Filmes me ensinaram a sentir.
Depois de seis anos, voltei à terapia. Tenho descoberto muitas coisas sobre mim e minhas relações com as pessoas e o mundo, e algo que tem me voltado à mente com alguma frequência é esta frase: filmes me ensinaram a sentir.
No final de 2018, outra frase me perseguia, repetida como um mantra na minha cabeça: “eu quero voltar a ser gente, eu quero voltar a ser gente”. O que, sim, estava relacionado ao ritmo louco de produtividade que nos é exigido atualmente, transformando tudo que nós gostamos/fazemos/somos em algoritmos capazes de gerar lucro enquanto consumimos conteúdo que não parece nunca preencher nosso vazio existencial. Mas, para além dessa ideia de seres humanos como máquinas dentro de uma cadeia de produção interminável, me peguei pela primeira vez questionando essa impessoalidade no contexto familiar e como ela alimentou e foi alimentada pela relação com os meus pais.
Com um pai militar que viajava com frequência durante a minha infância e cuja carreira nos fez morar longe de tios e avós, uma mãe muito jovem e solitária que não pôde ter outros filhos, minha educação emocional – no que diz respeito à construção de relações de afeto em uma comunidade – foi esparsa. Não consigo me lembrar, na minha infância e adolescência, de momentos de rotina do dia-a-dia em que passasse junto com meu pai e minha mãe para conversar. Apesar de meus pais sempre terem sido muito carinhosos, nunca construímos uma troca de pensamentos e diálogo que nos permitisse conhecer uns aos outros de forma profunda.
Pode parecer uma associação inusitada, mas acho que isso se relaciona de alguma forma com o fato de nunca termos, como família, nos importado muito com comida. Não tínhamos o hábito de comer juntos, eu ia para a escola cedo, meu pai trabalhava o dia inteiro, e ninguém dava muita bola para o jantar. Minha mãe nunca gostou de cozinhar e meu pai sempre preferiu requentar a comida no microondas a sair e ter que esperar pela comida por mais de dez minutos. Comíamos cada um numa hora, e a comida nunca era particularmente especial.
Apesar disso, muitas das minhas lembranças com meus pais na infância e na adolescência estão relacionadas a comida, mesmo que comida ruim. Pipoca de microondas no final de semana enquanto meu pai assistia ao futebol; as raras vezes que minha mãe fazia lasanha e eu comia a massa de macarrão com a mão, queimando os dedos e a língua; sorvete e outras besteiras de madrugada com minha mãe enquanto meu pai dormia; visitas mensais ao supermercado com o meu pai, uma das únicas coisas que fazíamos juntos, mesmo depois que eu me tornei uma adolescente mal-humorada. Quase todo o resto da minha memória afetiva foi construída por filmes e livros que caíam nas minhas mãos.
Não é tão estranho que eu tenha compensado a deficiência na minha formação afetiva com as artes, especialmente a literatura e o cinema. Acredito também que, apesar das peculiaridades do meu histórico familiar, não seja incomum, dentro de uma sociedade ferozmente competitiva e cada vez mais focada no indivíduo, que as pessoas se sintam mais e mais desconectadas de suas comunidades e redes de apoio, com poucas oportunidades para amadurecer emocionalmente. Nossa obsessão até mesmo na política por heróis e vilões tem nos mostrado isso.
Não que todos os filmes e livros caiam na velha dicotomia de bem contra o mal, longe disso. Mas, querendo ou não, essas são histórias que ocupam maior espaço e acabam por povoar o imaginário coletivo com enorme força. Pessoalmente, tenho pouco interesse nesse tipo de narrativa, embora entenda o seu apelo, em especial quando se enxerga a arte como escapismo.
Nos últimos tempos, tenho voltado a pensar sobre isso, como consumimos arte, o que ela representa para nós. Acho curioso que o audiovisual tenha se transformado em mais um utensílio no grande arsenal do tal “self-care” (ou, pelo menos, a ideia propagada nas redes sociais do que é o self-care), como se assistir a seis horas seguidas de uma série para tirar nossa atenção do estado em que se encontra a nossa vida fosse de fato uma prática de auto-cuidado. Confunde-se distração com satisfação, consumo com prazer. Para mim, essas coisas não poderiam estar mais distantes. Tem ficado cada vez mais claro que o que eu procuro é transcendência.
No ano passado, ouvi um episódio no podcast The New Yorker Radio Hour em que o roteirista e diretor Paul Schrader fala sobre sua relação com religião e o cinema. Criado por uma família da Igreja Reformista Cristã calvinista, Schrader, conhecido por ter escrito filmes como Taxi Driver e Touro Indomável, viu seu primeiro filme aos 17 anos de idade. Ele relata que só foi pensar no cinema de forma mais profunda quando entrou em contato com os filmes de Ingmar Bergman e percebeu que eles traziam as mesmas discussões que ele ouvia na sala de aula da faculdade e na igreja. Foi quando percebeu que o cinema e a religião não eram incompatíveis. Alguns anos depois disso, morando em seu próprio carro, sem falar com ninguém por semanas, com uma úlcera no estômago, Schrader sentia algo crescer dentro dele que, se não extirpasse, iria devorá-lo: Travis Bickle, o taxista violento e deprimido de Taxi Driver. Schrader não escreveu o roteiro de Taxi Driver porque queria fazer um filme, mas porque queria exorcizar seu próprio demônio.
