O texto está cheio de spoilers. O que você está fazendo aqui perdendo tempo com leitura quando tem quatro episódios novos de Gilmore Girls pra assistir?
Esse texto chega com alguns meses de atraso. A verdade é que eu, como outros diversos fãs da celebrada série americana, assisti às seis horas de Gilmore Girls: Um Ano Para Recordar no dia de seu lançamento, desconsiderando os desejos da criadora da série, Amy Sherman-Paladino. Talvez ela estivesse certa, talvez assistir a um episódio por semana, com tempo para digerir mais lentamente os acontecimentos da vida das mulheres Gilmore teria tornado a experiência da “oitava” temporada mais completa e, no final das contas, mais satisfatória. Mas, para (mal) citar Barthes, o autor está morto e assistir aos quatro episódios cercada de amigas e consumindo uma quantidade de açúcar que deixaria Lorelai Gilmore orgulhosa me pareceu uma alternativa mais atraente.
Então, aqui estamos nós, quase dois meses depois daquele fatídico 25 de novembro. Por que tanto tempo? Bom, porque eu assisti às seis horas de Gilmore Gilrs: Um Ano Para Recordarcercada de amigas e consumindo uma quantidade de açúcar que deixaria Lorelai Gilmore orgulhosa. Não sei se há comprovação científica, mas minha experiência me permite dizer: existe ressaca de açúcar. Ou, talvez, de muitas horas de uma série que havia terminado há quase dez anos e que fez parte da sua infância e adolescência e que de repente voltou te deixando sem saber o que sentir ou pensar.
Minha confusão mental durou tempo suficiente para que eu lembrasse que eu levo essa série pro lado pessoal. Isso quase me impediu de escrever, mas então pensei: “e você, leitor, também não leva?” Imagino que mesmo que sua vida seja completamente diferente e não se relacione em nada com a vida das mulheres Gilmore, caso você tenha usado do seu tempo e atenção pra acompanhar às oito temporadas – oito anos – para saber o que seria de Lorelai, Rory, Emily, Sookie, Luke e tantos outros, isso deve significar que você também tem algum investimento emocional nessa série.
Como eu, imagino que muitos fãs tenham se sentido igualmente confusos e até mesmo um pouco frustrados com o que foi feito da série que tanto amávamos. Ao sentar e escrever consegui com mais clareza delinear o que me incomodou e o que fez sentido nessa nova temporada. Não procuro defender ou atacar a série, mas refletir sobre os erros e acertos estruturais de Um Ano Para Recordar, levando em consideração a série original e também o contexto da televisão/streaming que estamos vivendo.
Pois bem, deixamos Rory, ou melhor dizendo, Rory nos deixou em 2007, partindo para cobrir a campanha do então senador Barack Obama pela presidência dos Estados Unidos e para se tornar a grande jornalista que ela sempre sonhara ser. Lorelai havia encontrado sucesso profissional com sua pousada e, esperávamos, emocional ao lado de Luke.
Se o título da nova temporada, “A Year in the Life” no original – cuja tradução literal seria “um ano na vida” – nos dava a alguma pista, era de que o tempo seria um tema central na série. Mais do que a passagem do tempo em si, a ideia evocada era a de ciclos e repetições, como ficou claro com a notícia que os quatro episódios seriam marcados pelas estações do ano. Não é tão surpreendente, então, que nove anos depois, reencontremos as personagens não tão distantes de onde nos despedimos delas.
Rory continua a viajar e escrever sem moradia fixa, Lorelai tem sua pousada e Luke. A estagnação das personagens, a princípio, não fica tão aparente, escondida por detrás de uma mudança de tom. Um dos grandes desafios de transportar uma série do início dos anos 2000 pra 2016 é que tanto as séries quanto o público não são mais os mesmos. O streaming e a abundância de conteúdos criaram espectadores altamente exigentes e educados em linguagem audiovisual e as consequências disso são diversas. Temos cada vez mais séries autoconscientes que se tornam cúmplices do espectador, utilizando as tropes conhecidas para subvertê-las. Em Jane The Virgin, por exemplo, as novelas latinas são tanto parodiadas quanto homenageadas, em Scream, vemos o arquétipo da Final Girl ser discutido abertamente pelos personagens.
