Eu esqueci a suavidade porque ela não me serviu.
Catherynne M. Valente
Eu tenho falado de filmes de terror com certa frequência nos últimos meses e prometo que não é intencional, é só que é muito fácil contar histórias aterrorizantes protagonizadas por mulheres. Até pouco tempo atrás, esse protagonismo significava sermos mortas, estupradas, perseguidas e intimidadas, e, embora isso ainda aconteça, em alguns poucos e preciosos filmes, a moral se inverteu. Não somos mais aterrorizadas por nos comportarmos mal, nos comportamos mal por sermos aterrorizadas e essa inversão faz toda a diferença.
Mulheres que transgridem determinados preceitos e são castigadas por isso reforçam nossos valores, enquanto mulheres-monstros produto de uma sociedade tóxica nos fazem questioná-los. A Bruxa está, claramente, posicionada nesta segunda categoria, então, não é muito difícil entender por que, na sessão lotada em que assisti o filme, as reações – comunicadas com bastante ênfase – foram de negativas a indignadas.
Thomasin, a jovem protagonista do filme, é tratada desde o início como um tipo de mercadoria por sua família. Quando essa “mercadoria” começa a se mostrar inconveniente, seu despacho é abertamente discutido pelos pais da menina. A inconveniência que ela apresenta tem muito pouco a ver com qualquer comportamento que ela apresenta, e sim do que é projetado sobre ela. Thomasin é repetidas vezes acusada por membros da sua família pelas ações daqueles a sua volta. O pai vende uma taça de prata da mãe e deixa a culpa recair sobre a filha quando a ausência do objeto é sentida. A mãe está convencida de que ela está seduzindo o irmão, mas todas as vezes que vemos Caleb olhar para Thomasin com desejo, ela não parece estar ciente do fato. A primeira vez que acontece, ela está dormindo. Fica claro que o próprio corpo da menina, que começa a mostrar sinais de estar alcançando maturidade, é o seu maior pecado. “O inferno é uma garota adolescente”, afinal de contas.
Os problemas domésticos somados a acontecimentos sobrenaturais que acometem a família acarretam na histeria que leva as acusações contra a filha mais velha se tornarem em violência. “A Bruxa” que daria título ao filme é apresentada quase como um mau neutro, onipresente e imbatível. O espectador, consciente da inocência de Thomasin, é levado a observar os pais da menina como os verdadeiros vilões da história.
Ao conversar com um amiga, depois de termos assistido a Cinco Graças, falamos brevemente sobre a cena em que uma das meninas é levada ao hospital para que seja comprovada sua virgindade. Antes que o médico a examine, ele pergunta se ela já fez sexo e ela diz que sim, com várias pessoas. Após o exame, ele questiona a mentira, ela responde com um ar cansado que beira o deboche “quando digo que sou virgem, ninguém acredita”.
Cinco Graças é um drama que se passa na Turquia contemporânea, A Bruxa, nos Estados Unidos do século XVII, mas a conclusão que as adolescentes de ambos os filmes chegam não é muito diferente: estamos condenadas de uma forma ou de outra. Chega a ser um pouco trágico que esses dois filmes – o primeiro, um drama realista, o segundo, um filme de terror sobrenatural – encontrem pontos de convergência, mas o que torna A Bruxa tão apavorante, como em qualquer bom filme de terror, é justamente o fato de sua alegoria ter raízes muito reais no mundo do espectador no momento em que ele assiste. E no caso d’A Bruxa especificamente, essas raízes estão fincadas há alguns milênios: não existe monstro mais terrível do que uma mulher. Mas essa é a visão simplista a que já fomos expostos repetidas vezes, A Bruxa vai além e diz: não existe monstro mais poderoso do que uma mulher que já nasceu condenada e se entrega à perversidade de que a acusaram desde o início.
Conte uma mentira vezes o suficiente e ela se torna realidade.
(spoilers a seguir)
No final do filme, vemos toda família de Thomasin assassinada. A menina, ensanguentada, mas ainda inocente, toma o que parece ser sua primeira decisão autônoma. Ao assinar o livro do demônio, ela entrega sua alma e sentimos um alívio que se reflete no rosto extasiado de Thomasin em perceber que ela é, afinal, livre.
Ao sair do cinema, satisfeita, comecei a questionar as minhas próprias conclusões sobre a obra. Mas que liberdade é essa? Se, no final de tudo, ela não tinha nenhuma alternativa? Caso tivesse permanecido na casa isolada, morreria de fome antes do fim do inverno, se voltasse para o vilarejo, seria condenada pelo assassinato da família.
Que liberdade é essa em que falamos quando falamos em sexo livre nos dias de hoje, em que nossos corpos, ora, necessariamente castos, ora, necessariamente profanos, continuam a ser alvo de regras criadas por outras pessoas? De que liberdade estamos falando quando dizemos a mulheres mulçumanas que elas devem retirar seus véus para serem livres? Por que, ao invés de dizer o que uma mulher deve fazer, não perguntamos a ela como ela deseja viver?