O título do episódio, Movies as religion, “filmes como religião”, ressoou em mim. Eu tenho uma história complicada com religiões, há alguns anos não frequento nenhuma igreja e hoje oscilo entre o ateísmo e o agnosticismo, mas não gosto da ideia de que não haja nenhum tipo de magia no mundo.
Este ano, de volta à terapia, ao tentar explicar a alienação eu sentia e a conexão que buscava, eu voltava ao cinema de novo e de novo como uma pessoa religiosa voltaria a passagens do seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, estava lidando com a crise da moda dos millenials: a síndrome do burnout. O segundo semestre de 2018 foi repleto de trabalho (parte dele remunerado, outra não) e desgaste emocional (cortesia, dentre outras coisas, das eleições) que acabaram por debilitar muito o meu sono e gerar uma série de crises de ansiedade.
Parte disso estava ligado ao fato de que muito do meu trabalho era feito online ou de forma muito desestruturada. Isso além de fazer trabalho “artístico” e “que eu amo”, o que dificultava muito a separação entre a minha vida profissional e pessoal. As redes sociais se tornaram um espaço de auto promoção e divulgação, o que acabou ainda mais com qualquer divisão entre o trabalho e a vida privada que pudesse existir. Momentos de descanso se tornaram escassos e carregados de culpa, a necessidade de produzir e ser útil me consumiam, minha existência se justificava pelo fazer e não pelo ser.
Quando finalmente percebi que estava doente – física e psicologicamente – uma das primeiras coisas que eu percebi que tinha de fazer era retomar meu senso de valor independente da produtividade. Escrever textos (bons ou ruins) que jamais seriam publicados. Ver filmes e ler livros que eu queria e não porque estava tentando bater uma meta arbitrária. Assistir a dramas coreanos que me davam vergonha. Passear com o cachorro devaneador da minha vizinha por uma hora e meia, duas. Entender que minha existência tinha valor, mesmo que eu não estivesse produzindo.
Nessa mesma época, eu já estava imersa numa intensa maratona, inicialmente acidental, de filmes sobre/com comida que a princípio associei com minha gulodice costumeira e com o conforto que os filmes me traziam já que a maioria deles eu havia assistido antes e gostava bastante. Conforme fui assistindo aos filmes, entretanto, comecei a perceber que talvez a minha obsessão tivesse outras raízes, o que ficou ainda mais claro quando entrei em contato com dois livros sobre prazer.
Um deles foi o Pleasure Activism, cuja tradução seria algo como “Ativismo do prazer”, da pesquisadora Adrienne Maree Brown, no qual ela defende o prazer como uma ferramenta política. Brown escreve: “Parte da razão pela qual tão poucos de nós têm uma relação saudável com o prazer é porque uma pequena minoria da nossa espécie acumula o excesso de recursos, criando uma falsa escassez e, depois, tenta nos vender alegria, tenta nos vender a nós mesmos” (tradução nossa). Vale sublinhar que uma “relação saudável com o prazer” diz respeito também à moderação, e não nos jogarmos aos excessos do consumo para nos distrair de nossas dores e tragédias. Não adianta buscar o prazer para nos desconectarmos do que nos fere; o prazer real, que nutre, é um exercício de conexão.
A ideia de sair da lógica da escassez, a ideia de que o prazer, o deleite e a alegria poderiam ser uma ferramenta de resistência em um momento de tanta agonia pessoal, profissional, social e política, me pareceu revolucionária. Mas não foi a primeira vez que me deparei com esse pensamento.
Quando assisti a Café com Canela de Glenda Nicácio e Ary Rosa em 2017, depois da belíssima sessão no Festival de Brasília, precisei de alguns minutos para entender a euforia que me invadia. Entender a potência de um filme sobre pessoas negras no interior da Bahia que ousam ser felizes, cuidar uns dos outros, nutrir e alimentar uns aos outros, literal e metaforicamente. Estava tão acostumada com o sofrimento a que estão relegados os corpos negros e os corpos de mulheres no cinema, que o choque do deleite, do prazer e das subjetividades representados em Café com Canela me tocaram profundamente.
A rede de afetos que vemos no filme é vasta e cada uma é muito particular. Muitas delas são expressas através da comida. O churrasco com os vizinhos cheios de histórias contadas, as lembranças de festa de São João, a sopa dada na boca da avó acamada, a receita de família da coxinha que Violeta vende, o café com canela de Violeta que esquenta o corpo e a alma de Margarida.
O outro livro que eu li nessa época foi The Book of Delights, “O livro dos deleites”, uma compilação de pequenos ensaios (“ensaietes”) em que o autor, o poeta Ross Gay, se debruça sobre um deleite por dia ao longo de um ano (ele não escreveu 365 ensaios, um dos deleites era o deleite de furar compromissos).
Na introdução do livro, Gay escreve:
“Um ou dois meses iniciado o projeto, deleites estavam me chamando: Escreva sobre mim! Escreva sobre mim! Porque é grosseiro ignorar os seus deleites, eu dizia a eles que, embora eles talvez não se tornassem ensaietes, eles ainda assim eram importantes e eu era grato por eles. Em outras palavras, eu sentia a minha vida mais cheia de deleite. Não sem tristeza ou medo ou dor ou perda. Mas mais cheia de deleite.” (tradução nossa)
Em Café com Canela, a dor de Margarida é uma ferida profunda que provavelmente nunca se fechará por completo e isso merece ser honrado também. Não se trata de negar a tragédia, trata-se de se permitir continuar a viver não apesar dos mortos, mas por eles. Para honrar a vida que eles não podem mais ter, vivendo-a da melhor forma possível.
