Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

POR UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: A CIDADE ONDE ENVELHEÇO

Portugal em crise econômica. Teresa chega à casa de Francisca para uma temporada em Belo Horizonte. O que sabemos de seu passado está contido em apenas uma foto, em um único plano. A cidade onde envelheço, de Marília Rocha,  ganhador na categoria melhor filme no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é um filme sobre o presente.

“A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa.

Os conflitos culturais aparecem nas falas de Francisca que se incomoda com a audácia brasileira em pedir cigarros o tempo todo, ou mesmo com a falta de senso estético em relação aos azulejos do banheiro: cada um em um tom diferente de azul.  Nessas minúcias, encontramos o que seria o imaginário de cada país. Mas de novo, o singular se coloca enquanto paradoxal: Teresa não vê problema na aleatoriedade dos azulejos, tampouco em chegar de madrugada fazendo barulho na casa da sua anfitriã.

As relações Brasil-Portugal são pano de fundo para uma história que, na verdade, trata-se de afeto, de amizade, de amor. Entretanto, as implicações pertencentes aos imigrantes estão expostas, de forma sutil, porém realista. O sentimento de saudade é compartilhado, já que a palavra existe unicamente na língua portuguesa. A sensação de não-pertencimento também aparece. Teresa corre pela rua e conseguimos ver os espaço da cidade, o concreto, enquanto a personagem narra uma carta destinada a um parente ou amigo em Lisboa. Nela, a portuguesa fala mais sobre suas impressões do que as ações de fato. O estado concreto das coisas não existe. Quando se é estranho a algum lugar, as impressões são mais primordiais do que os fatos em si.

A chegada da amiga assusta Chica, a princípio, que teme perder a sua liberdade e individualidade por morar só no centro de BH. Teresa vai se aconchegando ali naquele apartamento, bem como a própria câmera que também se aconchega entre os afetos rememorados e recém-construídos entre as duas. São vários planos-sequências que no desenrolar da trama vão ganhando aspectos cada vez mais naturalistas, assim como a amizade das moradoras, que de início é permeada por certos constrangimentos, mas ao conquistar os espaços de intimidade torna-se carinhosa.

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Neste sentido, a atuação das duas protagonistas ganha notoriedade. Foram poucos ensaios, com participação da atrizes também na criação do roteiro, a linguagem, assim, torna-se um tanto documental e consegue trazer tons de intimidade ao longo da narrativa.

Este favorecimento do estar junto, do encontrar o outro e partilhar com ele o uso dos prazeres, das emoções, dos sentimentos é o que vai ser o explorado no longa. Poderíamos falar sobre um estilo calcado no presentismo. No entanto, bem diferente do romântico carpe diem – “aproveite o dia, pois ele é belo”. A cidade onde envelheço não só enquanto temática, mas em termos de linguagem e de estética, nos fala muito sobre nossos tempos. O presentismo é aqui calcado numa espécie de materialismo espiritual: só o presente existe, e não nos resta nada mais a não ser aproveitá-lo. É por isso que amizade e as relações talvez pareçam ser mais sinceras, pois não há outro momento para que o afeto aconteça. Muitos colegas que assistiram ao filme tiveram a mesma sensação: “fiquei esperando o momento que as duas iriam se pegar”, mas isso não acontece. O carinho e o afeto de Chica e Teresa poderiam muito bem se misturar com a sexualidade, no entanto, a preocupação é outra: por que não vivemos na materialidade do sentimento? O que impede uma amizade de ser tão afetuosa? Sendo assim, ela logo denotaria o interesse sexual? A amizade, neste sentido, é vivida em sua maior intensidade.

Para além da relação entre as duas protagonistas, o filme busca retratar a subsistência estética em outros aspectos da vida. Quando partem de Lisboa para o Brasil, Chica e Teresa não estão em busca de viver uma vida bem sucedida nos termos do senso comum. Elas buscam mesmo sobreviver. E sobreviver não significa mais do que sentir.

No final, a predileção pelo presente aparece de novo. Francisca vai voltar para Lisboa, mas não avisou a amiga de antemão. Afinal, o futuro existe? O que é certo é que, tanto para Francisca quanto para Teresa, a busca pelo sentido da experiência é um objetivo.