Nem todas as séries que têm surgido nos últimos anos, entretanto, são autoconscientes, algumas delas se valem de um grau de choque e violência crescente e subversão das expecativas para surpreender seus espectadores. A popularidade de séries como Black Mirror, Game of Thrones e House of Cards nos revela um interesse particular pelo pessimismo e pelo obscuro. Nem mesmo as séries de comédia escapam a essa tendência, e assistimos a Orange Is The New Black e The Unbreakable Kimmy Schmidt fazerem uma comédia ácida, cortante e que por vezes envereda mais pelos caminhos do drama do que do humor.
Como, então, trazer Gilmore Girls pra atualidade sem perder o ar charmoso e leve da série original? De repente, Stars Hollow, uma cidade pitoresca cheia de moradores excêntricos que se reúnem para organizar eventos curiosos, antes tão amada pelas protagonistas, é chamada de “uma cidade construída dentro de um globo de neve gigante” por Lorelai e a partir daí já temos uma ideia de que as coisas não são mais as mesmas. Se antes Lorelai se deleitava com as esquisitices da cidade, como o bizarro Museu da História de Stars Hollow, agora ela fica ofendida por um musical que, por pior que seja, é exatamente o tipo de coisa que os moradores de Stars Hollow sempre fizeram.
Essa mudança de tom da série atinge com mais força a personagem de Rory Gilmore, a menina dos olhos de Stars Hollow. Rory Gilmore dos anos 2000 era muitas coisas e nem todas elas boas. Ela era inteligente, ambiciosa, ávida, mas também extremamente privilegiada e egocêntrica. Rory Gilmore dos anos 2000 traiu um namorado, mentiu para amigas e teve um caso com homem casado, mas Rory Gilmore dos anos 2000 percebia suas maiores falhas, se arrependia de suas escolhas, procurava redenção.
Em 2017, Rory Gilmore mudou. Mudou por dentro, pois ela ainda faz as mesmas coisas. Ela continua a trair um namorado e ter um caso com um homem comprometido, mas a diferença é que não há mais autoquestionamento. O namorado traído é uma piada recorrente, a noiva de Logan não tem rosto, é apenas uma inconveniência para Rory. Vemos o que havia de romântico e esperançoso na personagem se transformar em um cinismo apático. É triste perceber que o egocentrismo de Rory, antes contrabalanceado por um forte senso de certo e errado, se torna sua maior característica.
Entretanto, isso não é algo ruim. Se antes, Rory era defendida e mimada apesar de todos os erros que cometia, ela agora não pode mais se esconder por detrás de um jeitinho inocente. Aos 32 anos de idade, Rory tem que encarar muito bem a pessoa que ela se tornou e perceber que todos os seus privilégios não garantiriam sucesso. É um tapa na cara, mas também um alívio: mesmo Rory Gilmore – oradora da turma, formada em Yale, amada por todos – pode não ter tanta certeza do que diabos está acontecendo na vida dela.
A falha no arco narrativo de Rory não está no fato de ela ter que lidar com fracassos. Os fracassos de Rory são frutos da sua crença – alimentada por todos ao seu redor – que ela simplesmente tinha direito ao sucesso, afinal, ela sempre fora tão inteligente, esforçada e especial. Aqui, poderíamos fazer um parênteses sobre millenials e a geração que foi criada para acreditar que poderia ser o que quisesse, mas isso já foi amplamente discutido antes dentro e fora do contexto de Gilmore Girls.
Como vimos anteriormente, o grande mote dessa temporada são ciclos. Acredito que essa escolha não tenha sido tomada apenas por conta das tão esperadas quatro últimas palavras, indicando que a vida é essa coisa engraçada que se repete, mas também para justificar o fato de as personagens principais terem parado no tempo. Rory não ter avançado muito na carreira não é um problema, mas ela continuar a cometer os mesmos erros de seus vinte anos, coisas que já haviam sido resolvidas em temporadas anteriores, soa como retrocesso. O mesmo acontece com Lorelai.
Apesar de terem passado nove anos juntos, Lorelai e Luke continuam a ter problemas devido a aparente falta de comprometimento de Luke. Eles nem ao menos haviam conversado sobre filhos em uma década de relacionamento, algo difícil de acreditar. Mesmo sem considerar o fato de os dois estarem juntos há quase uma década, como não lembrar de Luke, na quinta temporada, pronto para comprar uma casa enorme para os dois encherem de crianças? Algo não está certo. O que fez o relacionamento deles permanecer estático? A ideia de ciclos, por mais atraente que seja, não é suficiente para justificar tamanha estagnação. Acredito que a resposta não está na narrativa da série em si, mas nos trâmites de produção e criação que vão além dela.
