Há quase três anos, nós — Letícia, Glênis e Amanda — sentávamos no chão de um pequeno apartamento em Brasília para tentar decidir as estruturas de nosso projeto de 12 meses. Não sabíamos que o projeto só viria a acontecer em 2021. Enquanto propúnhamos que o filme do terceiro ciclo das Sessões Verberenas poderia ser um filme dirigido por uma mulher do século XX no Brasil, não sabíamos que, quando esse momento finalmente chegasse, viveríamos um presente em que a Cinemateca Brasileira seria vítima de um incêndio causado por negligência ativa dos responsáveis por essa instituição pública. Não sabíamos. Naquele momento, há três anos, a faísca para nossa curadoria era apontar para o que veio antes e possibilita o caminho construído até aqui.
“Primeiro, a gente ama a pessoa. Depois, quer se apossar do presente dela. Depois, quer se apossar do futuro dela”, escreve a protagonista Pity em Os homens que eu tive, de Tereza Trautman — o filme escolhido para esta Sessão Verberenas. Quando sua amiga chega e lê o texto, Pity o completa escrevendo: “E fica angustiada por não poder se apossar do passado”. Por sua estrutura interna, que é leal aos processos próprios de Pity, o filme remete à integridade do tempo. Por suas condições extrafílmicas, o filme remete à continuidade de um desenvolvimento histórico de construção de narrativas que escapavam à lógica hegemônica da ditadura militar. Por sua situação de exibição no momento atual, o filme estimula uma espectatorialidade que remete às ameaças constantes de destruição da memória no Brasil em nome de um ideal de progresso traidor. Trata-se do progresso que, próximo ao destino do anjo da história de Walter Benjamin e do anjo da geohistória de Bruno Latour, nos tornará ainda mais horrorizados quando virarmos as costas e dermos de cara com o lugar ao qual chegamos.
Em outra chave, os textos desta edição da revista Verberenas desestabilizam noções de passado, presente e futuro. Neles, o tempo não se satisfaz com essas três categorias isoladas. Não são olhares que encaram fixamente uma única direção. Pelo contrário, seus corpos livres, ouvidos abertos, olhos em busca se movimentam por essas três noções em um esforço, procurando uma aposta.
Escrever, ver um filme, fazer um filme, fazer planos e tomar quaisquer ações de construção: tudo isso é sempre uma aposta. No ato do gesto, do risco, naquele segundo se reúnem os três tempos da vida. Neste movimento, o texto de Waleska Antunes, sobre a obra Surname Viet Given Name Nam (1989), de Trinh T. Minh-ha, chama atenção ao permanecer no tempo do entre e, nesse limiar, abranger múltiplas vozes que tornam impossível uma verdade única sobre a mulher vietnamita. Já Ana Júlia Silvino escreve sobre fabulações que vibram através de ruídos, imagens que existem em função das temporalidades sonoras e sensoriais presentes nos filmes de Paula Gaitán.
A pesquisadora Isabella Poppe traz cenas da autobiografia da cineasta Marilu Mallet no exílio após a deflagração da ditadura militar chilena, e apresenta um isolamento histórico capaz de alienar uma pessoa do presente e da ideia de futuro, ao separá-la da construção coletiva de seu país. Trazemos ainda mais uma entrevista de Lygia Pereira, dessa vez com a cineasta Viviane Ferreira — em que a artista pensa o tempo como uma energia que a orienta, e o cinema que produz como meio para transmitir “modos de viver”. O texto conta com ilustração de Hana Luzia. Nesta edição, trazemos também os trabalhos visuais das artistas Isabella Pina, ilustradora, e Ana Luíza Meneses, fotógrafa que idealizou e produziu a capa da revista e do editorial.
Em uma carta a Juliano Gomes — e a todas que porventura quiserem tomar parte na conversa, Lorenna Rocha se posiciona como pensadora de um cinema negro em infindável processo de invenção, e propõe um olhar que contemple o abismo. Letícia Marotta entrevista a cineasta Anita Leandro, diretora de Retratos de Identificação (2013), que fala do processo de trazer arquivos à vida, em um tempo em que as ruínas da ditadura militar brasileira ainda estão à espera de ressignificação. A memória, no entanto, é feita também do presente cotidiano, e Camilla Shinoda compartilha em seu texto como as trocas de ideias e referências entre uma professora e seus alunos de audiovisual podem dar continuidade à produção das imagens que formarão o amanhã.
