Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

EL LUGAR MÁS PEQUEÑO: DESCOLONIZAÇÃO E FABULAÇÃO

Diante da grande visibilidade e dos notórios holofotes dedicados aos diretores mexicanos em destaque nos últimos eventos mainstream de cinema internacionais, como Guillermo Del Toro (vencedor do Oscar de Melhor filme em 2018 com A Forma da Água) e Alfonso Cuarón (diretor de filmes como Gravidade e E Sua Mãe Também), muito pouco ou quase nada acessamos das realizadoras mexicanas.

Num exercício de expandir o olhar sobre cinema latino-americano produzido por mulheres, essa crítica se debruça no trabalho da Tatiana Huezo Sánchez, uma diretora de cinema salvadorenha-mexicana. El Lugar Más Pequeño (2011) é o seu primeiro longa-metragem, o filme circulou em diversos festivais internacionais e foi premiado como melhor documentário no festival suíço Visions du Réel, além de ter recebido o Premio FIPRESCI, Mención Especial no Festival Internacional de Cine de Mar del Plata (2011) e diversas outras premiações ao redor do mundo.


Há camadas mais profundas de verdade no cinema, e há uma coisa como a verdade poética, extática, que é misteriosa e elusiva, e só pode ser alcançada através da fabulação, imaginação e estilização”  Werner Herzog

É legítima uma proposta de diálogo de apelo lírico com a dor dos sobreviventes de estados de exceção?

Como encontrar poesia ao dar forma a memórias do caos? O exercício poético ao delinear essas narrativas é coerente? Ou seria preciso considerar que ele poderia atrair consigo um viés pacificizante?

El Lugar Más Pequeño (2011), documentário dirigido por Tatiana Huezo, trata da trágica história de um povoado de El Salvador que teve o curso da trajetória de suas vidas vilipendiado pela guerra civil e chegou muito perto de desaparecer do mapa. Após uma breve contextualização inicial – letterings em uma tela preta destrincham os detalhes desse capítulo de dor que se estendeu por 12 anos para essas famílias – o restante da obra costura uma fabulação de renascimento pelo olhar dos moradores daquele local. Para além do apego ao trágico, a diretora desenha em seu roteiro a reinvenção de um lugar, de um lar.

Nos minutos iniciais do filme temos contato com imagens dos personagens, cujas falas guiarão o documentário, em segundos de completo silêncio, numa espécie de luto diante do texto inicial. Os olhares são atravessados pelas fissuras deste passado, mas a sequência não transmite uma morbidez, as feições são altivas, estão reinventadas, reimaginadas.

A partir de um relato em off de uma das sobreviventes do povoado começamos a entrar em contato com o processo de retomada das terras por parte dos antigos moradores que foram obrigados a abandonar suas casas e se esconder para sobreviver. As palavras descrevem o caos que encontraram na volta e o desolamento, mas também são repletas de força. As imagens que compõem a sequência são permeadas de planos gerais da geografia e da vida natural que permaneceu ali na ausência dos moradores: imagens da mata verde, viva e pulsante, e sons de animais que ressoam como um jazz improvisado, uma sinfonia errante e contínua. Nesse momento, a diretora introduz a vida natural da cidade como um personagem, recurso utilizado em todo o filme criando atmosferas distintas. A floresta enquanto abrigo, esconderijo; os animais enquanto seres que acolhem e se comovem diante da volta dos habitantes (como relata uma personagem ao citar os gritos dos sapos com a chegada deles), são elementos cruciais para construção narrativa do documentário.

Uma das cenas mais impactantes do filme mostra uma das personagens comprando ovos frescos. A câmera acompanha aquela mulher de forma misteriosa nessa busca incessante. A pergunta surge de forma inevitável: onde um filme sobre a guerra civil de El Salvador quer chegar com essa peregrinação? É quando percebemos que na verdade a mulher quer chocar os ovos.  E acompanhamos o esforço coletivo entre ela e uma galinha do seu quintal para fazê-lo. É como se o ato resumisse a resignação de todo um povo, em resistir, permanecer, querer fazer brotar novamente a vida naquele lugar.

