Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

A BUROCRACIA, A VELHICE, A SOLIDÃO: TODO O RESTO

Há uma sequência marcante em Todo o Resto (2016), da diretora mexicana Natalia Almada, que sublinha bem o tom do filme. Sentada diante de uma mesa de escritório cheia de arquivos e pilhas de ficheiros atrás de si, uma mulher de meia-idade checa atentamente uma carteira de identidade. Em seguida, ela olha para frente e faz uma série de perguntas objetivas: nome, data de nascimento, endereço. Do outro lado da mesa, outra mulher – mais jovem – responde às questões, mas, sem querer, interrompe várias vezes o pacto protocolar da situação: deixa o guarda-chuva cair e atende o celular que insiste em tocar. Por fim, a mulher mais velha avisa à outra que não é possível continuar, porque não há documentação suficiente para dar entrada no procedimento.

Esta cena comum poderia acontecer conosco diariamente, em qualquer repartição pública. Almada chama a atenção para a ineficiência da burocracia nos serviços públicos, mas escolhe um ponto de vista pouco explorado no cinema: não de quem é vítima da burocracia, mas de quem a reproduz.

15134156_1113685252018067_1308372607_o

Pensando que o filme assume tal ponto de vista, imediatamente fiz uma comparação com outro filme que foi exibido também no Festival do Rio 2016: Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach – considerado um dos principais “highlights” do festival, ou seja, um dos filmes de maior expectativa do público, devido à Palma de Ouro conquistada em Cannes. Diferente do filme de Almada, o longa de Ken Loach está ao lado de quem sofre as consequências do descaso estatal: um senhor de meia-idade enfrenta sucessivos entraves burocráticos das repartições públicas para obter um benefício de afastamento do trabalho. Poderia ser um filme bem interessante, mas o problema é que Loach sobrepõe o tom humanista ao que deseja obter como cinema.

Preocupado em dar grandiosidade e urgência ao tema tratado – a luta de um cidadão comum contra a negligência do sistema -, Loach constrói as cenas de Eu, Daniel Blake no limite do risível, na medida em que o substrato emotivo é extraído a fórceps das situações dramáticas. Tudo parece ser didático e excessivamente explicado – um exemplo é a sequência em que o protagonista esbarra nos inúmeros e previsíveis erros ao preencher o formulário no computador. Não há qualquer profundidade no desenvolvimento dos personagens e de suas relações. O desfecho desemboca em fatalismo previsível. Parece seguir cartilha de cinema social bem comportado para burguês compreender e apreciar.

Já o longa-metragem de Almada procura seguir um caminho mais tortuoso. Ao explicitar as nuances singulares que levam uma funcionária pública a dificultar os processos de pessoas comuns, a diretora está mais interessada em compreender quais as distâncias existem entre quem precisa de um serviço público e quem é capaz de oferecê-lo. De que maneira acontecem os ruídos de comunicação neste jogo social? Por quais motivos eles são tão suscetíveis ao desgaste dos modos de vida? O que há de didático e piegas em Eu, Daniel Blake simplesmente desaparece em Todo o Resto, muito por conta da direção habilidosa de Natalia Almada, que se preocupa com uma ótica micro das relações sociais e, por isto, menos esquemática.

15102165_1113685222018070_434891982_o

A protagonista (encarnada pela excepcional atriz Adriana Barraza) compõe um gestual minimalista, que consegue tornar evidente o automatismo de sua própria rotina de trabalho como funcionária pública, atrelada a uma espécie de invisibilidade social. É desolador acompanhar a protagonista no ato de acordar todos os dias, olhando fixamente para o teto, junto com o tique-taque do relógio e o miado do gato como sons de fundo. Para amplificar a solidão da personagem, a atmosfera do filme alterna o silêncio dos espaços vazios da casa aos claustrofóbicos espaços urbanos. As sequências das viagens de trem entre os corredores repletos de gente e os vagões lotados aprofundam o clima de impessoalidade do cotidiano na cidade.

