Não apenas irei encarar. Eu quero que meu olhar transforme a realidade
bell hooks em The oppositional gaze (disponível em português aqui)
De volta a minha infância uma lembrança surge repetidamente: passar dias inteiros assistindo televisão. Sou da geração dos nascidos no início dos anos 1990 antes da popularização dos meios digitais, do advento da Internet banda larga e da possibilidade de se comunicar por redes sociais. E para uma pessoa que cresceu na periferia da cidade de São Paulo, onde os aparatos de lazer públicos sempre foram muito escassos, o medo e a insegurança fizeram com que meus pais tentassem proteger ao máximo a mim e ao meu irmão, logo ficar em casa assistindo TV sempre foi considerada uma atividade segura. Eu cresci assistindo de tudo, sobretudo aos programas da televisão aberta, já que os canais a cabo só chegaram em casa lá no ano de 2005. Era realmente fascinada por aquele tubo transmissor de sons e imagens, me encantava a representação da vida, as emoções que eram capazes de causar e minha rotina era pensada de acordo com a grade televisiva: acordava, tomava café já assistindo desenhos na TV Globinho ou no Bom Dia & Cia, almoçava vendo SPTV, ia para escola e quando voltava conseguia pegar o final de Malhação, emendando as três novelas da noite da Globo e algum reality show ou programa de entretenimento, sendo interrompida apenas para jantar e tomar banho.
A televisão acabava ocupando um espaço central na minha vida, que se materializava na configuração do lar. Ela estava ali, no centro da estante na sala, entre o rádio e as caixas de som de frente para o sofá e sua voz preenchia todos os cômodos do apartamento de 48m² da Cohab I em Artur Alvim. Assistí-la era também um ritual, momento de junção da família, lembro de alguns sábados à noite onde meus tios, tias, primos e primas se reuniam para conversar, comer esfihas e sentar frente à TV, não importava na casa de quem estivéssemos, ela estava sempre ligada, no centro da sala, quase como se conversasse conosco. Adorávamos comentar as novelas, mesmo que presas numa estrutura previsível onde o “bem” normalmente vence o “mal”, elas eram carregadas de emoções e de um certo sentimento de pertencimento bastante dialético. Apesar de serem ambientadas no Brasil, tratar de temas do cotidiano e dirigir-se a “todos” os brasileiros eu não conseguia me ver ali, não completamente.
Eu tenho uma tia, irmã do meu pai, que adorava o Xou da Xuxa e que sempre diz que durante a adolescência tinha vontade de ser paquita, mas como todas as paquitas eram brancas, loiras e com o cabelo liso, ela nunca poderia ser uma. Meu avô paterno era negro e minha avó paterna, apesar da pele clara, tem a boca e o nariz bem largos e o cabelo crespo, assim meus tios, incluindo meu pai, nasceram com tons de pele distintos, mas todos com traços negroides muito marcados. Sou filha de um casamento inter-racial: tenho a pele clara, cabelos carinhosamente apelidado por meu pai por “cabelo de prego” e traços negroides mais brandos. A racialização sempre esteve presente na minha vida, lembro de ser chamada de Medusa na escola, de alisar meu cabelo e de ser preterida pelos meninos porque não estava dentro do padrão branco de beleza e ouvir na escola que tinha “um pé na Senzala”, mas mesmo assim demorei alguns anos para construir minha identidade racial. E a televisão sempre esteve ali, como mediadora desse processo, fazendo-me refletir sobre quem eu era e sobre minha realidade a partir da ausência e da estereotipização.
Quando minha tia dizia que não podia ser paquita porque não era loira eu me perguntava, “Mas por que todas as paquitas da Xuxa são loiras?”, “Por que todas as apresentadoras são brancas?”, “Por que quase não existem personagens negros nas novelas se eu vejo tantas pessoas negras ao meu redor?”, “E por que os personagens negros nas novelas são sempre as empregadas domésticas, os seguranças, motoristas, serventes ou bandidos?”, “Por que a Cohab só aparece no Datena?”, “Onde estão as pessoas parecidas comigo? Onde está a minha realidade dentro desses programas que se dizem nacionais?”.
Para não ser injusta, lembro de duas personagens de programas infantis onde via meninas negras com as quais me identificava: a Biba, no Castelo Rá-tim- bum, programa da TV Cultura e a Pata, na novela Chiquititas, da primeira versão exibida pelo SBT. Eu assistia a muitos programas televisivos e, claro, que não podemos confiar apenas na memória para exercer uma análise mais profunda sobre determinado objeto, mas como posso lembrar apenas de duas personagens infantis negras? Ou melhor, como posso ter crescido com tão poucas narrativas sobre infâncias negras quando metade da população brasileira é negra?