Também a fabulação pode ser um ato de subversão do tempo. Ao escrever sobre Os homens que eu tive, Roberta Veiga aponta que o filme de Trautman abre “uma fenda para uma vida possível” ao proporcionar imagens de gozo e autonomia no Brasil de 1973. Os homens que eu tive é o filme do terceiro ciclo das Sessões Verberenas, exibido de 24 a 26 de setembro e tendo seu debate com a pesquisadora convidada Roberta Veiga às 18h do dia 26.
Quando pensamos em Os homens que eu tive como marco histórico — considerado o primeiro longa-metragem moderno dirigido por uma mulher no Brasil — somos obrigadas a pensar também no que significa pensar nos filmes em termos de “primeiros”. Mais de quarenta anos separam Os homens que eu tive de O mistério do dominó preto, de Cléo de Verberena, de 1931, aquele que é considerado o primeiro longa-metragem clássico brasileiro dirigido por uma mulher. Em ambos os casos, o risco e a realidade do apagamento assombram: o filme de Verberena foi perdido, não se sabe de uma cópia que reste; o de Trautman foi censurado semanas depois da sua estreia em 1973. Face a esse constante perigo, não podemos evitar pensar na concretização desse medo e nos perguntamos: quantos filmes foram perdidos nesses quarenta anos? Quantos foram perdidos antes de 1931?
Resgatar as materialidades, os vestígios, agir e tecer um fio é uma decisão consciente. E, ao mesmo tempo que a continuidade é uma construção e um esforço, ela é também inevitável. Resta compreender o que levar conosco nesse processo e o que pode nos auxiliar a desvendar os desafios que o tempo determina. Esperamos que os textos publicados aqui, junto com a escolha curatorial, possam caminhar nessa direção.
Letícia Bispo, Amanda Devulsky e Glênis Cardoso
O nº 06 da revista Verberenas está no ar. É curioso pensar que, para essa edição e para a sessão de cinema que virá com ela, acabamos escolhendo textos e filmes que perpassam, de uma maneira ou de outra, pequenas resistências.
Isoladas em nossas casas ou em nossas rotinas enquanto assistimos a movimentos incendiários que colocam em risco nosso futuro, podemos nos sentir impotentes e deslocadas. Sobreviver é a primeira resistência; nosso primeiro habitat é o corpo e o que nosso corpo toca. Os primeiros passos para resistir são as práticas cotidianas que fundam espaços onde podemos sobreviver. E nosso corpo exige silêncio também. Silêncio, descanso, repouso, respiro, atenção. Talvez a partir daí possamos pensar em como expandir esse espaço, sair do corpo-só para um outro corpo, para a natureza, para a multiplicação, para o corpo coletivo.
Mil anos depois do evento apocalíptico que destruiu a maior parte da civilização humana, uma princesa faz visitas frequentes à floresta tóxica que restou: o Mar da Destruição. Ela observa com cuidado o ambiente por trás da máscara que a protege do ar letal que preenche aquele espaço, interage com os insetos gigantes, recolhe exemplares de plantas e fungos, os examina em seu laboratório para compreendê-los. Enquanto isso, a princesa de um outro reino planeja o extermínio do Mar da Destruição. Essa é a história de Nausicäa no Vale do Vento, filme sobre o qual Caroline Leonardi escreve nesta edição.
Retomando essa narrativa, a falta de combate da primeira contra a floresta que ameaça destruir a sua comunidade pode ser vista como não-ação. Acreditamos que é um erro, entretanto, interpretar o silêncio, o estudo, a exploração e o convívio com o que não entendemos como falta de ação. Tem parecido cada vez mais fundamental perceber o quanto é pequeno – e, ainda assim, necessário – o nosso papel dentro da enorme rede de seres de que fazemos parte.
