Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

MULHERES SILENCIOSAS: BRILHO DE UMA PAIXÃO

Ainda, ouvir ainda a sua terna respiração,

e assim viver sempre – ou decair à morte.

  • John Keats

Foi apenas em 1878, mais de meio século depois da morte de John Keats, que o público descobriu enfim quem era a misteriosa noiva do poeta e a inspiração para seu famoso poema Bright Star. Frances Lindon casou-se, teve três filhos e morreu aos 65 anos, mas, em 1819 ela ainda era Fanny Brawne ou apenas “my dearest girl” nas cartas de Keats.

Reveladas anos após as mortes de Frances e de seu marido Louis Lindon, as cartas do poeta são consideradas algumas das mais belas escritas na língua inglesa, mas na época em que foram descobertas causaram grande indignação. Keats mostrava faces da sua personalidade que o público não estava preparado para conhecer, sua vulnerabilidade e ciúmes tornavam o idolatrado poeta em um ser humano comum. Essa indignação logo tomou a forma de ódio pelo objeto de afeto de Keats, Fanny Brawne, vista como indigna do seu amor.

As cartas de Brawne para Keats nunca foram encontradas e sabia-se muito pouco sobre como ela correspondia àquela paixão desenfreada, a ideia de que ela era paqueradora e brincava com os sentimentos de Keats foi muito disseminada. É um tanto quanto irônico perceber que as musas dos poetas, aos olhos do público, só possuem valor dentro do poema, no sentido figurado. Uma mulher real, amada profundamente por aquele que é tido como ídolo, nunca seria capaz de chegar aos pés da mulher idealizada do poema. Pois bem. Fanny era real, possuía falhas e nem ao menos se interessava muito por poesia. Talvez por isso Keats tenha se apaixonado por ela, ela amava o John Keats homem, não o poeta, e foi com ele que ela ficou apesar da falta de dinheiro do rapaz – Keats só se tornou célebre após sua morte – e da doença que assolou os últimos anos da sua vida.

A terrível opinião pública sobre Fanny só começou a se alterar décadas depois da descoberta das cartas, com a publicação das cartas da própria Fanny para a irmã de Keats, que demonstravam a firmeza e constância de seu afeto (Estrela brilhante! Queria eu ser constante como sois). Ela passou muitos anos de luto depois da morte do noivo e guardou as cartas dele consigo até a sua morte. Não é de se admirar, então, que Jane Campion, que até então fizera filmes de cunho abertamente feminista, escolhesse fazer um filme que, apesar de aparentar ser um simples romance de época, fizesse parte da tendência de restaurar a reputação de Fanny Brawne perante a História.

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Minha querida Menina,

Neste momento eu me posicionei para escrever alguns belos versos. Não posso prosseguir com nenhum grau de contentamento. Preciso escrever para ti uma ou duas linhas e ver se isso vai me auxiliar a tirar-te da minha Mente mesmo que por pouco tempo. Pela minha Alma, não consigo pensar em nada além de ti – O tempo em que eu era capaz de aconselhar-te e advertir-te contra a desalentadora manhã da minha Vida passou – Meu amor me tornou egoísta. Eu não posso existir sem você – Eu me desleixo de tudo menos de quando te verei de novo – minha Vida parece parar aí – eu não vejo além. Você me absorveu. Tenho a sensação no presente momento como se eu dissolvesse – Eu estaria extraordinariamente infeliz sem a esperança de ver-te em breve. Eu temeria estar distante de ti. Minha doce Fanny, teu coração nunca mudará? Meu amor, mudará? Não há limite para o meu amor – O teu bilhete acaba de chegar – Eu nunca posso estar ‘mais feliz’ longe de ti. É mais rico que um navio de pérolas. Não me ameace nem de brincadeira. Eu já me assombrei que Homens pudessem morrer Mártires pela religião – Estremeci em razão disso. Eu não estremeço mais. Eu poderia ser um mártir pela minha Religião. O Amor é minha religião. Eu poderia morrer por ele. Eu poderia morrer por ti. Meu Credo é o Amor e tu és o único dogma. Tu me arrebataste por um Poder ao qual não posso resistir; e todavia posso resisti-lo até ver-te; e desde quando te vi tenho me empenhado em “argumentar contra os argumentos do meu Amor”. Não posso mais fazê-lo – a dor seria desmedida. Meu Amor é egoísta. Não posso respirar sem ti.