Refletindo sobre essas questões chego a outro ponto em comum entre as personagens Biba e Pata: nenhuma delas eram mostradas em momentos com suas famílias, amigos negros ou frequentando espaços onde a maioria das pessoas eram negras. A escolha em Chiquititas é justificada pelo motor da narrativa, tratavam-se de crianças em orfanato, porém esse tipo de representação dos personagens negros sem nenhuma ligação com qualquer outra pessoa negra é comum em muitas narrativas seriadas brasileiras. As novelas de Manoel Carlos sempre me chamaram muita atenção quando parava para reparar nas personagens mulheres negras e seus lugares na narrativa. Suas novelas têm como marca a presença de uma personagem principal forte, a Helena, e é em volta dela que a história se desenvolve. História de Amor (1995), Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006), entre outras, sempre tiveram como núcleo principal famílias ricas do Rio de Janeiro. Tais tramas costumam girar em torno dos desejos, anseios e desafios de uma elite econômica majoritariamente branca, o que Joel Zito Araújo no livro A Negação do Brasil chama de “visão zona sul das telenovelas”. Em todas essas novelas é possível encontrar personagens negras mulheres na posição de empregadas domésticas que não possuem família ou relacionamentos com outras pessoas negras, ocupando a função de servir e estar à disposição das famílias abastadas.
Em 2009 nós espectadoras(es) fomos apresentadas(os) a primeira Helena negra de Manoel Carlos. Taís Araújo, que já havia inaugurado o marco de primeira protagonista negra com a telenovela Da cor do pecado (sim, deram o nome da novela a associação da pele negra ao pecado), viveu Helena na novela Viver a Vida (2009), uma modelo que enriqueceu com seu trabalho e que se apaixona por Marcos (José Mayer), um homem branco vinte anos mais velho. Ele a princípio era casado com Teresa (Lilia Cabral) e pai de três filhas, mas ao se separar da esposa conhece Helena e casa-se novamente. Este ensaio não pretende se aprofundar no desenvolvimento narrativo da trama, porém uma cena onde a personagem Helena leva um tapa no rosto de Teresa, enquanto está de joelhos desculpando-se por algo que não fez chamou muito atenção. O episódio foi ao ar no dia da consciência negra (20 de novembro) e muitos consideraram que a imagem apenas reforçou o estereótipo de submissão e desumanização das mulheres negras. Recentemente Taís Araújo deu uma entrevista dizendo que após essa novela afundou-se numa tristeza profunda e que a não possibilidade de transformar sua personagem numa mulher realmente forte a fez encarar que tipo de personagem queria ser e que tipo de papéis não queria mais representar.
A ausência e o uso excessivo de estereótipos sobre mulheres negras nas telenovelas televisão estão diretamente ligados a algumas características do gênero. O melodrama televisivo tem como influência os folhetins de jornal, as radionovelas e o melodrama cinematográfico. Tais filmes carregam em si um ideal burguês de sucesso e felicidade, que geralmente estão associados a ascensão social econômica. Possuem valores morais e sociais muito marcados, baseados no cristianismo, na heteronormatividade, no falocentrismo e na brancura como forma de beleza. É comum também ao melodrama os ditos personagens “planos”, ou seja, ou são extremamente bons, ou completamente maus, gananciosos, torpes, burros ou ingênuos. Dessa forma suas ações são regidas por apenas uma de suas características psicológicas tornando a narrativa bastante previsível. Dentro dessa estrutura enrijecida o uso de estereótipos se dá com muita frequência e são poucas as personagens, sobretudo as mulheres negras, cujas personalidades são regadas de contradições e humanização.
Na teledramaturgia brasileira tem sido dado às mulheres negras poucos espaços, apesar de fazermos parte de uma parcela significativa da população brasileira, quando não estamos ausentes nesses programas, ocupamos o papel da empregada doméstica, da mulher sensual (a “mulata”), da mulher ligada ao tráfico de drogas, da escrava ou da cuidadora. Só recentemente, em alguns programas seriados de TV aberta, mulheres negras foram representadas como pessoas fortes, com ambição, dotadas de conhecimento e agência de suas ações, como o caso de Isabel (Camila Pitanga) na novela Lado a Lado (2012) e mais recentemente Michele (Taís Araújo) em Mister Brau (2015). Entretanto, é importante olharmos mais profundamente para a ausência e estereotipização das mulheres negras na trajetória da teledramaturgia brasileira, a fim de elaborar algumas teorias sobre a representação negra e criação de imaginário.