Os textos que trazemos nesta edição são uma espécie de cultivo dessa esperança nos humildes gestos pessoais para sobreviver ao apocalipse dos nossos tempos. Pequenas resistências; como os fungos de Anna Tsing que colonizam os humanos, dos quais fala Caroline Leonardi em seu texto; como os filmes que não foram realizados ainda, mas que se desenham no intrigante do cotidiano de Denise Vieira; como as movimentações de um cinema de mulheres de Rondônia com as quais Naara Fontinele se coloca em diálogo. Algo de estranho e algo de silêncio se coloca, uma espécie de derrota aparente que se manifesta numa sensação de presença vitoriosa. Esse estranho às vezes impele ao riso e ao horror, como o que Stephania Amaral descreve na relação com as videoartes de Pipilotti Rist. Às vezes é algo tão sutil quanto o espaço-tempo que é tecido nas encruzilhadas, como escreve Letícia Bispo. Outras vezes, trata-se de um caminho interior cheio de curvas, como o que Everlane Moraes propõe em seus filmes e sobre o qual discorre na entrevista conduzida por Lygia Pereira. E, tantas vezes, está numa espécie de infiltração estratégica que se encontra no saber ver mantendo alguma desconfiança, como aponta Larissa Muniz sobre o filme Ilusões, de Julie Dash.
Ao escolher o filme da Sessão Verberenas, enxergamos uma pequena rebeldia em exibir um filme que escolhe tratar do pequeno, um filme que não se pretende incontornável ou urgente, que vai pelo caminho do prazer e do afeto como forma de sobreviver/viver em um mundo que se mostra cada vez mais inóspito. Trata-se de Microhabitat (2017), o primeiro longa-metragem da sul-coreana Jeon Go-woon. O filme inspirou a capa da nossa edição atual, feita pela artista visual danirampe.
A Sessão Verberenas ocorre entre as 20h do dia 18 de junho e as 20h do dia 20. A crítica e pesquisadora Carol Almeida escreve sobre o filme em seu texto “Contra o capitalismo, Miso pede mais uma dose de uísque”. Ela é nossa convidada para uma conversa sobre o filme que acontecerá no dia 19 (sábado) às 18h em nosso canal.
Como os fungos e bactérias, talvez precisemos aprender a sobreviver a partir dos restos, da morte, da adaptação e da transformação. Começamos a partir do corpo, do desejo, do mais ínfimo movimento.
Letícia Bispo, Glênis Cardoso e Amanda Devulsky
Uma coisa que me chamou atenção estudando cinema no Brasil e nos Estados Unidos foi que alguns cursos de cinema não dão tanta atenção para a direção de atores. Além de oferecerem poucas aulas (ou nenhuma) sobre o assunto, os departamentos de audiovisual e de artes cênicas em geral conversam pouco entre si e não possuem aulas em comum. Os estudantes de cinema acabam aprendendo a lidar com os atores somente na prática, ou indo atrás de informações por conta própria.
No Brasil há o fenômeno do preparador de elenco, e alguns estudantes acreditam que esse profissional deve substituir a função do diretor na comunicação com os atores, ou até mesmo que ele é necessário em todos os filmes. Na Universidade de Brasília, onde estudei, era comum os alunos incluírem alguém na equipe somente para preparar o elenco, mesmo quando ele era formado por atores bons e experientes. Como foi uma das coisas que mais estudei durante a graduação, trago aqui algumas dicas sobre direção de atores para estudantes que desejam dirigir filmes live action, e também para pessoas que trabalham com cinema em outras funções e queiram passar para a função de direção.
Anna Muylaert dirigindo Glória Pires em “É Proibido Fumar”
Primeiramente, acredito na premissa de que ter alguma experiência como atriz ajuda na hora de dirigir atores. Você estará do outro lado, terá que analisar as informações sobre o personagem e como expressá-las, vai experimentar como é ser dirigido por alguém, como é interagir com outro ator na cena, como memorizar falas, e também entender o esforço corporal e vocal que a atuação exige. Portanto, sugiro que quem tem interesse em dirigir procure experimentar alguns cursos ou oficinas de atuação. Eles também ajudam a adquirir algum repertório de exercícios, o que pode ser bastante útil em ensaios com o elenco.