“O desejo e o prazer são duas formas pelas quais afirmamos que existe algo pelo qual viver.” (BROWN, Adrienne Maree. Pleasure activism: The Power of Feeling Good).
Existe algo muito potente em reconhecer nossa fome. Além de ser uma forma de perceber que se está viva, o desejo quando se é mulher é uma transgressão. Afinal, quando a escassez é regra, a abundância é transgressora.
Sempre me espanta que distúrbios alimentares como a anorexia e a bulimia sejam vistos como formas de chamar atenção. A falta de comida nos torna menores, cada vez menos visíveis. Mulheres são ensinadas a não pedir nada, nunca devemos querer mais do que nos é dado, seja comida, amor ou sexo; distúrbios alimentares são apenas mais uma forma de não causar incômodo com nossos desejos.
Reconhecer essa fome/desejo/vontade é voltar à carne, ao erotismo. Em Como Água para Chocolate, de Afonso Arau, quando os sentimentos de Tita transbordam para além do que lhe é permitido sob o controle tirânico de sua mãe, ela os transfere para a comida que cozinha, compartilhando suas emoções mais profundas com quem se alimenta de seus pratos. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, a irmã de Tita fica tão consumida pelo desejo que Tita imbui na comida que ela literalmente rompe em chamas e foge nua com um homem a cavalo.
A manifestação da fome feminina é libertadora. Na minissérie coreana 밥 잘 사주는 예쁜 누나 (a tradução literal seria algo como “irmã mais velha que me compra comida”, mas na Netflix a série está sob o título Something in the Rain, “algo na chuva”), a protagonista Jin-ah é uma mulher titubeante e recatada, que aguenta o abuso dos chefes calada e é rejeitada por um namorado que não a valoriza. Quando começa a sair para jantar com Joon-hee, o irmão mais novo de sua melhor amiga, a adoração que ele sente por Jin-ah a faz perceber pela primeira vez que seus desejos e vontades são dignos de serem saciados. A coragem de se satisfazer a fortalece.
Algo parecido acontece com Ila, protagonista do filme The Lunchbox do diretor Ritesh Batra. Por conta de um engano no complicado sistema de entrega de comida na Índia, o almoço especial que Ila prepara para tentar reavivar o casamento é entregue para Saajan, um funcionário público viúvo prestes a se aposentar. A partir daí, Ila e Saajan começam a compartilhar sentimentos e histórias muito pessoais em cartas diárias. A vulnerabilidade a que os dois se expõem os aproxima, e Ila continua a preparar comida para Saajan. Se toda carta é uma carta de amor, cada prato preparado sem obrigação para outra pessoa também o é.
A associação entre a fome e o desejo carnal é antiga e já foi muito explorada não apenas pelo cinema e pela arte, mas também por textos religiosos. Afinal, para muitos, o pecado original foi uma mulher comer algo que não devia. Em O Banquete de Babette de Gabriel Axel, vemos uma comunidade religiosa no interior da Dinamarca ficar muito inquieta com o iminente banquete que será oferecido por Babette, uma refugiada francesa que foi acolhida pela pequena vila. Os aldeões observam com crescente alarme enquanto os ingredientes sofisticados como tartaruga e vinhos caríssimos chegam à vila, convencidos de que um banquete como esse fará com que se entreguem ao mundo material e se afastem de Deus.
O que acontece, entretanto, é o contrário. Ao comer da comida de Babette, a pessoas da vila entram em comunhão umas com as outras, o prazer as torna mais generosas e tolerantes, e a comida é tão deliciosa que comê-la se torna uma experiência transcendental, um encontro com as outras pessoas da comunidade e com Deus.
Esse encontro do prazer e da comunhão é uma das coisas que mais me atrai nesses filmes, mas também me interesso pela comida de forma mais banal, uma necessidade do dia-a-dia. Sempre quando penso em comida e cinema, as imagens encantadores das comidas nos filmes do Studio Ghibli me vem à mente. Recentemente percebi que O Serviço de Entregas da Kiki de Hayao Miyazaki é quase um filme sobre comida, embora de forma discreta. Além de trabalhar em uma padaria, Kiki ajuda uma vovó a fazer uma torta para a neta, se preocupa com quanto dinheiro tem para fazer alimentar a si e seu gato Jiji e se emociona ao receber um bolo de presente como agradecimento. Tratam-se de momentos amáveis ou corriqueiros, mas que sempre nos lembram da ternura do cotidiano.