A Bruxa, no final das contas, não é um filme sobre empoderamento feminino, mas não tenciona ser. O fato de seus diálogos terem sido retirados de documentos históricos sobre bruxaria serve de lembrete: a realidade e o terror, quando diz respeito a vivência feminina, são quase indistinguíveis e a liberdade ainda está muito, muito distante.
Preparem seus chapéus pontudos, é outubro! Compilamos uma pequena e singela lista para o mais aterrorizante – e divertido – dia do ano com filmes para todos os gostos, desde a comédia musical ao romance e sem deixar de fora, claro, o terror.
O Thriller
O Silêncio dos Inocentes (1991)
Direção: Jonathan Demme
Famoso por um dos mais memoráveis vilões da história do cinema, O Silêncio dos Inocentes nos traz uma dupla improvável, o psicopata canibal Hannibal Lecter e a ambiciosa, mas ingênua detetive do FBI, Clarice Starling. Juntos, os dois tentam desvendar a identidade de um serial killer conhecido pelo apelido “Buffalo Bill”, que tem esfolado suas vítimas. Ainda mais intrigante que a resolução do crime é a peculiar dinâmica que se desenvolve entre Lecter e Starling, uma intimidade inesperada e fascinante.
O Terror
The Babadook (2014)
Direção: Jennifer Kent
O filme da australiana Jennifer Kent não só é aterrorizante como também trata de temas bem espinhosos como a depressão, a maternidade solitária e o luto de forma muito habilidosa. Utilizando-se mais do suspense psicológico do que de sustos baratos, Babadook provoca uma crescente tensão nos espectadores com cada pequeno detalhe culminando num clímax surpreendente. Amantes do terror e do cinema não terão do que reclamar.
O Romântico
Garota Sombria Anda Pela Noite (2014)
Direção: Ana Lily Amirpour
Como já falamos anteriormente, esse faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros subverteu tanto o faroeste quanto o terror ao ser protagonizado por uma mulher que é tanto um monstro como uma heroína. Ela desliza com seu skate pelas ruas de Bad City a caça de homens desprezíveis ao longo da noite e ainda encontra tempo para se apaixonar pelo James Dean da cidade ao som de uma trilha sonora de morrer.
O Clássico
Noite do Terror (1974)
Direção: Bob Clark
O filme que começou a tradição da “Última Sobrevivente” nos filmes slashers é surpreendentemente progressivo em comparação aos que o seguiram. Embora a maioria das “Últimas Sobreviventes” sejam moças recatadas e virgens, nossa heroína não só está grávida como também está decidida a abortar e recusa o pedido de casamento do namorado possessivo e desequilibrado, tudo isso enquanto ela e suas amigas são aterrorizadas por um psicopata dentro da sua própria casa.
O Infantil
O Serviço de Entregas da Kiki (1989)
Direção: Hayao Miyazaki
Uma ótima pedida para as crianças – e adultos que não querem ser assustados nesse 31 de outubro – O Serviço de Entregas da Kiki é um belo filme sobre independência e maturidade protagonizado por uma jovem bruxinha que deve deixar sua casa ao completar 13 anos. Junto ao seu gato preto, Kiki conhece várias mulheres que vão ajudá-la na sua jornada de autoconhecimento em rumo ao mudo adulto.
O Musical
The Rocky Horror Picture Show
Direção: Jim Sharman
Que tal destruir paradigmas este Halloween? The Rocky Horror Picture Show nos introduz a um mundo estranho, onde os moradores andróginos do castelo do Dr. Frank-N-Fruter vão apagar todas as concepções monogâmicas e binárias heteronormativas de um jovem casal de noivos. Com passar dos anos e a crescente popularidade do filme, suas sessões à meia-noite em salas de cinema ao redor do mundo ficaram famosas pela participação ativa espectadores, homens e mulheres se vestindo de Dr. Frank, cientista que desafia qualquer tentativa de enquadrá-lo em um gênero específico.
Alguém bate à porta. Baba-dook-dook-dook. Antes que se perceba, ele está na sua casa, no quarto do seu filho, dentro de você. Ele não te deixa trabalhar, dormir ou mesmo pensar.
No filme de Jennifer Kent, somos envolvidos por uma alegoria protagonizada por Amelia, cujo filho, Samuel, nascido no mesmo dia da morte do pai, possui uma estranha obsessão por monstros que começa a se tornar violenta. A estrutura narrativa do filme conta com um recurso bastante eficaz: mãe e filho são reflexo um do outro. Os dois tem pesadelos, dificuldades em seus respectivos ambientes (escola/trabalho) e brigas com familiares paralelamente. A diferença entre eles e o que despista o espectador é a oposição de seus temperamentos. Amelia é uma mulher doce e cansada, Samuel aparenta ser uma criança perturbada com ecos de Kevin Khatchadourian. O uso de paralelos em todos os outros aspectos nos previne sobre o que nos aguarda: mãe e filho trocarão de lugar em algum momento.
