Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

O OLHAR COMO ATO DE CRIAÇÃO DO MUNDO

Em 2020, na ocasião da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conhecer a diretora Viviane Ferreira, diretora do longa-metragem Um Dia com Jerusa (2020). Dentre essas poucas conversas que tive a felicidade de ter com ela, alguns de seus questionamentos me marcaram, me desafiaram. Lembro que ela pensava bastante no lugar da crítica, e de uma crítica negra, e na relação de velhas e novas críticas com os filmes que surgiam – e filmes como o dela, que surgem a partir de cosmovisões pouco vistas e da consolidação de demandas políticas construídas ao longo de anos e anos. 

Uma de suas indagações ficou comigo, depois daqueles encontros: que gramática, que aproximações a crítica de cinema pode construir a respeito dos cinemas negros de hoje e dos que virão – e quais olhares surgem a partir de uma crítica que se localiza também como negra nesse ecossistema das imagens e das palavras sobre as imagens? Se o cinema negro é um projeto em construção, como afirmou Janaína Oliveira há alguns anos1, as críticas negras o são também, e caminham com os filmes em um processo múltiplo e espiralar, no qual idas e vindas, aberturas e composições podem engendrar poéticas e políticas.

Dentre as várias perspectivas possíveis para dialogar com Um Dia com Jerusa, escolhi olhar a partir de autores negres e/ou brasileires, que têm como referência as cosmovisões afro-brasileiras. Parto das pistas que o próprio filme traz, e me permito passar por ele, decifrar, buscar rimas e consonâncias com filosofias que me ensinem outras formas de imaginar.



Tecido, textura 

O longa-metragem Um Dia com Jerusa (2020), de Viviane Ferreira, traz novamente Léa Garcia e Débora Marçal nos papéis de Jerusa e Silvia, personagens que primeiro surgiram no curta-metragem O Dia de Jerusa (2014), da mesma cineasta. Aqui, a diretora reinventa a relação entre as duas personagens para fazer emergir novos atravessamentos. Silvia, jovem negra, médium e historiadora, aguarda o resultado de um concurso público enquanto trabalha fazendo pesquisas para uma empresa de sabão em pó. Ela acaba batendo à porta de Jerusa, mulher negra, idosa, que vive sozinha na região do Bixiga, em São Paulo, e que no dia de seu aniversário acaba enredando Silvia em sua casa, em suas histórias e, por fim, em sua vida. O filme elabora aberturas e passagens entre dimensões – visível e invisível, esquecimento e memória, presença e ausência – que compõem a malha subjetiva da população brasileira, de subjetividades compostas tanto pelos processos violentos que vivemos desde o sequestro dos povos africanos durante a colonização portuguesa nas Américas, como por cosmovisões que vêm resistindo a essa violência, trazidas pelos sobreviventes da travessia do Atlântico, e transformadas por seus descendentes.

“As culturas negras que matizaram os territórios americanos, em sua formulação e modus constitutivos, evidenciam o cruzamento das tradições e memórias orais africanas com todos os outros códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ou ágrafos, com que se confrontaram. E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade afro-brasileira, num processo vital móvel (…)” 

Leda Maria Martins2

Tecido e textura. Falas e gestos. Interação. Coreografia. São palavras que surgem quando Leda Martins pensa a identidade afro-brasileira, em suas constantes transformações e reatualizações. O dinamismo dessas formações e a força de seus enraizamentos não combinam com a estereotipia e a ausência que marcam os aparecimentos de povos e pessoas pretas nas imagens cinematográficas brasileiras. Também nos foi reservado, na História com H maiúsculo, o lugar de quem é olhado, e raramente o de quem olha. Nos dias de hoje, diversas artistas têm buscado fracionar essa história, colocar-se entre as frestas. Nesse contexto, a cineasta Viviane Ferreira é uma das poucas mulheres negras que dirigiram um longa-metragem no Brasil. Não à toa, ela faz das ausências o ponto de partida para a construção de presenças politicamente implicadas.