“A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.”
— Fernando Pessoa como Bernardo Soares no Livro do Desassossego

SETE PERSONAGENS QUE AMAMOS (E SUA JORNADA PARA A MATURIDADE)

Existe algo sobre histórias de formação que mexe com as emoções do público. Talvez tenha algo a ver com o fato de que qualquer adulto tenha que passar pela experiência de alcançar a maturidade, o que faz das obras que exploram o tema especialmente tocantes e identificáveis. A universalidade das histórias de formação faz delas um assunto explorado repetidas vezes, mas, como de costume, as obras mais celebradas do gênero são protagonizadas garotos brancos tendo que lidar com a chegada da vida adulta. Não que Holden Caulfield não seja um personagem memorável, sua tentativa de fuga do mundo dos adultos é algo com que muitos podem se identificar, mas não podemos fingir que a sua experiência não está profundamente ligada ao seu sexo, cor e status social. Temos que parar de fingir que homens brancos heterossexuais são um padrão em que todos podem se ver. É verdade que pessoas de grupos minoritários – mulheres, negros, asiáticos, gays – acabam por ter que se identificar com ou no mínimo conhecer essas histórias simplesmente porque elas estão em todos os lugares e formam o cânone da arte ocidental. Mulheres que estudam e se interessam por literatura são obrigadas a ler livros de autores celebrados que eram extremamente misóginos. Cineastas negros têm que saber que O Nascimento de Uma Nação, um dos filmes que  marcaram o cinema, glorifica a criação da Ku Klux Klan. Estudar arte, pertencendo a um grupo minoritário, é, muitas vezes, uma experiência masoquista. E isso não começa com os livros e filmes racistas, misóginos e homofóbicos, vem de algo muito mais sutil e insidioso, da experiência de sermos forçados a nos identificar homens brancos e heterossexuais enquanto continuamos a ser desumanizados pela nossa invisibilidade. Essa lista vem como uma tentativa de abrir horizontes, mostrar novas histórias, dizer: estamos aqui. Existimos.

Rae de My Mad Fat Diary

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Os médicos olharam pras minhas pernas e disseram ‘não doeu? Não doeu tanto quando você estava fazendo que queimava respirar?’ Pelo menos elas me lembram que eu sobrevivi. Mas por pouco.

Depois de passar quatro meses numa clínica de recuperação após uma tentativa de suicídio, Rae tem que voltar a conviver com os amigos e a mãe ao mesmo tempo que lida com seus problemas de auto-imagem, depressão e ansiedade. A série trata de diversos assuntos que haviam sido explorados de forma muito tímida por outras séries adolescentes anteriores. A obesidade e o aborto são temas abordados com sensibilidade e consciência, promovendo um debate pertinente e muito honesto. Sem falar da forma sarcástica, cômica e crua que Rae vê o mundo, ela é um presente para espectadores que desejavam uma voz inovadora, engraçada e real.

Shizuku de Whisper of the Heart

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Deve ser ótimo saber o que você quer fazer. Eu não faço a mínima ideia, só vou de um dia pro outro.

É seu último ano do ensino fundamental e Shizuku está pronta pra aproveitar o verão e ler todos os livros de fantasia que encontrar na biblioteca. Não demora muito pra ela perceber que todos os livros que ela pega foram lido antes por um tal Seiji Amasawa, que ela acaba por conhecer e, aos trancos e barrancos, se tornar amiga. Ao descobrir sobre o desejo de Seiji de seguir sua paixão pela confecção de violinos, Shizuku é inspirada a pensar em seus próprios desejos para o futuro e descobrir suas próprias aspirações: tornar-se escritora. Apesar de seus medos e incertezas, Shizuku se entrega completamente à empreitada de escrever sua primeira história, por vezes negligenciando a escola, o que preocupa seus pais. Whisper of the Heart apresenta comentários interessantes não só sobre a procura dos sonhos, mas também sobre o expectativas da sociedade japonesa quanto a escola e busca de carreiras criativas.

Wadjda de O Sonho de Wadjda

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Você, tímida? Quem dera!

Tudo que a pequena e rebelde Wadjda quer é uma bicicleta verde para apostar corrida com o amigo e, depois da recusa da mãe, ela sabe que a única forma de alcançar seu objetivo é utilizar suas próprias habilidades para arrecadar dinheiro e comprar a bicicleta ela mesma. A trama do filme é simples e simbólica. Além de ter sido o primeiro longa-metragem inteiramente filmado na Arábia Saudita, O Sonho de Wadjda foi também o primeiro filme dirigido por uma mulher saudita, sua história aparentemente simples, protagonizadas por mulheres em uma sociedade misógina, mas que continuam a lutar pelos seus direitos e desejos como podem, ganha um aspecto de resistência quando colocado em uma perspectiva histórica.

Estela de Califórnia

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Ah, Estela… Todo mundo tem problemas. É que a gente só repara nos nossos.

O primeiro longa-metragem de ficção de Marina Person conta a história de uma adolescente que sonha em fugir. Fugir de um país sob um governo ditatorial, fugir do pai tirânico, fugir da sua primeira menstruação, que, segundo o mundo, indicava que ela havia se tornado mulher. Ao som de The Cure, Paralamas do Sucesso e Joy Division, vemos Estela descobrir que aquele sangue quatro anos antes nada tinha a ver com se tornar mulher. Vemos sua jornada para a maturidade se desenrolar em livros, amores e desamores, a morte de uma pessoa querida e sua primeira experiência sexual.