Filmes sobre comida se relacionam muito com o tempo. A hora de cada refeição, o tempo de preparo, a estação certa para plantar e para colher. Pequena Floresta, do diretor Jun’ichi Mori, nos faz sentir esse tempo. Dividida em dois filmes de duas horas cada, Pequena Floresta: Verão/Outono e Pequena Floresta: Inverno/Primavera, a trama é quase inexistente. Vemos Ichiko plantar, colher, cozinhar e refletir ao longo de quatro horas no que se torna quase um exercício meditativo. Da primeira vez que assisti aos filmes, fiquei inquieta, já na segunda, o tempo lento do filme me envolveu de tal forma que me senti repleta de calma. “Tudo ao seu tempo” é uma frase que nunca me deu muita tranquilidade, sou impaciente demais para isso – mas perceber que algumas coisas estão além do nosso controle pode ser algo surpreendentemente reconfortante.
A versão coreana de Pequena Floresta, Little Forest, da diretora Yim Soon-rye, também é um filme sobre o tempo, mas este foca mais no conflito da protagonista, na sua jornada interior para a plenitude, é um filme sobre atingir a maturidade, uma história de formação. Assistimos a Hye-won voltar para a casa onde cresceu, cozinhar os pratos que sua mãe a ensinou, mas do seu jeito, aprendendo a ser uma mulher adulta dona de si ao mesmo tempo que consegue, finalmente, entender e perdoar sua mãe por partir.
Cozinhar como ato de memória, de honrar e superar a tradição. Esse é um tema comum quando falamos de comida. Comer Beber Viver de Ang Lee também volta a ele, com a história de três irmãs que vivem na casa do pai chef de cozinha, reunindo-se a cada domingo em torno do ritual de almoço dominical. Cada uma das filhas enfrenta um momento crítico para alcançar a vida adulta e os almoços semanais funcionam como momentos para anunciar os surpreendentes novos eventos para o patriarca da família, o que acaba por alterar a dinâmica familiar e transformá-la em algo novo.
O chef e dono dos restaurantes Momofuku, David Chang, em sua série documental da Netflix, Ugly Delicious, retorna à temática da inovação versus tradição. Chang é conhecido por suas criações excêntricas e fusões de tradições culinárias distintas, mas ele sabe que, para chegar à originalidade e à inovação, é importante conhecer e respeitar as origens e tradições. Esse respeito não é apenas pelos ingredientes, pelas técnicas e nem mesmo pela cultura em que ele está se inspirando, mas pela memória afetiva de cada um.
No terceiro episódio da primeira temporada da série, Comida Caseira, Chang e outros chefs e críticos culinários falam sobre sua relação afetiva com a comida, suas famílias, seus parceiros e parceiras, amigos, filhos. Em um determinado momento, Chang relata que quando ele era mais novo, tudo que ele queria era se afastar da cultura coreana dos pais. Contudo, depois de ter se tornado um chef renomado, ele começou a associar a comida de tradição europeia ao ambiente tóxico e abusivo dos restaurantes onde passou seus 20 anos trabalhando e, cada vez mais, o que ele queria fazer era retornar à comida que sua mãe fazia em sua infância e levar isso para o restaurante. Trazer não apenas sabores deliciosos para os clientes, mas de alguma forma acessar esse lugar mágico da memória e do afeto com a sua comida.
Volto a pensar nos meus pais, em comida, em caminhos para o encontro e para o diálogo. Penso em horas gastas de forma improdutiva, na cozinha, rindo e cozinhando juntos, conversando e bebendo vinho. Essas não são memórias, são imagens forjadas pelos filmes que me ensinaram a comer e a viver. São desejos e há potência reconhecer desejos e em, quem sabe, saciá-los.
Existe um quê de utopia em todos esses filmes e séries sobre comida. São experiências sensoriais que nos fazem quase sentir o cheiro e o sabor de cada coisa, nos levam a pensar em um tempo mais lento, em construção em comunidade, em erotismo e desejo, em pontos de encontro entre gerações, em afeto, deleite, prazer. Pode parecer irresponsável falar em utopias quando parece que estamos caminhando para o abismo, mas, se distopias nos alertam para os perigos de como estamos vivendo, as utopias nos lembram de razões para continuar a lutar para viver.
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Café com Canela, por uma espectadora negra entre a fruição e a crítica, de Letícia Bispo
O texto está cheio de spoilers. O que você está fazendo aqui perdendo tempo com leitura quando tem quatro episódios novos de Gilmore Girls pra assistir?
Esse texto chega com alguns meses de atraso. A verdade é que eu, como outros diversos fãs da celebrada série americana, assisti às seis horas de Gilmore Girls: Um Ano Para Recordar no dia de seu lançamento, desconsiderando os desejos da criadora da série, Amy Sherman-Paladino. Talvez ela estivesse certa, talvez assistir a um episódio por semana, com tempo para digerir mais lentamente os acontecimentos da vida das mulheres Gilmore teria tornado a experiência da “oitava” temporada mais completa e, no final das contas, mais satisfatória. Mas, para (mal) citar Barthes, o autor está morto e assistir aos quatro episódios cercada de amigas e consumindo uma quantidade de açúcar que deixaria Lorelai Gilmore orgulhosa me pareceu uma alternativa mais atraente.
Então, aqui estamos nós, quase dois meses depois daquele fatídico 25 de novembro. Por que tanto tempo? Bom, porque eu assisti às seis horas de Gilmore Gilrs: Um Ano Para Recordarcercada de amigas e consumindo uma quantidade de açúcar que deixaria Lorelai Gilmore orgulhosa. Não sei se há comprovação científica, mas minha experiência me permite dizer: existe ressaca de açúcar. Ou, talvez, de muitas horas de uma série que havia terminado há quase dez anos e que fez parte da sua infância e adolescência e que de repente voltou te deixando sem saber o que sentir ou pensar.