Almada também faz de seu filme uma crônica da velhice a partir da atenção minuciosa aos detalhes: o constante retoque da maquiagem; a forma meticulosa de colocar os óculos; o olhar para si através dos espelhos, que estão sempre opacos nas cenas; o medo de entrar na piscina. Outro detalhe curioso é a decisão de escolher vários planos médios das pernas da protagonista, colocadas no centro do quadro e filmadas de forma frontal para a câmera. Em ato de colocar ou retirar as meias-calças, as pernas aparecem descobertas, mas não há qualquer interesse tátil e/ou ótico de sensualizar o corpo da protagonista. Almada não quer esconder as marcas do tempo na pele da personagem: é uma pele com rugas, varizes. Ao filmar os corpos de mulheres idosas, a direção de Almada tem o cuidado de negar o padrão habitual de representação do corpo feminino, que infelizmente ainda está atrelado a um ideal de lucro por meio da fruição do espectador. Todo o Resto produz uma imagem da mulher que é bem rara dentro do cinema contemporâneo e que cria algo diferente diante de tantos “highlights” que a programação de um festival de cinema possa sustentar.

CONFIDÊNCIAS FEMININAS SOBRE O PASSADO E O PRESENTE: A HORA DO CHÁ

Você já teve a impressão que fizeram o filme cujo qual você gostaria de ter feito? Foi o que eu senti ao me deparar com “La once”, ou a Hora do chá – documentário dirigido pela chilena Maite Alberdi. Há tempos venho pensando em filmar os encontros de minha avó e de suas amigas octogenárias que acontecem a cada semana. Denominado como “o jogo das meninas”, a reunião é repleta de lanches, jogos de baralho e confissões íntimas. Parece que a Maite teve a mesma ideia. Em seu longa-metragem documental, a diretora retrata o encontro da avó com mais cinco mulheres, amigas de escola que se reúnem mensalmente há 60 anos.

A princípio, somos guiados pela narradora Tereza que apresenta as integrantes do grupo a partir das personalidades e características de cada uma. Quando já familiarizados, sentamos à mesa para tomar um chá. Com planos muito próximos, nos sentimos verdadeiramente parte da conversa. Os vários planos-detalhe dos doces, tortas e salgadinhos nos trazem uma sensação de conforto e intimidade. Diante de tanto açúcar, seria possível esconder algum segredo? As senhoras seguem conversando sobre os temas atuais e tabus como a sexualidade.

Quando demonstram suas opiniões, as velhas amigas, por vezes, suscitam tendências mais conservadoras. A diretora optou por não esconder possíveis julgamentos ou preconceitos vindos das falas dessas mulheres. Exemplo é a presença das empregadas e o tratamento dado a elas durante o filme. Maite frisa como as domésticas são responsáveis por preparar e arrumar o lanche, mas entre as conversas são ignoradas. Estas senhoras são, de alguma forma, o retrato do Chile, um retrato da classe média chilena que pouco se difere da nossa. No entanto, o longa não destrincha sobre questões políticas e sociais, o foco do documentário é outro: a relação de amizade construída durante anos.

Nesse emaranhado de falas, encontramos muitas vezes opiniões parecidíssimas com as de nossas avós. A discussão sobre “o papel da mulher na sociedade”, por exemplo – e como isso foi ensinado a essas senhoras ainda na época da escola. A discussão se alonga e elas concordam que os valores mudaram e a noite de núpcias já não parece mais um bicho de sete cabeças para nenhuma moça. Uma das amigas leva ao encontro o antigo caderno da disciplina intitulada “Economia doméstica”, onde as características da “boa esposa” eram explicitadas, com destaque para o “ autocontrole”. As próprias senhoras riem após a leitura do caderno. O riso é necessário durante todo o filme. Afinal, elas acabam se criticando, pois muitas vezes não têm as mesmas opiniões.

13059391_1273518756008824_1439012768_n

A conversa sai dos temas sociais para se tornar mais íntima. “Vocês preferem que seu marido lhe traia ou que ele morra?”, pergunta uma das personagens. O tema do amor e casamento surge como uma causa principal para essas mulheres, menos para Gema – que decidiu não se casar e por isso desperta desconfiança entre as amigas.