Angela de My So-Called Life

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As pessoas dizem o tempo todo que você deveria ser você mesmo, como se você mesmo fosse essa coisa definida, como uma torradeira. Como se você soubesse o que é.

Falar da história de maturação de Angela Chase é um tanto quando irônico porque ela nunca acabou. A série que ela protagonizou em meados da década de 90 nunca viu a luz da segunda temporada devido a sua baixa audiência, mas desde então a série ganhou legiões de fãs e se tornou um clássico cult. Isso provavelmente se deve ao fato que a série, até hoje, ressoa profundamente com o público adolescente devido a sinceridade da sua personagem principal, Angela, entre a angústia com o fim de antigas amizades, a criação de novos laços, problemas com os pais e paixonites adolescentes, vemos diversas reflexões de Angela que por vezes hilárias e comoventes e fazem de My So-Called Life uma série memorável.

Alike de Pariah

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Um coração partido se abre para o nascer do sol porque até a ferida é uma abertura e eu estou partida, eu estou aberta.

A adolescência é uma época difícil para qualquer um, mas pode ser especialmente dura para uma adolescente negra e lésbica encarando e abraçando a sua própria sexualidade dentro de uma família religiosa. Alike tem que lidar tanto com problemas corriqueiros da idade como brigas com a melhor amiga quanto a homofobia profundamente enraizada da mãe enquanto descobre sua própria identidade e percorre o caminho tortuoso para a vida adulta. Desde as roupas que usa até a pessoa por quem ela vem se apaixonar fazem parte de um processo de auto-aceitação e busca de pertencimento que culminam numa ruptura dolorosa e necessária com a família e a infância.

Malcolm de Dope

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Para a maioria dos geeks, um dia ruim pode ser uma piada durante a aula, a ocasional pegadinha com sua comida e, no pior dos casos, levar uma surra dos atletas. Mas quando se mora nos Bottoms, um dia ruim é ser morto por acidente.

No seu último ano do ensino médio, Malcolm Adekanbi ainda está tentando conciliar a sua identidade como um aluno nota 10 com pretensões de entrar em Harvard com a forma que o mundo o vê: um jovem negro criado na periferia de Los Angeles por uma mãe solteira. Em meio a sua busca por fugir dos estereótipos e encontrar o seu lugar no mundo, ele alimenta sua obsessão por cultura hip hop dos anos 90 e toca com seus dois melhores amigos em uma banda punk. Depois de se envolver acidentalmente em uma briga de gangues, ele terá de lidar com tudo que faz parte da sua identidade, inclusive aquilo que ele rejeita.

DECADÊNCIAS DO CONVÍVIO: O PÂNTANO

O Pântano (La Ciénaga, 2001) é o primeiro longa-metragem da diretora Lucrecia Martel. Assim como os outros longas da diretora, joga a espectadora na rotina de uma família argentina. O filme não se preocupa muito em apresentar e explicar as relações entre as personagens ou em fazer um histórico de quais conflitos elas vivem, já que isso pode ser apreendido pela espectadora por meio dos diálogos e da mise-em-scène. É como se a câmera invadisse o cotidiano familiar de uma forma quase documental.

No filme são apresentadas as interações entre as famílias de Mecha (Graciela Borges) e de Tali (Mercedes Morán). Ambas possuem famílias numerosas e a quantidade de personagens pode deixar as pessoas um pouco confusas no começo.

Tali é a prima que pertence à classe média-baixa. É casada com Rafael (Daniel Venezuela) e mãe de Agustina (Noelia Bravo Herrera), Martín (Franco Veneranda), Mariana (Maria Micol Ellero) e Luciano (Sebastián Montagna). Já Mecha é a prima mais abastada, fazendeira e dona de terras. Casada com Gregório (Martín Adjemián) e mãe de José (Juan Cruz Bordeu), Momi (Sofia Bertolotto), Verónica (Leonora Balcare), apelidada de Verô, e Joaquín (Diego Baenas). José trabalha em Buenos Aires com Mercedes (Silvia Baylé) vendendo os pimentões plantados na fazenda da mãe. As duas famílias se reaproximam depois que Mecha sofre um acidente e encontra Tali com os filhos no hospital da cidade. Além disso, Mecha, Tali e Mercedes foram companheiras de faculdade.