Teu para sempre

John Keats

Em Brilho de Uma Paixão – Bright Star, no original – Campion conta a história do turbulento romance de John Keats e Fanny Brawne, desde seu primeiro contato até a morte de Keats de tuberculose aos 25 anos. Ou talvez fosse mais preciso dizer: desde quando Fanny conheceu John até seu luto após a morte do noivo.

Sabemos da morte de Keats, mas vemos apenas a reação de Fanny ao fato, ilustrando a intenção de Campion: é a hora de conhecer o lado de Fanny da história. Muito foi escrito sobre Keats, sua vida, trabalho e doença esmiuçados à exaustão. Mas o que sabemos sobre a mulher que o inspirou a escrever? O que sabemos sobre sua espera? Sua vida doméstica, seus desejos e planos para o futuro? Nunca saberemos ao certo as respostas para todas essas perguntas. Campion nos conta o pouco que se sabe e preenche as lacunas com lirismo e beleza dignos dos Românticos.

Passamos os três anos entre 1818 e 1821 em Hampstead, onde Fanny mora com sua mãe e dois irmãos mais novos e onde conhece Keats. Assim como o jovem poeta, Fanny também procura escape criativo e o encontra na costura. O filme é permeado pela vida cotidiana dos Brawnes, as aulas de dança dos três irmãos, bailes, caminhadas pela floresta; a beleza do dia-a-dia e da natureza é capturada com pouco movimento, por vezes, estática, lembrando pinturas bucólicas.

O mundo exterior, tanto a calmaria quanto as tempestades, complementam os sentimentos despertados pelos amantes. O início tímido do relacionamento é acompanhado por muitas cenas interiores, uma luz acinzentada. Quando somos confrontados com sentimentos violentos pela primeira vez, Keats encontra-se encharcado no meio de uma tempestade, desolado pelo seus ciúmes e acompanhado por trovões. Ao longo de todo filme o interior e o exterior brigam por dominação, as janelas são portais de contemplação para o mundo de fora e conforme o romance floresce, somos cada vez mais mais levados pela natureza. Em determinado momento, Fanny decide começar uma fazenda de borboletas dentro do próprio quarto em razão de uma carta de John.

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“Eu quase desejo que fôssemos borboletas e vivêssemos apenas três dias de verão. Três dias como estes eu poderia preencher com mais deleite do que cinquenta anos comuns poderiam conter.”

A descoberta da doença de Keats marca a vitória dos espaços interiores. Ben Whishaw interpreta Keats com tamanha melancolia e vulnerabilidade que por vezes eu me pergunto se ele não deveria desistir de qualquer outro papel que não seja de um poeta romântico que morre antes dos 30 anos de idade. Sua atuação é marcante o suficiente para que o protagonismo de Fanny, interpretada por Abbie Cornish, seja equilibrado. Contudo, ao final, Whishaw não pôde dizer as últimas palavras do poeta (Não respire em mim, ela vem como gelo), proferidas em Roma e longe de todos seus amigos e de sua noiva. É Fanny quem vemos, andando pelo bosque com lágrimas nos olhos recitando o poema que ele escrevera para ela.