É comum na configuração dos lares brasileiros que a televisão ocupe um lugar central na vida das pessoas, assumindo muitas vezes o papel educativo se pensarmos um contexto de baixa qualidade de ensino público, escassez de espaços de lazer e dificuldade de acesso à bibliotecas, teatros e cinemas. Ela enuncia comportamentos, valores, aponta o que é pauta de discussão ou não, promove alguns julgamentos, formula padrões e cria um universo simbólico estético que diz o que está dentro e o que está fora. Imagens estereotipadas, sejam elas extremamente positivas ou extremamente negativas, cumprem a função de controlar e desumanizar determinados corpos, num processo contemporâneo de colonização e imposição de valores eurocêntricos, no caso da representação das mulheres negras na TV, são imagens extremamente definidas a partir do olhar de um sujeito sob o objeto, o “outro” da narrativa e configuram uma forma de violência não material ou física, mas simbólica.
Crescer assistindo televisão me fez perceber que ora estávamos ausentes das histórias, ora éramos tidas como inferiores. E me interessa refletir acerca dessa experiência espectatorial, pois olhar para essas imagens me fez ter consciência de quem sou a partir do olhar de um sujeito narrativo quase imperceptível.
“Essas imagens criam o que se chama de um estado de despersonalização ou de alienação. Isto é, elas forçam o sujeito negro a desenvolver uma relação consigo próprio através do sujeito branco. E também forçam o sujeito negro a olhar para si próprio através da perspectiva do outro. Enquanto eu caminho na rua e olho para estas imagens, eu sou não só confrontada com o ato de alienação, pois eu vejo aquilo que eu não sou, eu vejo-me a mim ou a minha identidade ser representada de uma forma que eu não sou. Mas, sou forçada a olhar para mim através da perspectiva dominante do sujeito branco. E isto é muito problemático, isto é a base da alienação, trauma e decepção”.
Esse fala da artista portuguesa Grada Kilomba, que tenciona as questões identitárias e de representação em seus trabalhos, carrega o conceito de dupla-consciência, desenvolvido pelo sociólogo, historiador e ativista W. E. B. Du Bois. No livro As almas da Gente Negra publicado em 1903, Du Bois trata da experiência da pessoa negra americana na tomada de consciência de sua identidade a partir da rejeição do próprio ser, partindo da metáfora de que o negro seria como o sétimo filho, nascido com um véu e dotado de uma clarividência, num mundo que não o permite produzir uma verdadeira autoconsciência, mas sim entender-se a partir da revelação do outro, carregando dois ideais conflitantes: a experiência de ser um negro americano em um país que rejeita as pessoas negras.
Dessa forma, ser negro é tornar-se, é compreender-se a si mesmo a partir da métrica de um mundo que o contempla com prazer e desprezo. A valorização de uma cultura e de uma estética onde alguns sujeitos são mais pertencentes do que outros pode gerar um sentimento de não-pertencimento, de não-lugar, onde aquele que é preterido acaba por ter como referência a adoração de simbologias que o excluem. Recentemente tive uma conversa com minha prima, outra mulher negra, onde pude perceber mais concretamente essa dinâmica. Tanto eu quanto ela compartilharmos um processo de não aceitação durante a adolescência: não conseguimos nos olhar no espelho. Encarar nossa imagem era algo complicado e confuso, pois éramos permeadas de imagens negativas sobre mulheres negras, onde o padrão brasileiro de beleza é magro, loiro, cisgênero, branco e de preferência com cabelo liso, logo olhar-se no espelho e encontrar pontos que gostássemos era doído e o mais fácil era não se encarar.
A construção das identidades e o reconhecimento num contexto de diáspora contemporânea é um processo ambivalente, onde existe um entrelaçamento entre as fronteiras particulares negras. Entendo aqui diáspora sobre o prisma subjetivo, simbólico, uma metáfora para um tipo de consciência, modo de produção cultural, experiência intelectual e construção identitária. Um deslocamento contemporâneo, que é estético, político e cultural e que acontece no “entre lugar”, espaços de fronteiras culturais, intervalo entre as individualidades independentes onde podemos ver a iluminação e discussão dos problemas das diferenças, ou melhor, a “sobra” desses lugares onde surge a diversidade não contemplada pelas categorias hegemônicas.