Minha confusão mental durou tempo suficiente para que eu lembrasse que eu levo essa série pro lado pessoal. Isso quase me impediu de escrever, mas então pensei: “e você, leitor, também não leva?” Imagino que mesmo que sua vida seja completamente diferente e não se relacione em nada com a vida das mulheres Gilmore, caso você tenha usado do seu tempo e atenção pra acompanhar às oito temporadas – oito anos – para saber o que seria de Lorelai, Rory, Emily, Sookie, Luke e tantos outros, isso deve significar que você também tem algum investimento emocional nessa série.
Como eu, imagino que muitos fãs tenham se sentido igualmente confusos e até mesmo um pouco frustrados com o que foi feito da série que tanto amávamos. Ao sentar e escrever consegui com mais clareza delinear o que me incomodou e o que fez sentido nessa nova temporada. Não procuro defender ou atacar a série, mas refletir sobre os erros e acertos estruturais de Um Ano Para Recordar, levando em consideração a série original e também o contexto da televisão/streaming que estamos vivendo.
Pois bem, deixamos Rory, ou melhor dizendo, Rory nos deixou em 2007, partindo para cobrir a campanha do então senador Barack Obama pela presidência dos Estados Unidos e para se tornar a grande jornalista que ela sempre sonhara ser. Lorelai havia encontrado sucesso profissional com sua pousada e, esperávamos, emocional ao lado de Luke.
Se o título da nova temporada, “A Year in the Life” no original – cuja tradução literal seria “um ano na vida” – nos dava a alguma pista, era de que o tempo seria um tema central na série. Mais do que a passagem do tempo em si, a ideia evocada era a de ciclos e repetições, como ficou claro com a notícia que os quatro episódios seriam marcados pelas estações do ano. Não é tão surpreendente, então, que nove anos depois, reencontremos as personagens não tão distantes de onde nos despedimos delas.
Rory continua a viajar e escrever sem moradia fixa, Lorelai tem sua pousada e Luke. A estagnação das personagens, a princípio, não fica tão aparente, escondida por detrás de uma mudança de tom. Um dos grandes desafios de transportar uma série do início dos anos 2000 pra 2016 é que tanto as séries quanto o público não são mais os mesmos. O streaming e a abundância de conteúdos criaram espectadores altamente exigentes e educados em linguagem audiovisual e as consequências disso são diversas. Temos cada vez mais séries autoconscientes que se tornam cúmplices do espectador, utilizando as tropes conhecidas para subvertê-las. Em Jane The Virgin, por exemplo, as novelas latinas são tanto parodiadas quanto homenageadas, em Scream, vemos o arquétipo da Final Girl ser discutido abertamente pelos personagens.
Nem todas as séries que têm surgido nos últimos anos, entretanto, são autoconscientes, algumas delas se valem de um grau de choque e violência crescente e subversão das expecativas para surpreender seus espectadores. A popularidade de séries como Black Mirror, Game of Thrones e House of Cards nos revela um interesse particular pelo pessimismo e pelo obscuro. Nem mesmo as séries de comédia escapam a essa tendência, e assistimos a Orange Is The New Black e The Unbreakable Kimmy Schmidt fazerem uma comédia ácida, cortante e que por vezes envereda mais pelos caminhos do drama do que do humor.
Como, então, trazer Gilmore Girls pra atualidade sem perder o ar charmoso e leve da série original? De repente, Stars Hollow, uma cidade pitoresca cheia de moradores excêntricos que se reúnem para organizar eventos curiosos, antes tão amada pelas protagonistas, é chamada de “uma cidade construída dentro de um globo de neve gigante” por Lorelai e a partir daí já temos uma ideia de que as coisas não são mais as mesmas. Se antes Lorelai se deleitava com as esquisitices da cidade, como o bizarro Museu da História de Stars Hollow, agora ela fica ofendida por um musical que, por pior que seja, é exatamente o tipo de coisa que os moradores de Stars Hollow sempre fizeram.
Essa mudança de tom da série atinge com mais força a personagem de Rory Gilmore, a menina dos olhos de Stars Hollow. Rory Gilmore dos anos 2000 era muitas coisas e nem todas elas boas. Ela era inteligente, ambiciosa, ávida, mas também extremamente privilegiada e egocêntrica. Rory Gilmore dos anos 2000 traiu um namorado, mentiu para amigas e teve um caso com homem casado, mas Rory Gilmore dos anos 2000 percebia suas maiores falhas, se arrependia de suas escolhas, procurava redenção.
Em 2017, Rory Gilmore mudou. Mudou por dentro, pois ela ainda faz as mesmas coisas. Ela continua a trair um namorado e ter um caso com um homem comprometido, mas a diferença é que não há mais autoquestionamento. O namorado traído é uma piada recorrente, a noiva de Logan não tem rosto, é apenas uma inconveniência para Rory. Vemos o que havia de romântico e esperançoso na personagem se transformar em um cinismo apático. É triste perceber que o egocentrismo de Rory, antes contrabalanceado por um forte senso de certo e errado, se torna sua maior característica.