Segundo, é importante saber escolher seu elenco. Pretendo escrever posteriormente um texto com dicas específicas para casting (produção de elenco). Embora grande parte da escolha dos atores dependa da intuição da diretora, existem algumas técnicas específicas para identificar se o ator realmente se encaixa no papel pretendido, se sabe seguir direcionamentos, se é bom em improvisação, se é responsável e pontual. São coisas que, acredite, podem fazer a diferença no set de filmagem.
Ava DuVernay discute a cena com o ator David Oyelowo no set de “Selma”
Escolha pessoas que trabalhem bem com você. Não tem problema chamar seus amigos para atuar, principalmente nos trabalhos de faculdade, em que você não tem muito tempo e precisa de pessoas que sejam fáceis de trabalhar. Porém, é bom ter em mente que fazer cinema demora e envolve muitas repetições – deixe seus amigos cientes disso, para eles não te abandonarem no meio do set! Além disso, não perca a chance de trabalhar com atores que conhecem técnicas de atuação, sejam estudantes de artes cênicas ou profissionais. Já vi colegas que resolveram atuar eles mesmos em alguns trabalhos de faculdade, abrindo mão da chance de treinar direção de atores com pessoas que realmente estudam pra isso.
Outra maneira de escolher atores é por meio de convite, quando você já conhece o trabalho da pessoa e imagina que seria uma boa opção para um papel em seu filme. Já trabalhei com indicações às cegas também, quando eu não conhecia a atriz e confiava na recomendação de amigos da área, mas indico essa prática mais para trabalhos universitários com prazos curtos, onde você não tem muito tempo para ir atrás do elenco e precisa de soluções rápidas (embora eu sempre tenha tido sorte com ótimas indicações).
Sofia Coppola com Scarlet Johansson no set de “Encontros e Desencontros”
Quanto a ensaios, é uma coisa que você deve tentar fazer o máximo que puder durante a faculdade. Incrivelmente, pode ser uma coisa bem difícil de se conseguir. Só quem já teve que conciliar a agenda de várias pessoas sabe o inferno que é conseguir um dia em que todos estejam livres. Porém, para diretores inexperientes essa é uma das partes mais importantes. É no ensaio que você vai testando suas habilidades com os atores, vendo como eles respondem, quais técnicas dão certo e quais não. Existem vários livros com exercícios que podem ser feitos, dependendo do que seu filme precisa, do seu elenco, e do nível de energia e de atuação que você deseja alcançar.
Se não for possível ensaiar com os atores que contracenam, ao menos converse individualmente com cada um sobre seus respectivos personagens. Claro que direção é uma função que necessita de habilidades amplas. Algumas diretoras tem mais afinidades com outras áreas, fotografia, direção de arte, etc. Mas parte da tarefa de direção é inevitavelmente dar algum direcionamento aos atores, e é nessa hora dos ensaios onde se pode praticar. No cinema profissional (ou mesmo no universitário) nem sempre se tem a oportunidade de ensaiar antes de filmar. Quando você tiver que dirigir atores que nunca se viram antes do dia da filmagem, essa experiência adquirida previamente vai fazer a diferença.
Laís Bodanzky dirigindo Caio Blat no set de “As Melhores Coisas do Mundo”
Existem diversos tipos de atores: os que são bem seguros com o texto e decoram as falas certinho, os que gostam de improvisar, os que preferem um forte direcionamento, os que gostam de intervir na construção do personagem, e outros mais. Veja o quanto você está disposta a deixar o ator construir o personagem com você. Eu particularmente gosto de dar essa abertura, e em alguns trabalhos deixo os atores construírem boa parte do texto. Isso nem sempre é possível, depende do tempo disponível na preparação e do filme que você está fazendo. Alguns diretores preferem que os atores entreguem fala por fala do jeito que está no roteiro. Outros permitem que os atores improvisem na hora da filmagem. Com a prática você acaba descobrindo com qual forma gosta mais de trabalhar.