O trabalho minucioso de Tatiana parece querer tornar a câmera uma habitante daquele lugar. Mas em vez de uma passividade a câmera busca metáforas, construir junto aos personagens e à própria natureza uma magia diante dos relatos. A neblina que corta a floresta, os sapos que parecem se comunicar com aquelas pessoas, a senhora deitada na calçada de maneira relaxada e pacífica (naquele lugar outrora violentado e invadido) parecem nos convidar a adentrar um mundo particular, mas sem exotismos, ou um falso compadecimento com a dor, no filme não há o melodrama da tragédia, ele inspira um genuíno fascínio e admiração pelos que permanecem ali.

As belas entrevistas são fruto de um cuidado em realizar estas conversas distante do restante da equipe. Os profissionais de som, após montar os equipamentos, distanciavam-se, e a maioria das entrevistas aconteceu assim, apenas Tatiana, o entrevistado e os microfones, sem câmeras. Graças a esse exercício temos o prazer de conhecer os personagens em profundidade que falam da dor, da depressão e choram, lembram da luta armada, de como eram apenas crianças pegando em armas. Sentimos na voz desses adultos o peso da infância roubada, mas também nos encantamos com eles, ao ouvir sobre o amor pela literatura, e admiramos os pés fincados na esperança do presente.

O nome do filme remete à caverna escondida na floresta na qual diversas famílias do povoado habitaram refugiando-se dos guerrilheiros. Como relatam, um lugar muito estreito onde apenas uma pessoa conseguia passar por vez. As memórias da caverna, da completa escuridão e do terror misturam-se com planos gerais dessa floresta gigante, acolhedora. Ela exprime a sensação de proteção oferecida a eles pela própria geografia, visto que a extrema familiaridades com os caminhos do lugar os protegerem dos invasores. Tal prática de recorrer à extrema familiaridade com o território para se proteger, inclusive, é simbólica e antiga pois remete à mesma estratégia adotada por diversos povos originários para sobreviverem.

El Lugar Más Pequeño nos traz um olhar descolonizado sobre mais um dos capítulos da história de opressão latino-americana (parcamente acessada no cinema) sob o ponto de vista de uma diretora mexicana de origem salvadorenha e dos diversos personagens convidados a partilharem suas subjetividades e memórias. Respondendo às questões iniciais, acredito que no documentário de Tatiana a poesia, a fabulação e a estilização de que fala Herzog se apresentam como arma de luta sim, impactam exatamente pela extrema inspiração que reverberam. Inspiram por uma necessidade de constante reinvenção para fazer sobreviver. Sobreviver em liberdade: corpos e espíritos (como a guerrilheira que deu a vida pela luta).

O filme não trata de causas, ou de forças políticas envolvidas na guerra. Não existe essa pretensão, mas em uma breve pesquisa identifico os antigos personagens recorrentes na história latino-americana: a extrema direita, a intervenção americana que intensifica as proporções da catástrofe, um golpe de estado e resistências de esquerda que não veem outra alternativa senão pegar em armas. A opção da obra de tratar unicamente de resiliência parece me dizer muito sobre o foco que deve-se dar às energias contemporâneas que buscam por transformação. Não é preciso perder tempo identificando os algozes, estes são antigos conhecidos.


Em 2016 Tatiana Huezo lançou o filme Tempestad que trata da história de uma mulher que sofre as consequências do tráfico de no México (o filme recebeu o prêmio Fénix de Melhor documentário) e foi indicado pelo México para categoria de Oscar estrangeiro em 2017.

MULHERES SILENCIOSAS: BRILHO DE UMA PAIXÃO

Ainda, ouvir ainda a sua terna respiração,

e assim viver sempre – ou decair à morte.