Nesse novo contexto a discriminação racista e colonial das “metrópoles” tomam corpo na passagem de ideais e valores por meio de signos. Logo, re-trabalhar formas de subjetivação e positivação, a partir da quebra de estereótipos, por exemplo, deve culminar no desenvolvimento das potencialidades da vida social, participativa, solidária e cooperativa tendo a estética afro-diaspórica como uma ferramenta política, presente nas diferentes esferas de poder, que leve em consideração uma inserção ambivalente na modernidade.
No ensaio The oppositional gaze (1992), bell hooks parte da metáfora do olhar de enfrentamento do escravizado sob seu senhor para tratar do desenvolvimento de uma determinada agência, que surge a partir da habilidade de manipular o enfrentamento em face das estruturas de poder. Entendendo o poder como um sistema de dominação que pretende o controle, é a partir das margens que surge a brecha para a insurgência da agência. A televisão como um meio de comunicação em massa para as massas funciona como um sistema de conhecimento e poder que reproduz e pretende manter a supremacia branca e encarar essas imagens é encarar a negação da representação negra. O espectador, frente às imagens, compreende suas camadas de significado a partir de sua experiência, dessa forma, marcadores de gênero, raça e classe podem influenciar a maneira como essa subjetividade é preenchida pelo espectador e levam a diferentes interpretações do mesmo material.
Entretanto, não pretendo afirmar que todas mulheres negras frente às imagens de mulheres negras nas telenovelas irão necessariamente desenvolver um olhar de enfrentamento e construir sua identidade pela racionalização do não reconhecimento de si nessas imagens. Não é uma consequência direta, mas sim uma insurgência que pode acontecer e que está mediada por alguns fatores externos como a família, a escola, o trabalho, suas relações pessoais, sociais e outros.
A conversa com minha prima sobre olhar-se no espelho surgiu a partir do momento que assisti ao filme Kbela (2015), da jovem cineasta carioca Yasmin Thayná, onde num momento de auto cuidado e afeto entre duas personagens elas conversam sobre a experiência de não conseguir olhar-se no espelho e encarar a si mesma. Em 2010, a cineasta paulista Juliana Vicente escreveu e dirigiu o filme Cores e Botas, que narra a desilusão de uma criança negra que sonhava em ser paquita, mas que por não ser loira, é preterida apesar de seu talento, como a história da minha tia. Trabalhos como os de Yasmin Thayná, Juliana Vicente, Renata Martins, Viviane Ferreira, Everlane Moraes, Adélia Sampaio, Lilian Solá Santiago, dentre outras, roteiristas, diretoras, fotógrafas, montadoras e técnicas de som, todas negras, que surgiram na última década me ajudaram a construir um ponto de vista questionador sob as narrativas hegemônicas. Além de estarem construindo uma produção cinematográfica de enfrentamento, onde o objeto da estrutura narrativa passou a ser o sujeito, o autor – no caso autora – de suas próprias experiências.
Crescer assistindo televisão me fez entender a mim mesma como uma pessoa que possui múltiplas identidades que me foram reveladas pela ausência de pessoas parecidas comigo nas narrativas ditas “nacionais” e pela rejeição das imagens estereotipadas, entendendo a mim e a minha realidade sob a ótica do outro. Por mais que as telenovelas estejam sempre em busca da inovação, regidas, até certo ponto, pelas vontades do público e que eventualmente cedam espaços para narrativas positivas sobre mulheres negras, quando analisamos o todo ainda há um caminho muito longo a ser percorrido, e considerando a estrutura de poder a qual a televisão está submetida, penso que talvez não seja realmente de interesse a construção de narrativas que busquem a emancipação das mulheres na perspectiva antirracista. Porém, há de se considerar as brechas, tanto na relação espectador-telenovela, quanto na absorção de profissionais negras pelas grandes emissoras, mas sobretudo no circuito independente, que abrem caminhos para a construção de novas representações das vidas negras.
Referências
ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo, SP:
Editora SENAC, 2000. 323p;
hooks, bell. The oppositional gaze. IN: Reel to real: race, sex, and class at the movies. New
York; London: Routledge, c1996. 244 p.;
DU BOIS, William. As almas da gente negra. Co-autoria de Heloisa Toller Gomes. Rio de
Janeiro, RJ: Lacerda, 1999. 322 p.;
KILOMBA, Grada. Entrevista com Grada Kilomba, #1 Imagem e Alienação. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tzYljBG5H-c>. Acessado em 15 de
agosto de 2017.
Memória Globo. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/>. Acessado em 15 de
agosto de 2017.
REIS, Marilise. A Diáspora e o Movimento Social das Mulheres Afrodescendentes das
Américas. Florianopólis, SC: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais,
2011.16p.