Entretanto, isso não é algo ruim. Se antes, Rory era defendida e mimada apesar de todos os erros que cometia, ela agora não pode mais se esconder por detrás de um jeitinho inocente. Aos 32 anos de idade, Rory tem que encarar muito bem a pessoa que ela se tornou e perceber que todos os seus privilégios não garantiriam sucesso. É um tapa na cara, mas também um alívio: mesmo Rory Gilmore – oradora da turma, formada em Yale, amada por todos – pode não ter tanta certeza do que diabos está acontecendo na vida dela.
A falha no arco narrativo de Rory não está no fato de ela ter que lidar com fracassos. Os fracassos de Rory são frutos da sua crença – alimentada por todos ao seu redor – que ela simplesmente tinha direito ao sucesso, afinal, ela sempre fora tão inteligente, esforçada e especial. Aqui, poderíamos fazer um parênteses sobre millenials e a geração que foi criada para acreditar que poderia ser o que quisesse, mas isso já foi amplamente discutido antes dentro e fora do contexto de Gilmore Girls.
Como vimos anteriormente, o grande mote dessa temporada são ciclos. Acredito que essa escolha não tenha sido tomada apenas por conta das tão esperadas quatro últimas palavras, indicando que a vida é essa coisa engraçada que se repete, mas também para justificar o fato de as personagens principais terem parado no tempo. Rory não ter avançado muito na carreira não é um problema, mas ela continuar a cometer os mesmos erros de seus vinte anos, coisas que já haviam sido resolvidas em temporadas anteriores, soa como retrocesso. O mesmo acontece com Lorelai.
Apesar de terem passado nove anos juntos, Lorelai e Luke continuam a ter problemas devido a aparente falta de comprometimento de Luke. Eles nem ao menos haviam conversado sobre filhos em uma década de relacionamento, algo difícil de acreditar. Mesmo sem considerar o fato de os dois estarem juntos há quase uma década, como não lembrar de Luke, na quinta temporada, pronto para comprar uma casa enorme para os dois encherem de crianças? Algo não está certo. O que fez o relacionamento deles permanecer estático? A ideia de ciclos, por mais atraente que seja, não é suficiente para justificar tamanha estagnação. Acredito que a resposta não está na narrativa da série em si, mas nos trâmites de produção e criação que vão além dela.
Amy Sherman-Palladino, devemos lembrar, não escreveu a sétima temporada e não foi capaz de dar o fim desejado para sua série em 2007. Em 2016, ela teve enfim a chance de concluir sua obra, mas muitas das questões que ela decidiu tratar já haviam sido resolvidas pelos roteiristas da sétima temporada, dando essa impressão de que Rory está passando por uma fase de inconsequência que faria muito mais sentido quando ela tinha seus 23 anos e deixando Lorelai estagnada por tantos anos.
Não é de se admirar, então, que o arco narrativo mais bem construído de Um Ano Para Recordar tenha sido fruto de uma mudança que a série não pôde controlar: com a morte do ator Edward Herrman, que interpretava Richard Gilmore, o destino da terceira – frequentemente esquecida – mulher Gilmore pairava incerto.
Emily Gilmore foi, desde o início, um dos pilares que sustentavam Gilmore Girls. Vista muitas vezes como antagonista, era fácil de esquecer que as três mulheres Gilmore eram igualmente importantes na representação de diferenças geracionais centrais à série. Enquanto Rory era a jovem privilegiada criada às duras penas por Lorelai, que precisou trabalhar por tudo que teve, Emily mostrava faces das duas: toda a riqueza que estava disponível para Rory (se ela assim quisesse) e todos os papéis de submissão como mulher e esposa que Lorelai rejeitou.
Para Emily essas duas realidades eram indissociáveis, sua riqueza era completamente intrínseca ao seu papel de esposa, que misturava tanto deveres quanto real afeto pelo seu marido. Vemos em seu personagem uma dinâmica que foi explorada ao longo de toda a série: amor e dinheiro. Já no primeiro episódio lá no ano 2000 Emily e Lorelai fizeram um acordo: os avós pagariam a escola de Rory e, em troca, filha e neta iriam participar de jantares semanais às sextas-feiras. Em troca de dinheiro, elas tentam estruturar um relacionamento familiar.
Ao longo das sete temporadas, a relação entre afeto e dinheiro reapareceu diversas vezes, mas nenhuma delas é tão relevante quanto no relacionamento de Emily e Lorelai. No último episódio da série original, com a partida de Rory, Emily oferece um empréstimo para filha construir um spa ou uma quadra de tênis e provavelmente se ofereceria para pagar qualquer outra extravagância que a tivesse mantido Lorelai “presa” a ela e a Richard. A surpresa e alívio no rosto de Emily quando Lorelai diz que elas podem discutir isso no jantar de sexta-feira – indicando que ela pretende manter uma relação com os pais independentemente do dinheiro – é um dos momentos de mais sutis e tocantes da série.
A relação entre afeto e recursos em torno de Emily, entretanto, não se resume a seu relacionamento com a filha. Para entender seu personagem é essencial lembrar que boa parte da sua vida girava em torno da sua identidade como esposa de alta sociedade. Quando jovem, ela estudara História na universidade, mas ter uma educação superior era apenas um requisito para ser a esposa de um homem do mesmo ou maior status social que ela – leia-se, um homem com dinheiro. Sua preocupação com o emprego de Richard, a gravidez de Lorelai, as festas para que era convidada faziam parte de uma preocupação com a classe e responsabilidade sociais das quais ela nunca imaginara a possibilidade de escapar. Isso é, até ver a própria filha, Lorelai, grávida aos dezesseis anos, Lorelai, camareira, Lorelai vivendo exatamente como queria, Lorelai bem sucedida, Lorelai feliz.