Estas senhoras que viveram a época de transição das conquistas feministas se veem, depois de velhas, mais empoderadas. Não tanto pelos direitos femininos adquiridos, mas pelo caráter de discernimento que a velhice possui. Não precisam aparentar mais nada. Não têm papas na língua. Falam o que vem à cabeça. Riem e discutem sem pisar em ovos. Nesse sentido, “La once” nos traz uma perspectiva sobre a percepção dos idosos sobre a realidade. Se na juventude, as regras lhes eram impostas e as alternativas eram segui-las ou quebrá-las, a velhice traz a possibilidade de ignorá-las, de transpô-las.

A hora do chá é também ritualística. Um encontro mensal que acontece religiosamente. Em entrevista, a diretora Maite Alberdi confessou que teve a ideia de fazer o longa após a avó negar de ir à premiação de um filme da neta, pois o evento iria acontecer no mesmo dia que a “hora do chá”. É como “o jogo das meninas”, quando acontece na casa da minha avó, todo mundo tem de sair. Os encontros entre amigas são sagrados. Nesse espaço, nesses dias tão específicos se trocam confissões, intimidades. Por mais diferente que sejam, essas velhas senhoras se sentem pertencentes a algo maior, em outras palavras, ao sentimento da amizade. Aqui relembro o conceito de sororidade. A hora do chá representa aquele encontro semanal com amigas no bar, pra falar de trabalho, de amor, de filhos, de coletor menstrual, “do papel da mulher na sociedade”, etc, etc.

UM RECURSO PARA A INTIMIDADE: ELA VOLTA NA QUINTA

A intimidade é o tema central dos filmes de André Novais, cineasta mineiro, diretor dos curtas-metragens Fantasmas, 2010, e Pouco mais de um mês, 2013. Em Ela volta na quinta, 2014, não é diferente. Novais apreende o cotidiano doméstico de Noberto e Maria José, um casal de idosos com dificuldades em se relacionar após 35 anos juntos. A trama ficcional, no entanto, com personagens reais – quem atua é a própria família do diretor – nos surpreende ao levantar discussões para além da linguagem cinematográfica. O fim de um relacionamento de anos, a dificuldade de seguir os sonhos, o sentimento de apego, a velhice, as questões sociais e tantos outros temas elevam a qualidade de Ela volta na quinta, que deixa de ser apenas uma obra experimental para se tornar um ensaio sensível sobre a vida cotidiana. Sem megalomania ou “grandes dramas”, o longa retrata nada mais do que a vida doméstica e íntima, ela própria digna de poesia.

É nas minúcias que André encontra o inteligível: em um diálogo com o irmão em que mostra um vídeo engraçado no YouTube ou na trajetória de trabalho do pai ao deixar cair uma geladeira já quebrada que deveria ser levada para o conserto. Em situações tão específicas, pontuais, irrisórias se acessa o espectador de forma terna – nos sentimos parte da situação dando boas risadas. Em contraponto, também podemos nos emocionar com o diálogo sobre sonhos e capacidade de realização dos mesmos entre a mãe e André, enquanto o diretor tira a pressão da genitora. Neste ponto, Novais opta por um recurso bastante utilizado durante o filme: a ausência de plano e contra-plano, deixando a câmera fixa e próxima ao rosto de Maria. Quando vi o filme pela primeira vez no Festival de Brasília em 2014, chorei ao assistir essa cena. São diálogos comuns; eu diria, até banais – e é justamente por isso que têm a capacidade enorme de acesso ao espectador. Todo o banal é poético. Relembro o Manifesto de Poesia escrito por Pasolini que discutia a presença de poesia no cinema; neste manifesto, entre vários apontamentos sobre discurso e linguagem cinematográfica, Pasolini discute sobre a imersão do autor na alma da sua personagem e que seria necessário não só a adoção da psicologia como da língua dessa personagem. Nesse sentido, o longa que mistura personagens reais que vivem uma ficção ganha vários pontos em noção de poesia. Ali todos falam a mesma língua. Nem podemos dizer que os “personagens foram bem construídos”, como comumente fazemos ao criticar obras cinematográficas. Afinal, todos aqueles personagens “estão se construindo”, eles são reais, participam de um devir que acompanhamos durante a narrativa. A ausência do contraplano, os planos fixos e contemplativos nos aproximam desses personagens de forma substancial. Os diálogos ordinários colocados criam simultaneamente sensações de distanciamento e proximidade que nos deixam em estado de fascínio, sem saber muito bem o que pensar sobre a obra.

