“Quando chegam os antropólogos, os Deuses saem.”
— Provérbio haitiano.
“Eu não quero falar sobre. Eu quero falar perto de.”
— Trinh T. Minh-ha, em Reassemblage.
Em um livro chamado “Men Explain Things to Me”, Rebecca Solnit questiona o papel da mulher enquanto pesquisadora e estudante, e de que forma as opressões sistêmicas patriarcais minam (quando não sumariamente fazem sumir) todo o nosso comportamento perante a sociedade. Disse ela:
A crítica de Solnit é voltada a uma interdição da experiência do Contar e do Fazer que nos constituem enquanto pessoa, e, sobretudo, quanto ao contar histórias apesar de. Nesse sentido, há Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita que imigrou para os Estados Unidos em 1970 e fez do seu fazer enquanto artista algo multiforme: cineasta, artista visual, escritora, teórica, crítica.
Em seu primeiro trabalho, Reassemblage (1982), Minh-ha abre um filme sobre o Senegal, um país para ela até então desconhecido, dizendo que não gostaria de falar do terceiro mundo enquanto um experimento etnográfico exótico, mas sim, falar ao lado dele. Como parte dele enquanto imigrante, mulher asiática, fugida da guerra, perguntando ao espectador o que é que tem de ser dito, se o discurso documental hegemônico prioriza o discurso univocal? O que se espera da imagem cinematográfica e da representação de sociedades não ocidentais? Se a ideia de pertencimento, nação, território, lar nos parece ser uma garantia elementar dentro da civilização ocidental, como articular um discurso imagético e vocal sobre civilizações orientais em deslocamento constante? Como contar a história de quem sempre nos conta histórias? Quais são os limites do real, documental, ficção, fato, analogia e assimetria? É possível retratar um único Outro como a voz de um povo por inteiro? O que é o sólido e o que se desmancha no ar?
Para essas e tantas outras questões, Trinh T. Minh-ha, em 1989, faz Surname Viet Given Name Nam (traduzido em português para Sobrenome Viet Nome Nam), um documentário híbrido: imagens de arquivo, citações, canções, split screens, depoimentos de mulheres médicas, donas de casa misturadas com contos de fundação, super-exposições, preto e branco, discursos entrecortados e sobrepostos, interrupções. Botar-se ao lado botando na mesa milhares de imagens com milhares de vozes. O documental como lugar do real vivido.
I) Imagem:
“Jump cuts, pans irregulares, inacabadas, insignificantes, rostos partidos, corpos, ações, acontecimentos, ritmos, imagens ritmadas, fora do tom, discordantes, cores irregulares, vibrantes, saturadas ou muito brilhantes, enquadrando e reenquadrando.”
— Trinh T. Minh-ha em When The Moon Waxes Red
Ao princípio, Trinh T. Minh-ha articula uma forma documental que nos parece a mais usual quando tratamos do gênero e sua liminaridade entre documentário e etnografia: uma pesquisa de campo em que cinco mulheres são entrevistadas sobre a condição da mulher vietnamita em uma sociedade em transição. Mulheres em constante fuga e abdicação, contando pequenos trechos do cotidiano, a composição da família patriarcal, as opressões, prisões, o entrelugar entre o comunismo e o capitalismo pós-guerra do Vietnã, um estado de sítio e desconfiança civilizacional, a resiliência como forma de esperar por uma sociedade que está em constante vir a ser, mas não é. Um filme cuja mise-en-scène aparenta ser comum ao documentário — cabeças falantes se dirigindo a um entrevistador extraquadro — mas isso somado aos diversos discursos em que a imagem se mistura e se entrecorta, como um caleidoscópio da cultura vietnamita, uma miríade de vozes e imagens, danças e sons se mesclando às cartelas de texto. É engendrada uma rede de discursos que se tornam um só; o de mulheres sem alma, no life, no self. Homens que não voltam da guerra. Mulheres que se curvam. Dúzias de médicas cruzando pontes a pé. Nadando mares. Traçando rotas de fuga com os filhos nos braços.