Sabemos muito pouco sobre Fanny Brawne, e sua história merece ser contada. Precisamos contar as histórias das mulheres silenciosas, que já não podem se defender. Das musas, das amantes, das mães, que sempre apareceram na História em função de algum grande homem cuja vida parecia mais importante. Precisamos de mais Fanny Brawnes restituídas ao seu lugar de direito. Ainda sabemos pouco sobre ela, mas já é um começo. Sabemos que ela amava costurar, que tinha dois irmãos mais novos, que gostava de festas e que ela amou profundamente um certo John Keats que, por acaso, veio a ser um dos grandes poetas ingleses.

RIVALIDADE E FORÇA FEMININA: COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

Esse filme mexicano de 1992 foi dirigido por Alfonso Arau é adaptação de um livro homônimo escrito por Laura Esquivel. Conta a história de Tita (Lumi Cavazos), uma menina que ao nascer foi designada para cuidar da mãe (Regina Torné), como parte de uma tradição da família. Por isso, Tita não poderia se casar, mesmo assim, ela se apaixona por Pedro (Marco Leonardi) e é correspondida. A mãe, para impedir que os dois namorem, oferece a mão de Rousaura (Yareli Arizmendi), irmã de Tita para Pedro, que aceita no intuito de morar perto da amada. Assim, Tita tem de viver na mesma casa que os dois, escondendo seu amor. Além de Tita e Rosaura, mamá Elena, a mãe, tem mais uma filha, Gertrudes (Claudette Maillé), que foge e acaba se tornando a líder do exército revolucionário. O filme tem uma relação bem forte com a cozinha, local onde Tita nasceu e passou a maior parte da vida. Além disso, os sentimentos reprimidos da protagonista se concretizam e tomam forma por meio da comida.

Bom, vamos por partes, apesar de ser um filme com mulheres independentes e de família matriarcal (mamá Elena chega a dizer para o padre que “os homens não são tão importantes assim” quando ele a questiona sobre a falta de um em casa), ainda há uma grande valorização do amor Romântico (com letra maiúscula e direito a todos os clichês do Romantismo mesmo) e noção de que as mulheres de bem são as que sabem cozinhar e cuidar da casa. De fato, o filme separa as mulheres “para casar” e as “vadias”, algo que não fica tão incômodo porque acaba sendo uma crítica a esse modelo e ao pensamento da época. Ainda assim, mostram de maneira ridicularizada as mulheres que não sabem cozinhar, por exemplo. Um ponto positivo é que a maioria das personagens com falas são mulheres, quase todas elas são mulheres fortes e com personalidade, com exceção de Rosaura.

O desejo é quase como uma entidade, presente em todo filme. Assim também é com a repressão. Essas duas entidades se materializam nas personagens Tita e Elena. Tita que não pode viver seu desejo, o transfere para Gertrudes, que ao comer o que Tita cozinha, se sente excitada, se masturba, foge de casa… O desejo é retratado com a metáfora do fogo, é de um incêndio que Gertrudes corre pelada para o colo de seu amado. Gertrudes é uma personagem muito interessante, mas que infelizmente não é explorada na história. Ela volta como “generala” do exército revolucionário, é uma mulher imponente e temida pelos homens que participam da revolução, todos a obedecem de cabeça baixa, mas não sabemos o que ela fez nem por onde andou.

Se por um lado as representações femininas quebram estereótipos, por outro reforçam a noção deturpada de feminilidade ligada dotes culinários e do lar. Também há a manutenção da ideia de rivalidade entre mulheres – disputando um homem, nada novo sob o sol. Porém, essa relação de rivalidade fica restrita a Rosaura e Tita. A maior parte das mulheres no filme se ajudam e se fortalecem. Gertrudes, Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) apoiam Tita, porém sem coragem de se colocarem contra a matriarca. Gertrudes secretamente ensina Tita e evitar uma gravidez, por exemplo. As vizinhas/parentes da família também se mostram favoráveis ao amor de Tita. Uma das relações que mais gostei de ver ser desconstruída foi a relação de mãe e filha. Não existe no filme o amor maternal mágico. Também não existe amor incondicional à mãe. Tita chega a dizer para Elena que sempre a odiou, indo contra o final feliz comum em que as personagens se reconciliam e vivem todas felizes para sempre. Esse é um ponto bem interessante, porque o filme não retrata as mulheres como sensíveis e passivas a perdoar qualquer atrocidade que as acontece. O filme se passa entre 1910 e 1934, no México, então é normal que mostre como as mulheres eram criadas para odiar umas as outras, mas mostra sublimemente como essa criação pode ser burlada e como a união feminina é forte.

