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O ESPERADO MERGULHO: QUE HORAS ELA VOLTA?

O novo filme de Anna Muylaert chegou finalmente aos cinemas brasileiros depois de uma temporada de enorme sucesso em diversos festivais pelo mundo, ganhando prêmios em Sundance para as atrizes Regina Casé e Camila Márdila, e também o prêmio do público em Berlim, onde o filme foi ovacionado em sua sessão de abertura.

Acompanhamos a história de Val, que trabalha como empregada doméstica na casa de uma família rica no Morumbi, em São Paulo. Interpretada magnificamente por Regina Casé, Val saiu de Pernambuco em busca de emprego e lá deixou sua filha Jéssica, que não vê há 10 anos, mas que sustenta mandando dinheiro regularmente. Um belo dia Jéssica liga para a mãe dizendo que se inscreveu no vestibular da USP, e pede para ficar com ela por um tempo para fazer a prova. Mas se surpreende ao chegar e descobrir que Val mora com os patrões – no quartinho dos fundos. Não disposta a se submeter ao tratamento subalterno que dispensam a Val, Jéssica consegue se instalar no quarto de hóspedes, apoiada pelo patrão Zé Carlos, que já coloca logo um olho na menina (eca!). A patroa, Bárbara, aceita a menina por educação, mas logo fica incomodada. Val, que se acostumou a uma vida inteira abaixando a cabeça para os outros, fica doida com o comportamento destemido da filha, temendo inclusive perder o emprego de anos a fio.

O filme começa mostrando como é a relação de Val com Fabinho, o filho dos patrões. O tema do filme é claramente a ausência materna. O título evidencia essa questão logo na primeira cena, em que o pequeno Fabinho, sendo cuidado por Val, pergunta por sua mãe que saiu para trabalhar: “que horas ela volta?”. (Simplesmente amo quando o título do filme sai da boca dos personagens, e essa primeira cena é fantástica). Ao mesmo tempo, Val deixou sua própria filha em Pernambuco se perguntando o mesmo, enquanto foi ser uma “segunda mãe” para o filho dos patrões. Engraçado que o título em inglês “The Second Mother” evidencia esse lado afetivo entre Val e Fabinho, ao contrário do título original mais crítico.

E a grande força do filme é claramente Regina Casé. Ela interpreta Val com uma vitalidade e carisma incríveis, engraçada e bem humorada. É quase impossível não se apaixonar pela personagem e suas peculiaridades. E achei o sotaque pernambucano dela muito bom, não é todo ator que consegue fazer sotaques com maestria. Me surpreendeu inclusive porque todos sabem o quanto Regina Casé é carioquíssima. Por outro lado, Jéssica, interpretada também excelentemente por Camila Márdila (e também com um sotaque muito bom, visto que ela é de Brasília) faz uma personagem bem mais sóbria e madura, que constrasta com todos naquela casa. Quando Jéssica chega, todos tentam manter as aparências e recebê-la bem, porém Fabinho solta um “ela fala igual à Val”, como se elas fossem de outro planeta (momento super afiado e certeiro do roteiro, por sinal). Provavelmente o menino “não fez por mal”, mas essa fala evidencia claramente como ele foi educado a pensar.

Fabinho, aliás, é o típico garoto mimado de classe média alta. Na verdade, a família dos patrões é toda meio baseada em estereótipos, que são mesmo difíceis de fugir numa história como essa. Principalmente porque são personagens bem reais, e que precisam ser criticados. No entanto, me incomoda um pouco a falta de “personalização” deles, porque aí se lida mais com arquétipos do que com personagens tridimensionais. Por exemplo, a patroa Bárbara é a típica madame rica, fútil, que só anda bem vestida e maquiada, e só faz dar ordem aos empregados, além de brigar com eles. Essa personagem já apareceu inúmeras vezes no cinema para ser criticada, me lembro bastante de Miranda Priestly em O Diabo Veste Prada, até àquele filme O Diário de Uma Babá, onde Scarlett Johanson faz a babá do filho da Laura Linney. Todas essas mulheres são madames fúteis, um tanto malvadas, e que no fundo tem uma vida infeliz, os maridos querem deixá-las, tudo não passa de uma vida de aparências, e ainda por cima nem os filhos gostam delas, pois foram criados por babás. Aqui neste filme temos novamente um pouco de tudo isso, inclusive na cena em que Bárbara chama Fabinho e o acusa de não ligar para ela, mesmo ela tendo sofrido um acidente. A cena parece feita para julgarmos Bárbara, por estar fazendo drama, querendo atenção, ou ainda para inferirmos que isso é tudo culpa dela mesma por ter criado o filho assim, sem se importar com ninguém. Ao se criar uma personagem dessa forma, acho que até diminuem as chances de se criticar os sistemas de opressão como sistemas em si, pois se coloca toda a culpa nos indivíduos, nos vilões do filme. E se Val tivesse uma patroa boazinha, a vida estaria mais fácil para ela e outras milhões de domésticas? É muito fácil detestar Bárbara pelo jeito que a personagem foi construída, e perder de vista que essa é uma relação sistêmica generalizada no Brasil.  Um filme que mostra isso por um viés interessante, por exemplo, é o filme de Juliana Rojas de 2011, Trabalhar Cansa. Nele a patroa não é madame fútil, porém mantém o mesmo tipo de serviço que Bárbara tem com Val, tendo uma empregada que dorme em casa e tudo. E a relação é acidamente criticada no filme.