Uma observação importante é que as personagens indígenas são sempre as empregadas, trabalhadoras, pessoas mais pobres e que frequentam lugares mais baratos. Pela estrutura do filme, isso aparece mais como uma denúncia que como um reforço de posições sociais, já que a comparação de classes é um dos principais pontos de partida do filme (que se aprofunda mais na decadência existencial das classes mais ricas).

O título original, La Ciénaga, é um jogo interessante de palavras, já que sua tradução é literalmente “O Pântano”, mas La Ciénaga é também o nome de uma região com aproximadamente 750 moradores onde o filme se ambienta no munícipio San Lorenzo, na província de Salta, província natal de Martel. O pântano literal e visual aparece desde o começo do filme (na piscina descuidada, no pântano nas montanhas, na lama onde os irmãos brincam…). Já a ideia de pântano, a metáfora, permeia todo o filme, em relações complexas entre as personagens.

Em diversos momentos, a figura masculina representa o pântano para as mulheres. Isso acontece com mais força no caso da viagem de Tali à Bolívia. Ela quer viajar para comprar o material escolar dos filhos. No filme, ela quer “viajar sozinha”, ela levaria os filhos e chega a convidar Mecha para a viagem e planejar a ida com ela, o que denuncia o pensamento machista de que uma mulher que faz algo sem a presença de um homem está sozinha, mesmo que esteja acompanhada de outra mulher. Rafael, o marido de Tali, faz de tudo para que ela não consiga ir. Desde desestimular a esposa com palavras e procrastinar o pedido dela de separar os documentos, até ao cúmulo de comprar escondido todos os materiais escolares para que Tali não tenha mais razões para fazer a viagem.

Para Mecha, a traição no passado (sabida, mas impronunciada) do marido com Mercedes (que atualmente parece se relacionar de forma íntima, mas que nunca fica explícita, com José), a faz afundar mais que uma figura masculina em si – até porque Gregório é um homem sem motivações ou aspirações, que não reclama nem acrescenta nada. Há também outro jogo parecido (e talvez até relacionado) com o do título: Mecha é um apelido para Mercedes. Ou seja, a matriarca decadente possui o mesmo nome da mulher que afasta seus homens dela. O segundo “pântano” de Mecha é o alcoolismo, bastante marcado no filme. Por fim, a desistência de Tali de viajar à Bolívia ajuda a afundar Mecha ainda mais. É notável que Martel consegue explicitar o sistema patriarcal e seus prejuízos às mulheres (mesmo para famílias centradas na mulher, como a de Mecha) sem precisar apelar para a violência física ou verbal.

O filme de Lucrecia Martel cria diversas tensões sexuais, sem nunca explicitar o desejo. Fica tudo a cargo de quem o assiste. Essa tensão pode aparecer de forma mais insinuada nas brincadeiras entre irmãos (principalmente Verô e José) ou de forma mais inocente e disfarçada nos momentos em que todos se deitam e se amontoam na mesma cama ou nos olhares de Verô a Perro (Fabio Villafane) quando ele tira a camisa. Perro é uma personagem indígena, assim como Isabel (Andrea López), e a tensão sexual entre eles é bem parecida com a que existe entre os irmãos Verô e José, o que pode dar a entender que são irmãos. Porém isso nunca é dito no filme, deixando a relação entre os dois em aberto para a espectadora.

Além disso, Momi tem uma atração muito forte por Isa, que é uma das empregadas domésticas de Mecha. As duas sempre se deitam juntas e várias vezes Momi a defende perante à mãe. Em nenhum momento é atração é claramente sexualizada, mas é bastante afetiva. O desejo que quase não é mostrado nas outras personagens é mais claro e explícito em Momi, mas ela nunca é totalmente correspondida. Momi também nunca é totalmente rejeitada, talvez (e acredito que provavelmente) pela relação de “filha-da-patroa e empregada” das duas.

A religiosidade é um tema recorrente para Lucrecia Martel. Está presente nesse primeiro longa quase que de forma paralela à história. É o que se vê na TV, o que não se tem provas. Martel, criada na doutrina católica, contesta a existência de Deus e a ideia de que exista um “plano divino” ou destino para cada pessoa. Essa é uma tendência que vai ser explorada em toda a obra da diretora, principalmente no filme A Menina Santa (La niña santa, 2004), que relaciona a culpa com a noção de “plano divino” e religião. Em O Pântano, existe mais uma ideia da ocorrência de fatalidades como castigo – implícita nas consequências de Rafael ter podado as escolhas da esposa, Tali – paralela à midiatização que esvazia de sentidos a religião.