Porém, tenha em mente que é preciso saber conciliar a performance de atores que usam métodos diferentes, quando eles vão contracenar. A diretora Anna Muylaert já comentou em entrevistas que em seu filme Durval Discos, a atriz Etty Fraser decorava fala por fala, e precisava da deixa específica do outro ator para entregar sua parte do diálogo. Já Ary França, que contracenou com Etty, gostava mais de improvisar, e não seguia à risca o roteiro. Anna trabalhou com os dois para que Ary conseguisse incluir a deixa ao final das improvisações, para que Etty não se perdesse. Esse é um exemplo claro, mas no geral essa “conciliação” entre os atores se dá de forma mais sutil, no nível de equilibrar as intensidades das atuações, o tempo de aquecimento, e até mesmo o conforto de um com o outro em cena.
Etty Fraser e Ary França em “Durval Discos”
Falando em tempo de aquecimento, isso também é um deta
lhe importante na hora de filmar. Existem atores que chegam à performance ideal muito rápido, começam bem aquecidos, vão cansando com o tempo, e sua performance cai de acordo. Outros demoram algum tempo até “dar no tranco” e entregar a atuação ideal. Prefira começar filmando os closes do ator que aquece mais rápido. Há também os atores mais seguros, que conseguem manter uma boa performance por bastante tempo, que geralmente são os mais experientes. E há os que são bastante instáveis, mas que em lampejos de genialidade conseguem entregar uma atuação espontânea e emocionante. Esses últimos, embora fascinantes, são dos mais desafiadores de se trabalhar, já que o cinema tem uma particularidade que precisa ser praticada: a repetição. É preciso bastante observação para descobrir que técnicas funcionam melhor com esses atores para mantê-los no pique. Vários atores de teatro também não estão tão acostumados a repetir pequenos pedaços de cena com a frequência exigida em algumas filmagens. Isso pode ser bem cansativo, e também entediante para o ator, o que afeta sua performance. Nesse caso o problema não está na direção, mas na falta de familiaridade do ator com a rotina de sets de filmagem.
Laís Bodanzky no set de “As Melhores Coisas do Mundo”
No cinema é muito comum filmar fora da ordem do roteiro. Os atores tem de saber localizar qual é o estado do personagem em cada cena. Muitas vezes se filma cenas do começo e do fim do filme no mesmo dia. O ator deve estar preparado para fazer esse salto na atuação, e você como diretora também tem de saber muito bem as especificidades da cena e do personagem para saber orientá-lo.
Outro fator que também afeta a atuação é o conforto. Alguns sets ou cenas podem ser cansativos ou incômodos: um dia muito frio, ou debaixo do sol, ou uma cena que exija muito trabalho físico ou emocional. É sempre bom verificar se há algo que possa ser feito para preservar um mínimo de conforto para o elenco. Sempre tenha assistentes com água por perto, agasalhos, guarda-sol, cadeira, chinelos, e outras coisas a que eles possam recorrer entre os takes. Já tive que trabalhar com atores se queixando de dor de cabeça, cansados, com frio, com fome. São coisas que certamente prejudicam a performance. Porém, sabemos que set de cinema é corrido sempre, e os atores também fazem (ou devem fazer) uma força para trabalhar mesmo com alguns incômodos. Isso faz parte do trabalho, e também depende de treinamento.
Sofia Coppola dirigindo Bill Murray em “Encontros e Desencontros”
É importante ressaltar: o ator não é sua marionete. Abusos de poder são bastante comuns em relações hierárquicas de todo tipo. Nesse caso, o diretor pode se valer da vulnerabilidade inerente ao exercício da atuação. Pergunte a qualquer ator, vários serão capazes de citar experiências em que o diretor fazia jogos constrangedores não consentidos como “técnica” para impulsionar a performance, gritava com o elenco, não escutava o que o ator tinha a dizer, era autoritário, enfim. Eu, que comecei como atriz em teatro, passei por vários desses. E vejo algumas das mesmas práticas sendo perpetuadas no cinema. Muitas de forma velada e sutil também, mas não menos desrespeitosas.