Em aparência, a tendência ocidentalizadora é tomar o documental como uma única voz dotada de um único discurso. E, ainda mais, se tratando de uma matéria filmada em uma ideia de terceiro mundo, tudo se torna objeto de exotismo. Mas isso não é o caso aqui. Não se trata de um documentário. Minh-ha deixa claro: “Alguns chamam de Documentário. Eu chamo de Não Arte, Não Experimento, Não Ficção, Não Documentário. Dizer algo, ou nada e deixar que a realidade adentre. Se capturar. Isso, eu sinto, não há como se render. Os contrários se encontram e se cruzam e eu trabalho no limiar de todas essas categorias.” A multiplicidade das imagens é esse limiar, o limiar entre fato e ficção, palavra e silêncio, política e representação; em certo momento, a narradora nos diz: “O cinema que nos é dado como hegemônico é formado de efeitos especiais. Tal como a guerra.” Presenciamos a construção de uma sociedade em construção por imagens em construção que se retroalimentam. O que haveria de errado nisso?
Logo, não existe um caráter documental no cinema; tudo que há é o real e dele não existe mentira — tudo é verdade ou não é cinema, tampouco vida. O que existe é uma linha entre a realidade e a estetização de uma realidade. Estetização essa, comum no cinema hollywoodiano; a exposição da matéria filmada enquanto material de vivissecção pura e simples. O prazer puramente criado e articulado por uma sociedade visual por natureza — a sociedade que cria e recria imagens, cria e recria mulheres, cria e recria a guerra incessantemente para satisfazer um tipo de prazer desprazeroso; o prazer do desastre, da guerra, da estetização da desgraça. A exploração da matéria filmada para lançar o olhar com condescendência, acreditar que o olhar dominante é o único possível em termos de discurso.
Mas não estamos falando aqui de estetização, e tampouco de hegemonias possíveis. E Minh-ha, após noventa minutos dos 108 de filme, abre o seu jogo: Se isso é uma não arte e um não experimento e o cinema é feito de efeitos especiais, que Surname Viet Given Name Nam também o seja. Ela nos diz que há uma verdade nos depoimentos das cinco mulheres, mas nos é retida, selecionada e deslocada. São usados critérios como idade, profissão, região. Os discursos são cortados e recortados. Entre a linguagem interior e a verdade exterior, temos a espontaneidade das mulheres contando tantas histórias com naturalidade. Histórias essas que não são as delas. Elas são não atrizes, mulheres vietnamitas que imigraram para os Estados Unidos e, decidiram por bem, participar do filme como uma forma de desmistificar a identidade asiática e vietnamita como una – pois essa é uma tendência ocidentalista de massificação da cultura asiática como um evento feérico e exótico — denunciar as opressões das que ficaram em seu país de origem e interditar o discurso de que o sacrifício e a anulação enquanto mulher e ser ativo na sociedade são a única forma de sobrevivência. E esse é dos trunfos, o maior trunfo de Surname Viet Given Name Nam: dar a possibilidade de ouvir os dois lados da matéria filmada. Os lados de quem atravessou oceanos para contar a história de quem ficou.
II) Discurso:
“Nós somos exibidos como gabinetes de curiosidades na Segunda, exaltados como cultura na Terça, denunciados como imorais e insalubres na Quarta, reapresentados como experimentos científicos na Quinta, celebrados por algum motivo estético obscuro na Sexta, esquecidos no Sábado e revistos como pitorescos no Domingo. Nós somos mal interpretados pela crítica especializada e estamos sujeitos ao imperialismo espiritual, nossos esforços mais sagrados são tomados como objetos de escambo, nossas histórias traçadas, nossa psique analisada, e quando todos se aproveitaram de nós de todas as maneiras, somos expulsos de nossas terras natais, de nossas casas modestas e colocados em arranha-céus cromados.”
— Maya Deren em The Divine Horsemen.
O ponto central de Surname é trazer para o primeiro plano questões que vão além da superfície do material filmado; a ideia de uma representação do irrepresentável – no sentido daquilo que não está projetado em grandes salas de cinema como protagonista. Ao tratar da mulher vietnamita encoberta por imagens e referenciais que as sufocam, nas linhas que se entrecruzam entre o tradicional e o ocidental colonizador, os padrões estabelecidos de comportamento esperados para as mulheres seguem os mesmos, tanto para as que cruzaram o oceano quanto para as que ficaram. Em um trecho do filme uma das personagens nos diz “tudo o que temos é a esperança de uma sociedade melhor, mas o sol nasce todos os dias e permanecemos no mesmo lugar”. Entre o capitalismo e o comunismo, abre-se uma fenda que engole as mulheres igualmente: entre as mães solo, donas de casa, médicas, elas falam em espíritos sem vida e sem individuação.