O filme começa com um acidente leve e termina com outro mais grave. No intervalo entre os dois acidentes, o risco vivido pelas personagens é iminente: elas passam por situações delicadas e periclitantes na maioria das cenas. A atmosfera é o tempo todo de perigo. Isso é fortalecido em grande parte pelo som. Muitas vezes, durante uma cena de perigo, imagens de outra cena são impostas à espectadora antes do desfecho da cena de perigo. Fica a cargo do som completar o que foi cortado. Um exemplo disso é em uma cena que os meninos estão na montanha com uma arma de fogo. Luciano se coloca na frente da arma e a cena é cortada para os adultos bebendo na piscina. Na cena da piscina, ouvimos sons de tiro e completamos intuitivamente a ação da cena anterior, presumindo que Luciano levou um tiro, mesmo sem a confirmação de que isso realmente aconteceu. Esse recurso é interessante porque nos coloca na mesma posição que Tali e Mecha estão ao escutar o tiro. Também acontece algo parecido quando o filme acaba e sobem os créditos: o som ambiente continua até o final, mesmo sem as imagens.

O Pântano é um filme bastante íntimo. Carrega muitos aspectos da vida pessoal da diretora saltenha, como ela mesma declarou. Lucrecia Martel não hierarquiza nenhum dos enredos. Todos são igualmente humanos, igualmente realistas e igualmente absurdos num sentido camusiano. Se uma única personagem ou um único evento fossem enfatizados, talvez a  diretora não conseguisse passar a mensagem de que todos, independente de quem seja, estão presos e, mais do que isso, todos estão afundando nos pântanos criados pela coexistência.

RIVALIDADE E FORÇA FEMININA: COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

Esse filme mexicano de 1992 foi dirigido por Alfonso Arau é adaptação de um livro homônimo escrito por Laura Esquivel. Conta a história de Tita (Lumi Cavazos), uma menina que ao nascer foi designada para cuidar da mãe (Regina Torné), como parte de uma tradição da família. Por isso, Tita não poderia se casar, mesmo assim, ela se apaixona por Pedro (Marco Leonardi) e é correspondida. A mãe, para impedir que os dois namorem, oferece a mão de Rousaura (Yareli Arizmendi), irmã de Tita para Pedro, que aceita no intuito de morar perto da amada. Assim, Tita tem de viver na mesma casa que os dois, escondendo seu amor. Além de Tita e Rosaura, mamá Elena, a mãe, tem mais uma filha, Gertrudes (Claudette Maillé), que foge e acaba se tornando a líder do exército revolucionário. O filme tem uma relação bem forte com a cozinha, local onde Tita nasceu e passou a maior parte da vida. Além disso, os sentimentos reprimidos da protagonista se concretizam e tomam forma por meio da comida.

Bom, vamos por partes, apesar de ser um filme com mulheres independentes e de família matriarcal (mamá Elena chega a dizer para o padre que “os homens não são tão importantes assim” quando ele a questiona sobre a falta de um em casa), ainda há uma grande valorização do amor Romântico (com letra maiúscula e direito a todos os clichês do Romantismo mesmo) e noção de que as mulheres de bem são as que sabem cozinhar e cuidar da casa. De fato, o filme separa as mulheres “para casar” e as “vadias”, algo que não fica tão incômodo porque acaba sendo uma crítica a esse modelo e ao pensamento da época. Ainda assim, mostram de maneira ridicularizada as mulheres que não sabem cozinhar, por exemplo. Um ponto positivo é que a maioria das personagens com falas são mulheres, quase todas elas são mulheres fortes e com personalidade, com exceção de Rosaura.

O desejo é quase como uma entidade, presente em todo filme. Assim também é com a repressão. Essas duas entidades se materializam nas personagens Tita e Elena. Tita que não pode viver seu desejo, o transfere para Gertrudes, que ao comer o que Tita cozinha, se sente excitada, se masturba, foge de casa… O desejo é retratado com a metáfora do fogo, é de um incêndio que Gertrudes corre pelada para o colo de seu amado. Gertrudes é uma personagem muito interessante, mas que infelizmente não é explorada na história. Ela volta como “generala” do exército revolucionário, é uma mulher imponente e temida pelos homens que participam da revolução, todos a obedecem de cabeça baixa, mas não sabemos o que ela fez nem por onde andou.

Se por um lado as representações femininas quebram estereótipos, por outro reforçam a noção deturpada de feminilidade ligada dotes culinários e do lar. Também há a manutenção da ideia de rivalidade entre mulheres – disputando um homem, nada novo sob o sol. Porém, essa relação de rivalidade fica restrita a Rosaura e Tita. A maior parte das mulheres no filme se ajudam e se fortalecem. Gertrudes, Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) apoiam Tita, porém sem coragem de se colocarem contra a matriarca. Gertrudes secretamente ensina Tita e evitar uma gravidez, por exemplo. As vizinhas/parentes da família também se mostram favoráveis ao amor de Tita. Uma das relações que mais gostei de ver ser desconstruída foi a relação de mãe e filha. Não existe no filme o amor maternal mágico. Também não existe amor incondicional à mãe. Tita chega a dizer para Elena que sempre a odiou, indo contra o final feliz comum em que as personagens se reconciliam e vivem todas felizes para sempre. Esse é um ponto bem interessante, porque o filme não retrata as mulheres como sensíveis e passivas a perdoar qualquer atrocidade que as acontece. O filme se passa entre 1910 e 1934, no México, então é normal que mostre como as mulheres eram criadas para odiar umas as outras, mas mostra sublimemente como essa criação pode ser burlada e como a união feminina é forte.