  • John Keats

Foi apenas em 1878, mais de meio século depois da morte de John Keats, que o público descobriu enfim quem era a misteriosa noiva do poeta e a inspiração para seu famoso poema Bright Star. Frances Lindon casou-se, teve três filhos e morreu aos 65 anos, mas, em 1819 ela ainda era Fanny Brawne ou apenas “my dearest girl” nas cartas de Keats.

Reveladas anos após as mortes de Frances e de seu marido Louis Lindon, as cartas do poeta são consideradas algumas das mais belas escritas na língua inglesa, mas na época em que foram descobertas causaram grande indignação. Keats mostrava faces da sua personalidade que o público não estava preparado para conhecer, sua vulnerabilidade e ciúmes tornavam o idolatrado poeta em um ser humano comum. Essa indignação logo tomou a forma de ódio pelo objeto de afeto de Keats, Fanny Brawne, vista como indigna do seu amor.

As cartas de Brawne para Keats nunca foram encontradas e sabia-se muito pouco sobre como ela correspondia àquela paixão desenfreada, a ideia de que ela era paqueradora e brincava com os sentimentos de Keats foi muito disseminada. É um tanto quanto irônico perceber que as musas dos poetas, aos olhos do público, só possuem valor dentro do poema, no sentido figurado. Uma mulher real, amada profundamente por aquele que é tido como ídolo, nunca seria capaz de chegar aos pés da mulher idealizada do poema. Pois bem. Fanny era real, possuía falhas e nem ao menos se interessava muito por poesia. Talvez por isso Keats tenha se apaixonado por ela, ela amava o John Keats homem, não o poeta, e foi com ele que ela ficou apesar da falta de dinheiro do rapaz – Keats só se tornou célebre após sua morte – e da doença que assolou os últimos anos da sua vida.

A terrível opinião pública sobre Fanny só começou a se alterar décadas depois da descoberta das cartas, com a publicação das cartas da própria Fanny para a irmã de Keats, que demonstravam a firmeza e constância de seu afeto (Estrela brilhante! Queria eu ser constante como sois). Ela passou muitos anos de luto depois da morte do noivo e guardou as cartas dele consigo até a sua morte. Não é de se admirar, então, que Jane Campion, que até então fizera filmes de cunho abertamente feminista, escolhesse fazer um filme que, apesar de aparentar ser um simples romance de época, fizesse parte da tendência de restaurar a reputação de Fanny Brawne perante a História.

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Minha querida Menina,

Neste momento eu me posicionei para escrever alguns belos versos. Não posso prosseguir com nenhum grau de contentamento. Preciso escrever para ti uma ou duas linhas e ver se isso vai me auxiliar a tirar-te da minha Mente mesmo que por pouco tempo. Pela minha Alma, não consigo pensar em nada além de ti – O tempo em que eu era capaz de aconselhar-te e advertir-te contra a desalentadora manhã da minha Vida passou – Meu amor me tornou egoísta. Eu não posso existir sem você – Eu me desleixo de tudo menos de quando te verei de novo – minha Vida parece parar aí – eu não vejo além. Você me absorveu. Tenho a sensação no presente momento como se eu dissolvesse – Eu estaria extraordinariamente infeliz sem a esperança de ver-te em breve. Eu temeria estar distante de ti. Minha doce Fanny, teu coração nunca mudará? Meu amor, mudará? Não há limite para o meu amor – O teu bilhete acaba de chegar – Eu nunca posso estar ‘mais feliz’ longe de ti. É mais rico que um navio de pérolas. Não me ameace nem de brincadeira. Eu já me assombrei que Homens pudessem morrer Mártires pela religião – Estremeci em razão disso. Eu não estremeço mais. Eu poderia ser um mártir pela minha Religião. O Amor é minha religião. Eu poderia morrer por ele. Eu poderia morrer por ti. Meu Credo é o Amor e tu és o único dogma. Tu me arrebataste por um Poder ao qual não posso resistir; e todavia posso resisti-lo até ver-te; e desde quando te vi tenho me empenhado em “argumentar contra os argumentos do meu Amor”. Não posso mais fazê-lo – a dor seria desmedida. Meu Amor é egoísta. Não posso respirar sem ti.