Porém, lado a lado com mulheres que se aniquilam, a estrutura fílmica se vale da citação direta de The Tale of Kiều, um épico fundador escrito por Nguyen Du no século XIX, considerado como um conto norteador da moral e da construção histórica da sociedade vietnamita. Kiều, uma jovem, se vê refém das circunstâncias familiares e, para salvar a família, tem de se sacrificar enquanto mulher pura e casta e passar por privações que a deixam à margem da sociedade. O arco de Kiều é marcado por uma espécie de redenção à revelia, pois salva a família e não salva a si mesma, indo parar numa espécie de claustro. A ideia de uma mulher que se desprende dos papéis socialmente impostos não como questionamento sobre feminilidade ou de questionamento do papel patriarcal, mas sim como forma de preservação familiar, proteção do marido, obediência aos filhos, aceitar tudo com resiliência e silêncio dentro das casas e longe dos locais de trabalho é um dos pilares da sociedade vietnamita, que perdura até hoje. As mulheres, mesmo as que se revelam não atrizes e estão em outro país, dizem: “Disse aos meus amigos que faria um filme para contar a história da mulher vietnamita e, para atrizes e pessoas que mexem com esse tipo de coisa, há termos não tão educados.” Kiều, tanto como as atrizes do filme, passou por tormentos e tribulações, apesar de. E essa é a experiência unificadora, um conto cautelar que ressoa na vida de todas, de uma maneira ou de outra. Todas vencem, tornam-se diferentes à sua maneira, trabalham, provém sustento, são profissionais, saem dos lares e do papel doméstico, mas ainda assim, as raízes ficam expostas por gerações e gerações, mesmo após cruzar um oceano.
Nesse caso, o local do não documental e da não etnografia proposta por Minh-ha enquanto um estudo do povo, é, antes de mais nada, o falar ao lado, criticar abertamente a ideia de que o documental (ou o estudo do real) ofereça uma única possibilidade de discurso e de representação. Não existe um único real; tanto o real quanto a realidade existentes no mundo que nos cerca é subjetivo e plurivocal.
No filme, ao utilizar imagens de arquivo, poemas, analogias, canções e depoimentos das mulheres vietnamitas como forma de representar as opressões sistêmicas que abarcam classe, gênero, cor, política e colonização, expande-se um horizonte discursivo, um horizonte tão complexo que uma simples expedição de caráter científico analítico não daria conta. Afinal, o relato científico lida com um ambiente controlável e lida com um único Outro. As tradições orais, a cultura, a dissolução das imagens, o entrecortar das vozes, o desfazer e refazer da linguagem, a tradução, a leitura e a constituição da identidade são Outros, muitos Outros. Se não há documentário per se — estruturado e teorizado por tantos outros, revivido e debatido em batalhas do Antigo contra o Moderno — há uma ressurreição do real pela ficcionalização e pela narração; o reforço de que há uma sociedade cindida por mazelas políticas não exime que as histórias não sejam contadas, que o real não seja retratado tal qual por diferentes vozes.
Contar histórias e se fazer preciso é, talvez, uma das metas do cinema e da literatura de modo geral. Independente de cinema narrativo ou experimental, há sempre algo a se contar. E, grosso modo, a transmissão de um conteúdo para outro meio ou linguagem é o que chamamos de tradução. Nem todo conteúdo tradutório é simples; mas, como disse Haroldo de Campos, quanto mais inçado de dificuldades for o texto, mais recriável e mais sedutor ele se torna enquanto possibilidade de recriação. Surname Viet Given Name Nam nos mostra que a tradução cultural de imagens, discursos, vozes, não toma o objeto filmado de assalto e o destitui da verdade, mas sim, a reforça o suficiente para dizer que enquanto houver mulheres no Vietnã (ou fora dele) que nos contem a história das que estiveram e estão lá, a história será sempre reescrita, ressignificada, retomada pelas imagens e pelas vozes.
“O seu nome era privilégio, mas o dela era possibilidade. O seu era a mesma história, mas o dela era um novo conto sobre a possibilidade de mudança de uma história que permanece inacabada, que inclui todos nós, que importa tanto, mas tanto, que veremos, faremos e contaremos nas semanas, meses, anos, décadas por vir.”
— Rebecca Solnit, em Men Explain Things to Me.