O filme não mostra empoderamento feminino nem contesta o papel da mulher na sociedade, mas escolhi falar sobre ele por ter personagens complexas com histórias próprias, que não dependem de um homem para acontecer. Na maior parte do filme, o corpo feminino não é tratado como objeto. Em alguns momentos, o filme sexualiza Tita, mas é interessante o fato de em alguns momentos sexualizar o corpo masculino também. Na verdade, em um momento só, quando Pedro chupa e passa gelo de maneira sensual pelo corpo. Também incomoda um pouco o fato de que o que preocupa Rosaura em relação ao casamento dela não é o fato de ter se aproveitado da situação vulnerável da irmã, mas sim a possibilidade de o marido não a desejar mais por causa de seu peso, seu hálito e seus gases. Fica ainda forte no filme o casamento como único destino para as mulheres. Mesmo Gertrudes, que fugiu e liderou uma revolução, acaba casada e com filha. Vale ressaltar que as mulheres no filme são em maioria brancas, com exceção de Chencha e Nacha que parecem ter origens indígenas.

O filme utiliza alguns recursos do realismo fantástico para construir situações visualmente inusitadas e expor tanto o sofrimento contido quanto a libertação sexual. Após reassistir para escrever essa crítica, me encantei menos que da primeira vez que tinha visto. As mensagens de esperança e de força feminina ainda estão ali, porém muitas problemáticas ficaram mais claras para mim, todas elas relacionadas ao amor romântico (agora com minúscula, mas englobando o Romântico maiúsculo também) e ao papel determinado para as mulheres nesse sistema. Desde crianças, as filhas de Elena são ensinadas a buscar um amor heterossexual como objetivo de vida. São sempre questionadas sobre quando e com quem querem se casar. Quando a filha de Rosaura nasce, uma das primeiras coisas que ouvimos sobre ela é a vontade que o filho do médico tem de se casar com a menina recém nascida. E, fatalmente, os dois se casam.

Até a protagonista se apaixona sem explicações razoáveis. Nunca é mostrada uma conversa sequer entre Tita e Pedro, mesmo assim ela se mostra perdidamente apaixonada pelo rapaz. É como se o amor fosse uma força inexplicável que vai fatalmente atingir a todas as mulheres. Isso fica claro desde o começo do filme, quando Elena diz a Tita que ela não vai poder se casar, Tita, ainda criança, se revolta e fica chateada com a notícia. Permanece a ideia de que, se não for o casamento, não resta mais nada a ela. A própria Elena guarda uma foto de seu amor do passado em um colar em formato de coração, ou seja, na concepção do filme, até a mais fria e rigorosa das mulheres é destinada a amar eterna e incondicionalmente alguém.

Quanto ao título, se refere ao ponto de ebulição da água. É uma expressão usada no México, já que para fazer chocolate a água deve estar fervendo. No livro, essa expressão é usada para demonstrar que Tita estava sempre com raiva das situações que lhe eram impostas, desde seu futuro predestinado, até a indignação com o comportamento de Pedro, porém no filme isso não fica tão claro. Tita é retratada como uma moça tolerante e carinhosa. Provavelmente, no livro, por ser escrito por uma mulher, as perspectivas de amor e a personalidade da protagonista são diferentes.


Ilustração da dominicana Gaby D’Alessandro

A JORNADA INDIVIDUAL DAS MULHERES PELO COLETIVO: MAD MAX

O cenário é um deserto pós-apocalíptico. Terras inférteis, escassez de água e um povo miserável, que carrega marcas, deformações e mutações causadas pelas radiações e clima do futuro distópico. O mundo é reimaginado através de todas as consequências das falhas de estruturas que pautam a nossa realidade atual.

Várias questões são tratadas de forma sutil ou um pouco mais explícita, como a questão dos latifúndios que exploram a terra e a torna infértil quando maltratada à exaustão; a água, que, por ter ficado escassa graças ao uso inconsequente de outrora (os tempos atuais), torna-se uma riqueza que poucos têm acesso; a exploração de alimentos e produtos derivados de origem animal; as relações de poder atuais levadas ao extremo.

