da nossa realidade, analisou o caso da empregada doméstica de Higienópolis que, desesperada, “abandonou” o filho ao pé de uma árvore e aguardou para se certificar de que alguém o encontraria. O Cinema, ao longo de sua história, alimentou esse imaginário, de uma mulher que, desesperada e aos prantos, abandona um bebê em uma cesta à porta de um orfanato, aguardando que alguém o acolha. Nos filmes clássicos, causa comoção; na realidade, linchamento.

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Olivia é uma atriz, cheia de sonhos, que depois de 10 anos de trabalho, assiste ao começo do fim da carreira, como ela diz. Ela já não vai ser a atriz principal, nem a mais jovem, e se questiona se haverá espaço para ela após o nascimento da criança. O cotidiano da gravidez de risco a deixa isolada, não a deixa trabalhar, e ela se vê presa a um ser desconhecido que a habita, e que, embora ela receba essa notícia com amor e vontade, se sente culpada por não estar completamente feliz com essa gravidez, como o mundo inteiro nos faz acreditar que deveria ser. O seu companheiro, Serge, continua trabalhando e vivendo o que ambos viviam juntos. Nos poucos momentos em que se encontram, Olivia quer um pouco de afeto e proximidade, mas Serge está muito cansado. Tenho o meu presente e você tem o seu, ele diz. Olivia não tem só o presente dela, ela carrega o presente dela e de Serge também, mas ele custa a compreender.

Por ter uma rotina extremamente cuidadosa, mergulhamos no psicológico de Olivia – coisa que raramente é trazida nos filmes, já que a gravidez é uma consagração unanimemente perfeita, como o imaginário nos fez acreditar ingenuamente. Entramos nas lembranças de Olivia, nas suas sensações, nas suas inseguranças. Em suas memórias inconsoláveis do que ela foi e do que projetava ser.

Confesso, no entanto, que fui à sessão de Cinema com o intuito de chorar bastante, e me deparei com um filme bastante leve, e após a sessão saí feliz. Feliz por mim, feliz por Olivia, feliz por quem eu sei que vai assistir ao filme e se sentir contemplada. De mais uma vez, você ter trazido o peso das coisas com delicadeza, e saí com a sensação de mais uma vez ter alguém que nos compreende e consegue falar através da nossa voz, e que há quem nos represente. Não estamos loucas. Nem sozinhas. Obrigada, Petra.