Teu para sempre

John Keats

Em Brilho de Uma Paixão – Bright Star, no original – Campion conta a história do turbulento romance de John Keats e Fanny Brawne, desde seu primeiro contato até a morte de Keats de tuberculose aos 25 anos. Ou talvez fosse mais preciso dizer: desde quando Fanny conheceu John até seu luto após a morte do noivo.

Sabemos da morte de Keats, mas vemos apenas a reação de Fanny ao fato, ilustrando a intenção de Campion: é a hora de conhecer o lado de Fanny da história. Muito foi escrito sobre Keats, sua vida, trabalho e doença esmiuçados à exaustão. Mas o que sabemos sobre a mulher que o inspirou a escrever? O que sabemos sobre sua espera? Sua vida doméstica, seus desejos e planos para o futuro? Nunca saberemos ao certo as respostas para todas essas perguntas. Campion nos conta o pouco que se sabe e preenche as lacunas com lirismo e beleza dignos dos Românticos.

Passamos os três anos entre 1818 e 1821 em Hampstead, onde Fanny mora com sua mãe e dois irmãos mais novos e onde conhece Keats. Assim como o jovem poeta, Fanny também procura escape criativo e o encontra na costura. O filme é permeado pela vida cotidiana dos Brawnes, as aulas de dança dos três irmãos, bailes, caminhadas pela floresta; a beleza do dia-a-dia e da natureza é capturada com pouco movimento, por vezes, estática, lembrando pinturas bucólicas.

O mundo exterior, tanto a calmaria quanto as tempestades, complementam os sentimentos despertados pelos amantes. O início tímido do relacionamento é acompanhado por muitas cenas interiores, uma luz acinzentada. Quando somos confrontados com sentimentos violentos pela primeira vez, Keats encontra-se encharcado no meio de uma tempestade, desolado pelo seus ciúmes e acompanhado por trovões. Ao longo de todo filme o interior e o exterior brigam por dominação, as janelas são portais de contemplação para o mundo de fora e conforme o romance floresce, somos cada vez mais mais levados pela natureza. Em determinado momento, Fanny decide começar uma fazenda de borboletas dentro do próprio quarto em razão de uma carta de John.

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“Eu quase desejo que fôssemos borboletas e vivêssemos apenas três dias de verão. Três dias como estes eu poderia preencher com mais deleite do que cinquenta anos comuns poderiam conter.”

A descoberta da doença de Keats marca a vitória dos espaços interiores. Ben Whishaw interpreta Keats com tamanha melancolia e vulnerabilidade que por vezes eu me pergunto se ele não deveria desistir de qualquer outro papel que não seja de um poeta romântico que morre antes dos 30 anos de idade. Sua atuação é marcante o suficiente para que o protagonismo de Fanny, interpretada por Abbie Cornish, seja equilibrado. Contudo, ao final, Whishaw não pôde dizer as últimas palavras do poeta (Não respire em mim, ela vem como gelo), proferidas em Roma e longe de todos seus amigos e de sua noiva. É Fanny quem vemos, andando pelo bosque com lágrimas nos olhos recitando o poema que ele escrevera para ela.

Sabemos muito pouco sobre Fanny Brawne, e sua história merece ser contada. Precisamos contar as histórias das mulheres silenciosas, que já não podem se defender. Das musas, das amantes, das mães, que sempre apareceram na História em função de algum grande homem cuja vida parecia mais importante. Precisamos de mais Fanny Brawnes restituídas ao seu lugar de direito. Ainda sabemos pouco sobre ela, mas já é um começo. Sabemos que ela amava costurar, que tinha dois irmãos mais novos, que gostava de festas e que ela amou profundamente um certo John Keats que, por acaso, veio a ser um dos grandes poetas ingleses.