ela_volta_quinta

Recentemente debrucei-me sobre um projeto que envolvia aspectos dos relacionamentos e da velhice na vida afetiva. Cheguei a conclusão um tanto simplista, porém realista. A vida seria dividida em três partes: envelhecer, construir nós e desatar nós. Além de Simone de Beauvoir, que escreveu A Velhice, e de tantos outros escritores, filmes como Ela volta na quinta me ajudaram bastante a pensar sobre os aspectos que envolvem o envelhecimento e principalmente o sentido do amor nesse período da vida. É muito difícil falar sobre o amor. Há quem diga que a melhor forma de falar sobre ele é não tocando em seu nome, mas exemplificando, metaforizando – sem teorizar. É exatamente isso que Novais faz em seu primeiro longa. Um casal de idosos que pretende se separar pois já não conseguem mais estabelecer um diálogo. Não vemos barracos, tão pouco um grande drama.  Mais que isso, vemos situações comuns. O casamento desgastado, os filhos adultos, um relacionamento extra-conjugal e as dificuldades impostas naturalmente, mas também, socialmente quando o assunto é velhice, principalmente em relação à mulher. Enquanto Maria sofre de ataques de pressão alta, Noberto, que aparentemente é um bom pai e um bom marido, mantém uma relação fora do casamento – ao passo que não assume e não toma nenhuma posição, aguardando Maria agir de alguma forma. Cansada de esperar, ela resolve ir a uma excursão em Aparecida do Norte, da qual só volta na quinta-feira – daí o nome do filme.

Os filhos estão preocupados com o casamento dos pais, mas não interferem, afinal, eles já têm seus próprios problemas. André não sabe onde morar com a namorada, a falta de dinheiro é empecilho para alugar um apartamento no centro de Belo Horizonte. Renato quer ter um filho com a namorada, mas os dois ainda não têm casa e “nem mesmo são casados”. A cama é o lugar de conversa central dos personagens, todos eles conversam em cima dela com seus respectivos parceiros amorosos. Normalmente, as conversas estão em busca de decidir ações para mudar a vida destes personagens. Entendo a cama como um divã, um espaço ao qual os personagens estão livres para se expressar e tomar decisões conjuntas. Os diálogos ficam no nível da discussão e não alcançam o tom de briga. O sotaque mineiro carregado também nos traz uma noção de intimidade, ele é contraposto, no entanto, com a paisagem urbana e concreta da periferia de Minas Gerais.

Enquanto a vida dos filhos segue, Noberto aproveita para visitar a sua outra parceira, uma moça mais nova que ele. Ela decide terminar o relacionamento e mais uma vez o lugar de confissão é a cama. Noberto não encara bem a notícia, mas não briga, lamenta pela o distanciamento com a filha da mulher – que não sabemos se é ou não filha também de Noberto. Nesta cena, a utilização de não atores dá um tom especial ao diálogo que se torna triste, pois trata-se de um fim, mas ao mesmo tempo cômico. Silêncios constrangedores que costumam aparecer em conversas, mas não aparecem nos filmes, neste filme eles aparecem e nos mostram como somos incapazes de ser completamente naturais dadas as regras de sociabilidade e civilização.

Maria volta da sua viagem decidida a se separar, em diálogo com a amiga, admite saber do relacionamento extraconjugal do marido. Ao voltar para casa, reclama do teto que o marido não arrumou – aqui podemos entender como uma metáfora, Noberto ainda não agiu – ela ainda não menciona sua decisão sobre o divórcio.  Caminhando pela rua, mais uma queda de pressão. Nos planos seguintes, Noberto canta uma música de amor no carro, logo depois família assiste um jogo de futebol sem a presença da matriarca.

Ela volta na quinta fala sobretudo de amor, o amor íntimo que se transforma, sobre a necessidade de se reapaixonar a cada instante. Através desse longa, Novais nos mostra que o amor é uma aceitação cotidiana do que somos frente ao outro. Envelhecer junto é compreender a mudança do ser amado como uma nova possiblidade de relação. O amor é possível, é banal, é íntimo e está em cada instante: em um diálogo engraçado com o irmão, ou ao tirar a pressão da mãe, mas também em dançar Roberto Carlos na sala de casa.