Amy Sherman-Palladino, devemos lembrar, não escreveu a sétima temporada e não foi capaz de dar o fim desejado para sua série em 2007. Em 2016, ela teve enfim a chance de concluir sua obra, mas muitas das questões que ela decidiu tratar já haviam sido resolvidas pelos roteiristas da sétima temporada, dando essa impressão de que Rory está passando por uma fase de inconsequência que faria muito mais sentido quando ela tinha seus 23 anos e deixando Lorelai estagnada por tantos anos.
Não é de se admirar, então, que o arco narrativo mais bem construído de Um Ano Para Recordar tenha sido fruto de uma mudança que a série não pôde controlar: com a morte do ator Edward Herrman, que interpretava Richard Gilmore, o destino da terceira – frequentemente esquecida – mulher Gilmore pairava incerto.
Emily Gilmore foi, desde o início, um dos pilares que sustentavam Gilmore Girls. Vista muitas vezes como antagonista, era fácil de esquecer que as três mulheres Gilmore eram igualmente importantes na representação de diferenças geracionais centrais à série. Enquanto Rory era a jovem privilegiada criada às duras penas por Lorelai, que precisou trabalhar por tudo que teve, Emily mostrava faces das duas: toda a riqueza que estava disponível para Rory (se ela assim quisesse) e todos os papéis de submissão como mulher e esposa que Lorelai rejeitou.
Para Emily essas duas realidades eram indissociáveis, sua riqueza era completamente intrínseca ao seu papel de esposa, que misturava tanto deveres quanto real afeto pelo seu marido. Vemos em seu personagem uma dinâmica que foi explorada ao longo de toda a série: amor e dinheiro. Já no primeiro episódio lá no ano 2000 Emily e Lorelai fizeram um acordo: os avós pagariam a escola de Rory e, em troca, filha e neta iriam participar de jantares semanais às sextas-feiras. Em troca de dinheiro, elas tentam estruturar um relacionamento familiar.
Ao longo das sete temporadas, a relação entre afeto e dinheiro reapareceu diversas vezes, mas nenhuma delas é tão relevante quanto no relacionamento de Emily e Lorelai. No último episódio da série original, com a partida de Rory, Emily oferece um empréstimo para filha construir um spa ou uma quadra de tênis e provavelmente se ofereceria para pagar qualquer outra extravagância que a tivesse mantido Lorelai “presa” a ela e a Richard. A surpresa e alívio no rosto de Emily quando Lorelai diz que elas podem discutir isso no jantar de sexta-feira – indicando que ela pretende manter uma relação com os pais independentemente do dinheiro – é um dos momentos de mais sutis e tocantes da série.
A relação entre afeto e recursos em torno de Emily, entretanto, não se resume a seu relacionamento com a filha. Para entender seu personagem é essencial lembrar que boa parte da sua vida girava em torno da sua identidade como esposa de alta sociedade. Quando jovem, ela estudara História na universidade, mas ter uma educação superior era apenas um requisito para ser a esposa de um homem do mesmo ou maior status social que ela – leia-se, um homem com dinheiro. Sua preocupação com o emprego de Richard, a gravidez de Lorelai, as festas para que era convidada faziam parte de uma preocupação com a classe e responsabilidade sociais das quais ela nunca imaginara a possibilidade de escapar. Isso é, até ver a própria filha, Lorelai, grávida aos dezesseis anos, Lorelai, camareira, Lorelai vivendo exatamente como queria, Lorelai bem sucedida, Lorelai feliz.
Por maior que tenha sido a mágoa de ver a filha sair de casa ainda adolescente, nada feriu Emily tanto quanto vê-la sobreviver sem a sua ajuda. Então, na sexta temporada, quando Rory larga Yale e se muda para a casa dos avós, por que não levá-la paras seus encontros das Filhas da Revolução Americana? Por que não ensiná-la a organizar festas? Por que não encorajar seu namoro com o filho de um magnata? Por que não mostrar que a elite a que ela pertencia e o dinheiro que eles tinham podiam, sim, dar a ela tudo que precisava?
Mas, é claro, não funciona bem assim e é Richard quem destrói suas ilusões, desesperado com as escolhas de Rory.
Festas beneficentes e chás da tarde? Frivolidades sem sentido. Ela tem mais pra fazer, mais pra ser. Eu não quero essa vida pra ela.
E por “essa vida”, ele quer dizer “a sua vida, Emily”.