O filme não mostra empoderamento feminino nem contesta o papel da mulher na sociedade, mas escolhi falar sobre ele por ter personagens complexas com histórias próprias, que não dependem de um homem para acontecer. Na maior parte do filme, o corpo feminino não é tratado como objeto. Em alguns momentos, o filme sexualiza Tita, mas é interessante o fato de em alguns momentos sexualizar o corpo masculino também. Na verdade, em um momento só, quando Pedro chupa e passa gelo de maneira sensual pelo corpo. Também incomoda um pouco o fato de que o que preocupa Rosaura em relação ao casamento dela não é o fato de ter se aproveitado da situação vulnerável da irmã, mas sim a possibilidade de o marido não a desejar mais por causa de seu peso, seu hálito e seus gases. Fica ainda forte no filme o casamento como único destino para as mulheres. Mesmo Gertrudes, que fugiu e liderou uma revolução, acaba casada e com filha. Vale ressaltar que as mulheres no filme são em maioria brancas, com exceção de Chencha e Nacha que parecem ter origens indígenas.

O filme utiliza alguns recursos do realismo fantástico para construir situações visualmente inusitadas e expor tanto o sofrimento contido quanto a libertação sexual. Após reassistir para escrever essa crítica, me encantei menos que da primeira vez que tinha visto. As mensagens de esperança e de força feminina ainda estão ali, porém muitas problemáticas ficaram mais claras para mim, todas elas relacionadas ao amor romântico (agora com minúscula, mas englobando o Romântico maiúsculo também) e ao papel determinado para as mulheres nesse sistema. Desde crianças, as filhas de Elena são ensinadas a buscar um amor heterossexual como objetivo de vida. São sempre questionadas sobre quando e com quem querem se casar. Quando a filha de Rosaura nasce, uma das primeiras coisas que ouvimos sobre ela é a vontade que o filho do médico tem de se casar com a menina recém nascida. E, fatalmente, os dois se casam.

Até a protagonista se apaixona sem explicações razoáveis. Nunca é mostrada uma conversa sequer entre Tita e Pedro, mesmo assim ela se mostra perdidamente apaixonada pelo rapaz. É como se o amor fosse uma força inexplicável que vai fatalmente atingir a todas as mulheres. Isso fica claro desde o começo do filme, quando Elena diz a Tita que ela não vai poder se casar, Tita, ainda criança, se revolta e fica chateada com a notícia. Permanece a ideia de que, se não for o casamento, não resta mais nada a ela. A própria Elena guarda uma foto de seu amor do passado em um colar em formato de coração, ou seja, na concepção do filme, até a mais fria e rigorosa das mulheres é destinada a amar eterna e incondicionalmente alguém.

Quanto ao título, se refere ao ponto de ebulição da água. É uma expressão usada no México, já que para fazer chocolate a água deve estar fervendo. No livro, essa expressão é usada para demonstrar que Tita estava sempre com raiva das situações que lhe eram impostas, desde seu futuro predestinado, até a indignação com o comportamento de Pedro, porém no filme isso não fica tão claro. Tita é retratada como uma moça tolerante e carinhosa. Provavelmente, no livro, por ser escrito por uma mulher, as perspectivas de amor e a personalidade da protagonista são diferentes.