O patrão Zé Carlos acaba entrando também num certo clichê do marido ausente que já não tem atração pela própria esposa e vai atrás de uma mulher mais jovem (toda vez que ele chegava perto de Jéssica eu me arrepiava na cadeira do cinema, cruzes!). Porém, a ele o filme concede uma personalidade um pouco mais particular, até porque mostra um pouco mais o que ele faz da vida, pinta quadros, é meio vagabundo aparentemente (mas diz que é herdeiro), e é bastante, bastaaaante maluco, como uma cena desconcertante na cozinha mostra depois. O filho Fabinho, porém, não é muito desenvolvido (até porque nem precisa ser). Ele serve mais como um modelo de comparação para Jéssica. Um teve tudo do bom e do melhor, foi mimado e até hoje não possui muita maturidade. A outra, certamente nunca teve nada fácil, tampouco a mãe ali para apoiá-la. Já Fabinho teve duas mães a seu dispor, a dele e a de Jéssica.

E é justamente Jéssica que traz frescor ao filme, tanto pela atuação certeira, como pela personagem ser uma força desestabilizadora na estória. Até mesmo Val poderia cair numa caricatura, caso tivesse outra atriz menos talentosa no papel, pois nada na história dela foge tanto assim aos arquétipos desse tipo de personagem. Mas Jéssica, essa sim é a personagem chave do filme, contesta tudo o que vê, se recusa a participar do jogo de poderes, e ainda assim não é uma menina prepotente, como Val acusa, mas sim alguém que não aceitou o lugar inferior na vida que reservaram para ela. Anna Muylaert diz que a princípio o roteiro terminava com Jéssica seguindo inevitavelmente os passos de Val, mas esse destino a incomodava demais, e, depois de várias reescritas, encontrou a solução: Jéssica já chega contestadora, disposta a mudar e quebrar o ciclo, apresentando um choque de gerações (e de contextos políticos, pois Anna começou a ter a ideia do filme 20 anos atrás, e hoje o cenário do país já é felizmente outro).

Jéssica fica na casa dos patrões apenas uns dias, mas às vezes parecia que foram meses, devido ao modo contemplativo com que Anna Muylaert filma. Por um lado, eu amo demais os planos em que os personagens agem fora de quadro, ou quando a ação se passa em outro cômodo, e podemos ver apenas parte dela através da porta. Simplesmente sensacionais esses planos, em que o som continua contando mais do que apenas a imagem enquadrada. Por fim, a cena da piscina é extremamente emocionante, embalada por uma bela trilha sonora. Por mim o filme poderia ter acabado ali mesmo, no ápice. É legal ver mais sobre mãe e filha logo após, e o epílogo acaba sendo muito importante. Porém, aquela cena ali resume a força do filme inteiro, é de uma intensidade incrível. O roteiro de Anna funciona também pelas pistas e recompensas bem amarradinhas. É um roteiro muito bom, aliás, dá pra ver que algumas cenas foram muito bem pensadas. É maravilhoso mergulhar com Val num filme tão bem feito sobre mulheres, feito por uma diretora mulher, e que esteja fazendo tanto sucesso, inclusive internacionalmente.

E é muito triste ver também que Anna Muylaert vem sofrendo muita retaliação pelo sucesso do filme. Ela tem se queixado bastante do tratamento que vem recebendo, até chegar inclusive a um evento lamentável numa recente exibição em Recife, onde dois cineastas locais a interromperam várias vezes no debate e proferiram ofensas machistas. Em uma entrevista ao IndieWire, Anna disse que se for fazer um próximo filme, será sobre machismo, porque chegou a um nível intolerável. E é realmente intolerável que uma cineasta mulher não possa fazer um filme de sucesso em paz, em pleno 2015. Agradeço imensamente à Anna por estar brilhando e abrindo portas para futuras cineastas como nós, e provando que mulheres podem sim fazer filmes sobre mulheres, e ainda fazer muito sucesso!