Ao final das sete temporadas da série original, vimos poucas mudanças nas circunstâncias de Emily. Apesar dos avanços em seu relacionamento com Lorelai, ela permaneceu, como no início, uma mulher rica cheia de responsabilidades para com o marido e a alta sociedade. Nós a vimos questionar esse papel timidamente e percebemos seu orgulho, afinal, pela coragem e resiliência da filha de tomar as escolhas que ela não pudera, mas sua história e seu complexo interior foram relegados ao segundo plano.
Foi só agora, uma década depois do fim da série original e após a morte de Richard, que Emily teve a chance de rejeitar convenções inúteis e as “frivolidades” do mundo em que ela vivera com o marido. Usar seu primeiro jeans, deixar Hartford, ter seu primeiro emprego. É na história dela que Um Ano Para Recordar revela seus momentos mais belos em que a tristeza e a esperança se misturam em ternura. Emily encontra seu caminho na ruptura e, apesar do tema de ciclos e repetições de Rory e Lorelai, elas também crescem na quebra de antigos padrões.
Confesso que descobrir sobre a gravidez de Rory e as pistas de outros paralelos entre mãe e filha não me atingiram tanto quanto vê-las desafiarem a ideia que elas tinham delas mesmas. A ligação de Lorelai para falar para a mãe sua memória mais preciosa com Richard, a escolha de Rory de acabar uma relação amorosa que já se arrastava entre idas e vindas há mais de dez anos, sua decisão de mudar completamente sua carreira, ruptura. Revolução.
“Quero, quero muito, quero agora, sem demora.”
Enquanto acompanhamos Jéssica pedalando pela favela onde vive, no início de “Sonhos Roubados” (2009), a música de Maria Gadú denuncia previamente o que passa pela cabeça e pelos corpos das três jovens protagonistas: desejos e, em suma, sonhos, tão grandes e intensos quanto distantes da realização.
Lançado no mesmo ano que o badalado “As Melhores Coisas do Mundo” (2009), de Laís Bodansky, o longa de Sandra Werneck escolheu outra face da juventude para retratar. Diferente dos jovens ricos do primeiro filme, que se desdobram sobre a sexualidade com leveza, as meninas de “Sonhos Roubados” já conhecem o sexo desde cedo e, na falta de outros espaços de empoderamento, usam a sensualidade e a sexualidade para se afirmar e se sustentar.
A pobreza, a fragilidade da estrutura familiar e a falta de perspectivas atingem Jéssica (Nanda Costa), Sabrina (Kika Farias) e Daiane (Amanda Diniz) de diferentes maneiras, todas elas perpassando o desconforto em não ter autonomia, ou poder de decisão real sobre suas vidas. Cada uma delas tenta reagir como pode: Jéssica tenta ser durona e obter poder através de sua sensualidade, mas não tem um bom plano para salvar o avô ou manter a filha; Sabrina, no início a que mais acredita na escola, se vê sabotada pela falta de aulas e logo cai no conto do príncipe encantado, indo morar com um traficante de drogas; e Daiane, a mais nova, faz de tudo para tornar reais seus rituais de passagem para a vida adulta, negando a própria infância, que ela associa com a fragilidade.
Filmado de maneira dinâmica e sem sentimentalismos por Walter Carvalho, o filme acerta nas cenas em que deixa que as personagens falem um pouco sobre como se sentem naquele universo caótico, de maneira quase documental, como quando Jéssica vai ao cemitério ver o túmulo da mãe. É uma pena que tais cenas aconteçam com pouca frequência no filme, dando lugar a outros momentos frágeis dramaticamente, em que frases de efeito e lições de moral preenchem a tela, como quando o avô de Jéssica reflete: “a gente passa pela vida que nem fantasma”. A frase soa como uma ideia exterior ao filme, plantada de fora para dentro, que empurra uma definição fechada sobre o que é a história.
As personagens, em geral, são bem construídas, graças ao bom trabalho do trio principal e de Marieta Severo, como Dolores, a dona do salão de beleza que acolhe Daiane. O longo período em que a narrativa se desenvolve, de mais de um ano, passa pelos rituais de passagem da adolescência para o mundo adulto que são comuns em filmes sobre juventude. Aqui, no entanto, o amadurecimento não chega com a entrada na universidade, com o início de um namoro ou uma oportunidade de intercâmbio, como no simpático filme “Hoje eu quero voltar sozinho” (2014).