Por maior que tenha sido a mágoa de ver a filha sair de casa ainda adolescente, nada feriu Emily tanto quanto vê-la sobreviver sem a sua ajuda. Então, na sexta temporada, quando Rory larga Yale e se muda para a casa dos avós, por que não levá-la paras seus encontros das Filhas da Revolução Americana? Por que não ensiná-la a organizar festas? Por que não encorajar seu namoro com o filho de um magnata? Por que não mostrar que a elite a que ela pertencia e o dinheiro que eles tinham podiam, sim, dar a ela tudo que precisava?
Mas, é claro, não funciona bem assim e é Richard quem destrói suas ilusões, desesperado com as escolhas de Rory.
Festas beneficentes e chás da tarde? Frivolidades sem sentido. Ela tem mais pra fazer, mais pra ser. Eu não quero essa vida pra ela.
E por “essa vida”, ele quer dizer “a sua vida, Emily”.
Ao final das sete temporadas da série original, vimos poucas mudanças nas circunstâncias de Emily. Apesar dos avanços em seu relacionamento com Lorelai, ela permaneceu, como no início, uma mulher rica cheia de responsabilidades para com o marido e a alta sociedade. Nós a vimos questionar esse papel timidamente e percebemos seu orgulho, afinal, pela coragem e resiliência da filha de tomar as escolhas que ela não pudera, mas sua história e seu complexo interior foram relegados ao segundo plano.
Foi só agora, uma década depois do fim da série original e após a morte de Richard, que Emily teve a chance de rejeitar convenções inúteis e as “frivolidades” do mundo em que ela vivera com o marido. Usar seu primeiro jeans, deixar Hartford, ter seu primeiro emprego. É na história dela que Um Ano Para Recordar revela seus momentos mais belos em que a tristeza e a esperança se misturam em ternura. Emily encontra seu caminho na ruptura e, apesar do tema de ciclos e repetições de Rory e Lorelai, elas também crescem na quebra de antigos padrões.
Confesso que descobrir sobre a gravidez de Rory e as pistas de outros paralelos entre mãe e filha não me atingiram tanto quanto vê-las desafiarem a ideia que elas tinham delas mesmas. A ligação de Lorelai para falar para a mãe sua memória mais preciosa com Richard, a escolha de Rory de acabar uma relação amorosa que já se arrastava entre idas e vindas há mais de dez anos, sua decisão de mudar completamente sua carreira, ruptura. Revolução.
Algumas experiências são tão raras, subjetivas e difíceis de serem descritas em palavras que resta, a quem não as viveu, apenas o mistério de imaginá-las. O cinema é uma das ferramentas que dão vazão a essas imagens que, por serem criadas, já trazem em si o peso da impossibilidade da apreensão direta do real. No entanto, os filmes estão há tempos nos apresentando a experiência da alteridade, de nos distinguir ou nos encontrarmos no olhar do Outro, muitas vezes como um caminho de retorno a nós mesmos. Arriscando-me a ser piegas aqui, os filmes podem nos ajudar a por a vida em perspectiva.
O uso da câmera subjetiva para colocar um sujeito dentro da história, como um olhar que se transfere para o espectador, não é novo, mas My Beautiful Broken Brain surge nesses tempos em que essa subjetividade não serve mais somente ao cinema, e sim às narrativas do dia-a-dia. As câmeras estão, para a maioria das pessoas que têm o privilégio de obtê-las, ao alcance das mãos, em nossos celulares, tablets e computadores. A profusão de histórias cotidianas gravadas no modo “selfie” de nossos celulares muitas vezes nos fazem parecer personagens que caminham por aí não necessariamente desvendando o mundo, mas repetindo a nós mesmos e tornando o universo mais parecido com o que queremos. Bem o inverso da ideia de alteridade.
Como então filmar de maneira a investigar a si, proporcionando a compreensão, a mudança e a empatia sem se deixar levar por uma egocêntrica narrativa de nós mesmos? Essa é uma pergunta sincera e faz parte da minha trajetória como realizadora. O que queremos quando nos colocamos em uma obra?
O que queria Lotje Sodderland quando, dez dias após seu acidente vascular cerebral, resolveu gravar um vídeo em modo “selfie” contando que está viva? Como o filme trata de sugerir tanto quanto deixar em aberto essa questão, o certo é que nunca compreenderemos inteiramente a nova forma como o mundo se apresenta para Lotje, mas temos à mão belos pedaços. A coragem de se colocar em frente à câmera lutando contra suas limitações cognitivas revela certa intenção de chegar a alguém. Em certos momentos, a solidão retratada faz parecer que ela precisa chegar a alguém, qualquer coisa, a ela mesma, e imediatamente, sob o medo de se ver esfacelar, de esquecer de si.