Tudo isso num cenário composto pelo deserto, cuja simbologia traz, parafraseando Julio Bressane, o privilegiado centro de percepção dos rumores e ecos da inquietação espiritual: é uma reflexão interna e externa ao ser humano, dos rumos que a nossa sociedade tem tomado – visto no filme de forma mais simbólica, repleto de alegorias.

Gosto muito de buscar simbologias e relações com arquétipos em filmes que assisto, e Mad Max foi um prato muito bem servido disso, pois traz simbologias em quase todos os detalhes, desde os enquadramentos, as paletas de cores até em detalhes de figurinos.

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Tom Hardy como Max Rockatansky

Como disse, as simbologias trazidas no filme estão em todos os detalhes, vou me permitir dar uma viajadinha nessas interpretações. É curioso o visual que traz a focinheira que é colocada à força em Max Rocktansky (interpretado por Tom Hardy), ao ser capturado para servir de bolsa de sangue para um dos Garotos de Guerra de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne). O objeto faz alusão ao tritão de Poseidon, cuja narrativa traz vários traços do mito, além da semelhança com o símbolo da Psicologia, o que remete à ideia de que A Estrada da Fúria é também sobre a jornada interna de Max em consequência ao que viveu nos episódios anteriores da trama. No início do filme são muito mais recorrentes as imagens e alucinações que o levam aos seus traumas de perder toda a família e o caos instaurado no mundo. No decorrer da história essas alucinações não só diminuem, mas quando aparecem servem de motivação e instrução para resoluções dos problemas que encontra no caminho. Ele vê todo esse processo como algo solitário e individualista, sendo o seu único motivador inicial a sobrevivência, até que encontra a Imperatriz Furiosa (Charlize Theron).

Ambas as personagens, Max e Furiosa, estão em busca de redenção. Mas enquanto ele vê todo esse processo como algo solitário e individualista, Furiosa a vê como algo pelo bem comum, na salvação de outras mulheres para que não vivam o que ela também já viveu, e na esperança de um lugar melhor que a realidade da Cidadela, que é completamente controlada por Immortan Joe.

A jornada de Furiosa consiste em encontrar redenção salvando as esposas do tirano, que são tratadas como objetos e mantidas sob proteção para fins reprodutivos, e levá-las ao Vale Verde das Muitas Mães, o lugar do qual nunca esqueceu de ter sido capturada, que seria um paraíso acolhedor. A esperança de chegar a esse lugar é o que move a personagem e motiva as esposas.

É interessante perceber que Furiosa, apesar de resgatá-las, não as ensina nada, são elas que vão se descobrindo e ganhando mais complexidade ao longo do filme. A própria Furiosa ainda não tinha muita certeza do que poderia ser dali em diante, tudo o que ela tinha era uma missão para a sua redenção e a lembrança de um lugar melhor. No entanto, ao descobrir que esse lugar não existia mais, há uma frustração muito grande. A personagem se depara então com as suas raízes e ancestralidade, representadas pelas anciãs que guardam um valioso tesouro, que são as sementes.

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Charlize Theron como Imperator Furiosa

Embora quase todas as terras estivessem inférteis e sem a possibilidade do uso da água, elas mantiveram a esperança de um dia plantar essas sementes e recuperarem o local que perderam. É entrando em contato com elas que Furiosa percebe que, apesar da busca pelo lugar ideal em uma longuíssima jornada, a própria Cidadela poderia se tornar a terra utópica, se as estruturas de poder mudassem e os recursos fossem utilizados visando o bem comum. Acaba sendo uma bela crítica e uma reflexão sobre os rumos que o sistema tem levado e o que tem feito com os indivíduos que vivem nele: talvez não estejamos tão distantes da distopia da Cidadela, em vários aspectos.

OS MONSTROS QUE FAZEM DE NÓS: A BRUXA

Eu esqueci a suavidade porque ela não me serviu.

Catherynne M. Valente

Eu tenho falado de filmes de terror com certa frequência nos últimos meses e prometo que não é intencional, é só que é muito fácil contar histórias aterrorizantes protagonizadas por mulheres. Até pouco tempo atrás, esse protagonismo significava sermos mortas, estupradas, perseguidas e intimidadas, e, embora isso ainda aconteça, em alguns poucos e preciosos filmes, a moral se inverteu. Não somos mais aterrorizadas por nos comportarmos mal, nos comportamos mal por sermos aterrorizadas e essa inversão faz toda a diferença.

Mulheres que transgridem determinados preceitos e são castigadas por isso reforçam nossos valores, enquanto mulheres-monstros produto de uma sociedade tóxica nos fazem questioná-los. A Bruxa está, claramente, posicionada nesta segunda categoria, então, não é muito difícil entender por que, na sessão lotada em que assisti o filme, as reações – comunicadas com bastante ênfase – foram de negativas a indignadas.