Ilustração da dominicana Gaby D’Alessandro

6 FILMES PARA ASSISTIR NO DIA DAS BRUXAS

Preparem seus chapéus pontudos, é outubro! Compilamos uma pequena e singela lista para o mais aterrorizante – e divertido – dia do ano com filmes para todos os gostos, desde a comédia musical ao romance e sem deixar de fora, claro, o terror.


 O Thriller

O Silêncio dos Inocentes (1991)

Direção: Jonathan Demme

Famoso por um dos mais memoráveis vilões da história do cinema, O Silêncio dos Inocentes nos traz uma dupla improvável, o psicopata canibal Hannibal Lecter e a ambiciosa, mas ingênua detetive do FBI, Clarice Starling. Juntos, os dois tentam desvendar a identidade de um serial killer conhecido pelo apelido “Buffalo Bill”, que tem esfolado suas vítimas. Ainda mais intrigante que a resolução do crime é a peculiar dinâmica que se desenvolve entre Lecter e Starling, uma intimidade inesperada e fascinante.


O Terror

The Babadook (2014)

Direção: Jennifer Kent

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O filme da australiana Jennifer Kent não só é aterrorizante como também trata de temas  bem espinhosos como a depressão, a maternidade solitária e o luto de forma muito habilidosa. Utilizando-se mais do suspense psicológico do que de sustos baratos, Babadook provoca uma crescente tensão nos espectadores com cada pequeno detalhe culminando num clímax surpreendente. Amantes do terror e do cinema não terão do que reclamar.


O  Romântico

Garota Sombria Anda Pela Noite (2014)

Direção: Ana Lily Amirpour

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Como já falamos anteriormente, esse faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros subverteu tanto o faroeste quanto o terror ao ser protagonizado por uma mulher que é tanto um monstro como uma heroína. Ela desliza com seu skate pelas ruas de Bad City a caça de homens desprezíveis ao longo da noite e ainda encontra tempo para se apaixonar pelo James Dean da cidade ao som de uma trilha sonora de morrer.


O Clássico

Noite do Terror (1974)

Direção: Bob Clark

O filme que começou a tradição da “Última Sobrevivente” nos filmes slashers é surpreendentemente progressivo em comparação aos que o seguiram. Embora a maioria das “Últimas Sobreviventes” sejam moças recatadas e virgens, nossa heroína não só está grávida como também está decidida a abortar e recusa o pedido de casamento do namorado possessivo e desequilibrado, tudo isso enquanto ela e suas amigas são aterrorizadas por um psicopata dentro da sua própria casa.


O Infantil

O Serviço de Entregas da Kiki (1989)

Direção: Hayao Miyazaki

Uma ótima pedida para as crianças – e adultos que não querem ser assustados nesse 31 de outubro – O Serviço de Entregas da Kiki é um belo filme sobre independência e maturidade protagonizado por uma jovem bruxinha que deve deixar sua casa ao completar 13 anos. Junto ao seu gato preto, Kiki conhece várias mulheres que vão ajudá-la na sua jornada de autoconhecimento em rumo ao mudo adulto.


O Musical

The Rocky Horror Picture Show

Direção: Jim Sharman

Que tal destruir paradigmas este Halloween? The Rocky Horror Picture Show nos introduz a um mundo estranho, onde os moradores andróginos do castelo do Dr. Frank-N-Fruter vão apagar todas as concepções monogâmicas e binárias heteronormativas de um jovem casal de noivos. Com passar dos anos e a crescente popularidade do filme, suas sessões à meia-noite em salas de cinema ao redor do mundo ficaram famosas pela participação ativa espectadores, homens e mulheres se vestindo de Dr. Frank,  cientista que desafia qualquer tentativa de enquadrá-lo em um gênero específico.


SOBRE MULHERES QUE USAM XADORES COMO CAPAS: A GIRL WALKS HOME ALONE AT NIGHT

Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.

A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.

A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.

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Sheila Vand como A Garota.

O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.

Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.

Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.

Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.