Há momentos em que o filme peca pela abordagem “documentária” forçada, tomando depoimentos de outras pessoas que insistem em dizer que Lotje era produtiva, extrovertida e intelectual, antes do acidente vascular cerebral. A direção do filme demonstra pensar que era preciso deixar clara a diferença entre a moça de antes e a de agora, mas o fato é que o melhor da obra é como Lotje percorre o caminho de descobrir quem ela é de verdade, para além de toda a mudança. O que define quem ela é: o acidente, as novas visões, as limitações de linguagem? Ou a extrema resiliência com a qual ela busca se recuperar, se redefinir e ressignificar o mundo? O que significa a vontade de Lotge de filmar a si no meio da rua, descrevendo seu novo mundo? Para que procurar uma diretora que pudesse transformar as descrições em cores, distorções e sons que pudessem dar conta desse universo além das palavras?
Não à toa, Lotje busca referência no cinema, a grande biblioteca dos imaginários visíveis, e em David Lynch, o cineasta dos sonhos. Através do contato com ele o filme pôde vir ao mundo. É emocionante ver como ela parte das limitações de sua mente para o entendimento de uma mente sem limites, quando passa a se ver como parte de um sonho, de uma consciência cósmica, sem com isso diminuir a dor de sua condição. Seu acidente foi provocado por condições genéticas, interiores, que tornavam seu novo estado de vida apenas uma questão de tempo.
Logo se nota que para Lodje, o grande desafio está em aprender a libertar sua versão mais verdadeira, diante da fragilidade de si mesma, de suas memórias e do mundo em vive, tão despreparado para pessoas como ela. Nunca saberei o que ela sente, mas graças à sua busca pela permanência através do ato de filmar, posso assisti-la e colocar minha própria vida em perspectiva. Não estamos falando de egolatria. My Beautiful Broken Brain é sobre filmar para não esquecer.
A escritora Maya Angelou entrevistou a cantora Nina Simone em 1970, para a revista americana Redbook. Quando Nina contava sobre sua infância e adolescência, revelou: “Eu encontrei o amor na juventude, e eu o perdi. Eu perdi o amor e fundei uma carreira”. A frase seguinte de Maya abre o documentário “What Happened, Miss Simone?”: “Mas, senhorita Simone, você é idolatrada, até mesmo amada, por milhões agora”.
Nina rebateu: “Para mim, estou muito distante da compensação pelo que eu abri mão”. Essa frase parece se conectar à aparente ambição do filme lançado pelo Netflix: a de contar a história de vida de uma mulher que fora ferida mortalmente há tanto tempo que não poderia mais viver sem sangrar.
A diretora americana Liz Garbus acerta em sua tentativa de expor esse sangramento através da combinação de material de arquivo com áudios de entrevistas a Nina: ainda que o método não seja nada inovador e pouco ousado, é eficaz em confrontar o espectador a se perguntar se ele mesmo sairia de uma história de tanta violência e racismo sem alguma chaga. Serve também para gerar uma aproximação através da memória, do encontro com os Estados Unidos da América de ontem, que deixou cicatrizes nos dias de hoje (e se o racismo marca a história de uma nação, como não haveria de marcar uma mulher negra para sempre?). Não há como falar em Nina Simone sem atravessar a história dos EUA junto com ela.
Essa dinâmica é quebrada por entrevistas com os antigos amigos, com o ex-marido e com a filha, Lisa. Nesses momentos o documentário flerta com a ideia de que ela era tão genial quanto de difícil convivência, devido à personalidade forte e explosiva. É desconfortável ver a filha de Nina atuar como antagonista da própria mãe, ao colocar em cheque até mesmo a vida sexual da cantora e sua aptidão para a maternidade.
Os depoimentos de Lisa são pouco confrontados e muitas vezes assumem o lugar da narração das imagens (que por sua vez, confunde-se com a “verdade”). O mesmo ocorre com a entrevista de Andrew Stroud, ex-marido de Nina. É justo dar o poder da narração ao estuprador, espancador e abusador confesso da personagem do documentário? Em certo momento os objetivos do filme parecem envoltos em certa névoa de desconfiança: estamos assistindo para conhecer, admirar ou para julgar Nina? Alguns blogs manifestaram sua revolta com essa questão (neste post em inglês e neste em português). A revelação (tardia, no filme) de que a cantora sofria com transtorno bipolar surge como que para justificar seus rompantes de fúria, colocando sobre a doença o ônus de sua “loucura”. O que aconteceu a Nina Simone, afinal, é de fato o que a obra se propõe a desvendar, mas tem como principais marcas a ambiguidade e certa conveniência em suas respostas.
Pode-se supor que o filme pretende mesmo quebrar qualquer ideia de mito acerca de Nina Simone, e colocar o espectador de frente com o pior dela, para colocar em perspectiva o pior da humanidade – o cinema, de vez em quando, investe-se dessa missão. Nina foi abusada por ser mulher e dilacerada por ser mulher e negra, testemunha e vítima de uma época criminosa em que o povo negro tinha que matar ou morrer para ser ouvido nos Estados Unidos (será que essa época já acabou?). Nina passou da solidão à revolta, e no caminho aprendeu e absorveu a ação violenta. Quando precisou, usou dela para fazer valer o que acreditava. Em algum momento, o documentário sugere, parece ter sido dominada por essa violência.
Ou talvez a dominasse, e fizesse de seu sangue uma arma, como mais uma manifestação do recado de que o mundo ainda levaria muito para compensá-la.