Thomasin, a jovem protagonista do filme, é tratada desde o início como um tipo de mercadoria por sua família. Quando essa “mercadoria” começa a se mostrar inconveniente, seu despacho é abertamente discutido pelos pais da menina. A inconveniência que ela apresenta tem muito pouco a ver com qualquer comportamento que ela apresenta, e sim do que é projetado sobre ela. Thomasin é repetidas vezes acusada por membros da sua família pelas ações daqueles a sua volta. O pai vende uma taça de prata da mãe e deixa a culpa recair sobre a filha quando a ausência do objeto é sentida. A mãe está convencida de que ela está seduzindo o irmão, mas todas as vezes que vemos Caleb olhar para Thomasin com desejo, ela não parece estar ciente do fato. A primeira vez que acontece, ela está dormindo. Fica claro que o próprio corpo da menina, que começa a mostrar sinais de estar alcançando maturidade, é o seu maior pecado. “O inferno é uma garota adolescente”, afinal de contas.

Os problemas domésticos somados a acontecimentos sobrenaturais que acometem a família acarretam na histeria que leva as acusações contra a filha mais velha se tornarem em violência. “A Bruxa” que daria título ao filme é apresentada quase como um mau neutro, onipresente e imbatível. O espectador, consciente da inocência de Thomasin, é levado a observar os pais da menina como os verdadeiros vilões da história.

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Anya Taylor-Joy como Thomasin

Ao conversar com um amiga, depois de termos assistido a Cinco Graças, falamos brevemente sobre a cena em que uma das meninas é levada ao hospital para que seja comprovada sua virgindade. Antes que o médico a examine, ele pergunta se ela já fez sexo e ela diz que sim, com várias pessoas. Após o exame, ele questiona a mentira, ela responde com um ar cansado que beira o deboche “quando digo que sou virgem, ninguém acredita”.

Cinco Graças é um drama que se passa na Turquia contemporânea, A Bruxa, nos Estados Unidos do século XVII, mas a conclusão que as adolescentes de ambos os filmes chegam não é muito diferente: estamos condenadas de uma forma ou de outra. Chega a ser um pouco trágico que esses dois filmes – o primeiro, um drama realista, o segundo, um filme de terror sobrenatural – encontrem pontos de convergência, mas o que torna A Bruxa tão apavorante, como em qualquer bom filme de terror, é justamente o fato de sua alegoria ter raízes muito reais no mundo do espectador no momento em que ele assiste. E no caso d’A Bruxa especificamente, essas raízes estão fincadas há alguns milênios: não existe monstro mais terrível do que uma mulher. Mas essa é a visão simplista a que já fomos expostos repetidas vezes, A Bruxa vai além e diz: não existe monstro mais poderoso do que uma mulher que já nasceu condenada e se entrega à perversidade de que a acusaram desde o início.

Conte uma mentira vezes o suficiente e ela se torna realidade.

(spoilers a seguir)

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No final do filme, vemos toda família de Thomasin assassinada. A menina, ensanguentada, mas ainda inocente, toma o que parece ser sua primeira decisão autônoma. Ao assinar o livro do demônio, ela entrega sua alma e sentimos um alívio que se reflete no rosto extasiado de Thomasin em perceber que ela é, afinal, livre.

Ao sair do cinema, satisfeita, comecei a questionar as minhas próprias conclusões sobre a obra. Mas que liberdade é essa? Se, no final de tudo, ela não tinha nenhuma alternativa? Caso tivesse permanecido na casa isolada, morreria de fome antes do fim do inverno, se voltasse para o vilarejo, seria condenada pelo assassinato da família.

Que liberdade é essa em que falamos quando falamos em sexo livre nos dias de hoje, em que nossos corpos, ora, necessariamente castos, ora, necessariamente profanos, continuam a ser alvo de regras criadas por outras pessoas? De que liberdade estamos falando quando dizemos a mulheres mulçumanas que elas devem retirar seus véus para serem livres? Por que, ao invés de dizer o que uma mulher deve fazer, não perguntamos a ela como ela deseja viver?

A Bruxa, no final das contas, não é um filme sobre empoderamento feminino, mas não tenciona ser. O fato de seus diálogos terem sido retirados de documentos históricos sobre bruxaria serve de lembrete: a realidade e o terror, quando diz respeito a vivência feminina, são quase indistinguíveis e a liberdade ainda está muito, muito distante.

SOBRE MULHERES QUE USAM XADORES COMO CAPAS: A GIRL WALKS HOME ALONE AT NIGHT

Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.

A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.

A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.

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Sheila Vand como A Garota.

O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.

Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.

Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.

Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.