Há os casos famosos: quem nunca ouviu falar de Lars Von Trier torturando suas atrizes? Ou Kubrick? Ou Hitchcock? Ou David O. Russel dando chilique no set? Só pra citar alguns dos mais conhecidos. Existe um viés de gênero digno de ser ressaltado: as atrizes sempre muito mais sujeitas a abusos. Posso citar também os métodos de Fátima Toledo, a preparadora de elenco mais famosa do Brasil, como uma dessas técnicas “viscerais” que mexem fortemente com o psicológico dos atores. Muitos atores gostam delas, principalmente por serem bastante desafiadoras. Mas a popularidade de Fátima e algumas técnicas do Método americano, dentre outros (vide a glamourização de Edward Norton, Jared Leto e outros que fazem loucuras para “entrar no papel”) de uma certa forma contribuem para a difusão da ideia de que atores são pessoas que só funcionam quando manipuladas. Que você pode livremente tentar usar uma técnica mais “dura” ou invasiva em nome da arte. Minha dica: não seja essa pessoa. Atores estudam, praticam, e trabalham muito para atingir excelência na sua profissão. Não é por meio de manipulação ou gritos que eles chegam lá. Embora esse tipo de atitude seja bastante tolerada sobretudo quando vem de diretores homens, ela apenas mascara, a meu ver, um desejo autoritário e sádico do diretor.
Ava DuVernay abraçando suas atrizes mirins: seja essa pessoa.
Por fim, tente sempre ouvir o que os atores tem a dizer. Alguns deles apenas seguem sua orientação, outros contestam mais, ou trazem visões diferentes sobre o personagem e a história. E muitas vezes eles podem ter razão. Ouça e reflita sobre as opiniões deles. Caso discorde de algumas, lembre-se que quem tem a palavra final é você. Do mesmo jeito que você não deve ser autoritária e impor sua visão a qualquer custo, também não precisa ceder a opiniões dos atores e da equipe se discorda delas. No fim, a diretora é quem tem a responsabilidade artística da obra, e as escolhas do filme serão atribuídas majoritariamente a você.
Nas próximas partes desse texto falarei sobre técnicas específicas para serem usadas nos ensaios, trabalho no set e até mesmo na pós produção, além de um futuro texto com dicas sobre como preparar e executar castings.
Leia aqui a segunda parte do texto: SOBRE DIRIGIR ATORES NO CINEMA – PRÉ PRODUÇÃO E ENSAIOS
Ilustração por Morgue.
Ou, pelo menos, é o que diz Brian Sewell, ignorando nomes como Georgia O’Keefe, Louise Bourgeois, Frida Kahlo e muitas outras. É verdade que Sewell estava apenas sendo misógino, mas sua fala nos lembra que o lugar da mulher na arte é sempre de resistência e marginalização. Aquele lugar pelo qual elas tiveram que lutar com unhas e dentes. Ainda assim, nunca serão vistas como merecedoras dele – elas nunca serão consideradas “grandes artistas”.
A ideia de dar as costas a esse conceito de “grande” em que só cabem homens me atrai cada vez mais.
Este é um espaço negativo. Por “espaço negativo”, refiro-me ao que está em volta do objeto, o que está vazio, em branco. O espaço positivo já está cheio demais, saturado, por isso procuramos um lugar para nós, mesmo que ele esteja além da margem do que é considerado importante, na esperança que as nossas vozes se juntem a outras e outras e outras… até que, juntas, nos tornemos algo maior.
Estamos cansadas do que é definido como “universal”, do papo que se aproveita de uma suposta neutralidade para transmitir ideias e estéticas que certamente são, também, políticas. Não esperamos que abram-se magicamente portas para nós, vamos nos fazer ouvidas, nossas críticas, nossas obras de arte, nossos filmes, nossas análises estão aqui para ficar. Somos mulheres, realizadoras, escritoras, queremos ocupar espaço, queremos escutar outras vozes e queremos ser ouvidas também, queremos mais cores, mais tamanhos, mais formas de olhar e mais formas de ser, queremos fortalecer e queremos ser fortalecidas.
Enfim, queremos mais do que nos foi dado, mais do que herdamos, mas sem esquecer das nossas raízes e o que nos tornou o que somos hoje. Assim, abrimos nosso Verberenas, um espaço negativo que deseja ser visto.
(o título desse post foi inspirado neste artigo e nessa notícia)
Esse texto foi escrito de forma colaborativa por Glênis e Amanda.