Diferente dos jovens mais privilegiados do “asfalto”, as meninas não tem escola qualidade (quando não faltam professores, há greve), não tem dinheiro e não foram treinadas ou educadas para um trabalho que as tire de dentro da favela. São ignorantes sobre suas opções e acabam escolhendo o que mais parece promissor naquele mundo. Ser objeto do desejo de homens poderosos, poder comprar roupas bonitas, ter um celular, pintar os cabelos e frequentar o baile: eis as formas de empoderamento disponíveis para as jovens.
A rua e seus perigos surgem, na falta da escola e de um lar estruturado, como ambiente de construção de identidade. Nesse aspecto, o filme dialoga com “Garotas” (2015), de Céline Sciamma, ainda que não tenha o mesmo sucesso deste em mostrar como meninas podem se tornar a referência máxima umas das outras, na falta de exemplos de mulheres que possam se destacar por quaisquer meios que não sejam os “das ruas”: formação de gangues, prostituição e venda de drogas e armas.
Daiane é a única que conhece uma mulher adulta em que pode se inspirar (já que sua tia não faz mais que exercer o covarde papel de acobertar o marido pedófilo) e a quem pode pedir ajuda, e não à toa, é quem consegue realmente mudar a situação de sua vida e vislumbrar um novo futuro, como cabeleireira. Jéssica alcança certo amadurecimento quando aceita a realidade: não quer ter o mesmo destino de sua mãe, e se ajusta ao emprego que não desejava, para ter a filha de volta. Sabrina, no entanto, se deixa levar pelo encanto do príncipe encantado e pela sexualidade juvenil nas alturas, que a diretora acerta ao tratar sem julgamentos. No entanto, engravida e enfrenta o que muitas jovens conhecem muito bem: poucos príncipes resistem a uma prova de responsabilidade, e as mães brasileiras sabem bem como é criar um filho sem pai.
Para não deixar passar batido, já que mencionei o filme “Garotas”, surpreendeu-me o fato de que até mesmo um filme com essa temática não tenha, entre três protagonistas, nenhuma personagem assumidamente negra. Digo “assumidamente” pois é clara a tentativa de incorporar traços afro às personagens Daiane e principalmente Jéssica, através de pesado bronzeamento e, no caso de Nanda Costa, uso de aplique de tranças conhecidas como rastafári. A personagem Sabrina incorpora a origem da atriz Kika Farias, com seu sotaque pernambucano, o que não compensa, a meu ver, a não escolha de uma atriz negra em um filme com histórias próximas ao cotidiano das meninas negras nas favelas brasileiras (e se não soubessem disso, não teriam se importado tanto em alterar a aparência das atrizes). Seria medo de colocar uma menina negra e ser justamente taxado de ser mais um filme com uma negra como favelada? Ou seria mais um caso de “as atrizes foram escolhidas pelo talento”, resposta tão utilizada da boca pra fora?
Como disse Tânia Montoro (1): “Interessa-me observar como o(s) significado(s) do filme não se reduz(em) aos elementos que compõem sua linguagem, uma vez que os filmes estão inseridos em outras práticas culturais e revelam experiências em perpassam a cotidianidade. Os filmes, dessa forma, não são eventos culturais autônomos, encontram-se inseridos em outras práticas sociais que conotam um leque de sentidos.” A partir desse entendimento é que defendo que cabe fazer este questionamento a respeito de “Sonhos Roubados”. Não cabe dizer que “é só ficção” quando o filme tem uma proposta clara de retratar uma suposta realidade das jovens brasileiras (usando em algumas cenas linguagem de clara inspiração documental). Não questiono o trabalho das atrizes do filme, certamente bom, na medida do texto que tinham à mão. Mas me pergunto, hoje e sempre: não existem boas atrizes negras no cinema nacional, que poderiam dar cara, com igual ou maior fidelidade, às angústias juvenis presentes na história? Como um filme que conta uma história na favela só tem um ator negro (MV Bill) em seu elenco de destaque, e vários atores brancos? Ficam minhas perguntas.
“Sonhos Roubados” (2009), com direção de Sandra Werneck.
Com Nanda Costa, Amanda Diniz, Kika Farias, Marieta Severo, Daniel Dantas e MV Bill.
Disponível no Netflix.
(1) Tânia Montoro:”A construção do imaginário feminino no cinema espanhol contemporâneo”. In: De olho na imagem, de Tânia Montoro e Ricardo Caldas. Página 17. 2006.