Mais que um recurso narrativo, as crescentes pressões sob Amelia fazem parte do cotidiano de muitas mães solteiras. O julgamento dos desconhecidos, isolamento do resto da família, a sobrecarga de problemas na escola e o uso de medicamentos para dormir não são nenhum segredo, e um tema surpreendentemente apropriado para um filme de terror.
A abordagem da maternidade em Babadook merece destaque particular. O filme traça uma linha muito tênue ao representar a monstruosidade de Amelia juntamente a sua humanidade. No começo vemos uma mãe dedicada exclusivamente ao filho, meiga, e paciente. Aos poucos, percebemos que ela possui desejos próprios que estão além de sua identidade como mãe, o que é inaceitável para sociedade em que estamos inseridas, por isso, poderíamos facilmente interpretar esses desejos como a fonte da sua perversidade posterior. Entretanto, não é isso que acontece. O Babadook não é a mãe imperfeita, defeituosa, e sim o medo de sê-la, as expectativas sociais, a depressão e o luto e é isso que a nossa protagonista deve enfrentar para se ver salva ou, ao menos, temporariamente liberta.
Uma garota volta sozinha pra casa à noite. O título do filme associado ao gênero terror pode gerar uma série de imagens perturbadoras nas mentes das possíveis espectadoras do filme. Passos em meio ao silêncio da rua, seus próprios passos mais apressados, os dentes da chave deixando marcas fundas na palma da mão que você não pode evitar apertar, o abrir apressado da porta do carro e o suspiro de alívio que se deixa escapar enquanto você acelera, sem nem colocar o cinto, a possibilidade de uma batida de carro parecendo quase risível quando comparado ao som daqueles passos atrás de você.
A Girl Walks Home Alone at Night é, por vezes, esse suspiro de alívio quando se percebe que está segura.
A diretora e roteirista do filme, Ana Lily Amirpour, o categoriza como “Iranian Vampire Western Spaghetti”, um faroeste spaghetti iraniano sobre vampiros. O subgênero spaghetti do western é como ficaram conhecidos os faroestes de baixo orçamento feito por diretores italianos nos Estados Unidos. Uma das grandes características dos filmes do western spaghetti é o “Herói sem nome”, um homem de poucas palavras cuja moral ambígua lhe dá o status de anti-herói.
O filme subverte tanto a imagem mental criada pelo título quanto o gênero dado pela própria diretora quando descobrimos que em vez de um herói sem nome, temos uma heroína, interpretada por Sheila Vand, e o fato de ela andar sozinha à noite diz mais sobre falta de segurança dos outros do que dela própria, uma vampira justiceira. Nossa anti-heroína desliza pela cidade num skate roubado, com seu xador – veste feminina iraniana – esvoaçando atrás dela como uma capa ou as asas de um vampiro e utiliza métodos nada ortodoxos ao zelar pela segurança de pessoas na cidade, como drenar o sangue de um cafetão e intimidar um garoto a ser um “bom menino” caso não queira ser brutalmente assassinado por ela.
Além dessas reviravoltas bem vindas, o filme surpreende, entre outros aspectos, pela fotografia – o uso do preto e branco é um recurso narrativo bem sucedido e cujo efeito em algumas cenas é de uma beleza notável, com focos de luz isolados criando uma atmosfera misteriosa e sombria – e pela trilha sonora, essencial para a criação do ritmo do filme. Em algum nível, a protagonista soturna comunica mais através das músicas do que por palavras, o que é um dos motivos pelos quais o romance entre ela e o outro protagonista do filme, interpretado por Arash Marandi, funciona tão bem.
Ao longo do filme, não podemos deixar de notar elementos e influências da cultura pop ocidental, o que faz sentido, afinal a diretora, nascida na Inglaterra, criada nos Estados Unidos e filha de persa, realizou o filme na Califórnia. Em entrevista para o jornal britânico The Guardian, ela admite que, embora ela veja o filme como um conto de fadas iraniano, ela ainda é “muito americana” e, apesar da maioria das músicas do filme serem em pársi, é justamente em uma das cenas mais delicadas do filme, quando ainda não sabemos se a protagonista deseja matar ou seduzir Arash, que nós somos levados ao universo pop mais familiar aos espectadores ocidentais com a música Death da banda inglesa White Lies.
Ao ver o filme e ler a entrevista de Amirpour, não posso evitar o fascínio que eu sinto pelas circunstâncias que o tornaram possíveis, um mundo em que uma diretora, tanto americana quanto iraniana, odeia falta de liberdade, mas ama a cultura do país de origem dos seus pais, explora influências ocidentais e orientais e cria histórias sobre mulheres que usam xadores como capas e superpoderes para defender prostitutas.