No início, podemos notar aparições que deslocam os imaginários a respeito das pessoas negras que povoam o Brasil; aqui, em específico, a região do Bixiga, na cidade de São Paulo. Silvia é uma jovem que estuda para concursos, e vemos na tela de seu computador que tem uma professora também negra, que ressalta em seu discurso a subversão que é existir como mulher preta no Brasil. As pessoas que cruzam as ruas são retratadas com dignidade: as duas amantes na rua, o catador de recicláveis e o declamador de poesias surgem sorrindo, parte viva e constituinte da cidade. Aliás, todas as pessoas mostradas no filme, nas ruas e nas visões e histórias partilhadas por Silvia e Jerusa ao longo do filme, são negras. Em um mundo em que os filmes brasileiros não se constrangem em, muitas vezes, povoar suas imagens apenas – ou em maioria – com pessoas brancas, Viviane Ferreira constrói um mundo inverso para tornar visíveis as pessoas negras em sua multiplicidade.

Jerusa compra, então, uma filmadora e aponta para o declamador, que fala como um griô, ainda que tenha um livro nas mãos. Ele recita o poema As mãos de minha mãe, da escritora baiana Lívia Natália:

“Nos dedos vincados de veias grossas,

na curva que se enruga no mais preto das dobras

as mãos de minha mãe perfazem os caminhos de meu mundo.

(…)

As mãos de minha mãe, cada vez mais idosas,

guardam, em suas linhas, o segredo de nosso destino,

elas se cruzam no ventre da espera, e nasce

sempre feliz, sempre feminino.”

Lívia Natália3

Vemos o enquadramento de Jerusa, que empunha a câmera; ouvimos o poema declamado, que indica o poder fundante da voz. O filme avisa que conheceremos Jerusa através do que ela dá a ver ou esconde em atos de criação do mundo.

Outras presenças/ausências emergem, muitas vezes em um só corpo: descobrimos que Silvia é uma jovem homossexual em um relacionamento escondido da família. Através dos momentos em que experimenta transes, Silvia converte em visibilidade os apagamentos históricos. Enquanto escuta a coordenadora de seu trabalho falar sobre o Bixiga, Silvia nos dá a ver, em transe, um festivo carro da escola de samba Vai-Vai subir a rua. A Vai-Vai reivindica a vanguarda dos negros na constituição da região4, contra o discurso hegemônico de que seus primeiros habitantes teriam sido imigrantes italianos. Quando as duas protagonistas finalmente se encontram, Jerusa começa a narrar as histórias da família, ligadas à Vai-Vai e ao rio Saracura, um dos rios invisíveis, canalizados, que correm por baixo da cidade de São Paulo.

As populações negras que fundaram o Bixiga buscavam a proximidade com o rio que, quando corria visível, servia às lavadeiras e às crianças pretas que as acompanhavam. É a partir da pergunta sobre lavagens de roupa que Silvia, sem querer, aciona as memórias de Jerusa, que acompanhava a avó nas lavagens no Saracura. Ao desfiar sobre o rio, Jerusa atrai Silvia para a correnteza, para dentro da casa, para um espaço-tempo que identifico com a ideia de encruzilhada.

Interseção, ponto nodal, encruzilhada

Volto a Leda Martins para melhor definir – ou abrir – o conceito de encruzilhada, que me ajuda a pensar no visível e no invisível que se apresentam no filme, nas existências materiais e imateriais, naturais e sobrenaturais que compartilham o mundo:

“A cultura negra é uma cultura das encruzilhadas.

Nas elaborações discursivas e filosóficas africanas e nos registros culturais delas também derivados, a noção de encruzilhada é um ponto nodal que encontra no sistema filosófico-religioso de origem iorubá uma complexa formulação. Lugar de intersecções, ali reina o senhor das encruzilhadas, Exu Elegbara, princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e interpretação do conhecimento. Como mediador, Exu é o canal de comunicação que interpreta a vontade dos deuses e a eles leva os desejos humanos. Nas narrativas mitológicas, mais do que um simples personagem, Exu figura como veículo instaurador da própria narração. ” 

Leda Maria Martins5

Essas dimensões da existência, no entanto, não podem ser compreendidas a partir de uma visão ocidentalizada dicotômica, de dualidades que se opõem, não se cruzam ou não se afetam. Se, como afirma Martins, a encruzilhada é um lugar de intersecção, regido por uma energia mediadora e canalizadora, essas dimensões estão intrinsecamente ligadas, afetam e constroem uma à outra. “Operadora de linguagens e de discursos” e “produtora de sentidos”, a encruzilhada em Um Dia com Jerusa é a abertura que surge do encontro entre Silvia e Jerusa, para uma oralidade que aciona a visão, para uma visão que aciona história, e uma história que aciona uma passagem.

Silvia é sensitiva, médium, mediadora: através de seus transes as histórias desfiadas por Jerusa se traduzem em imagem. À medida que enreda Silvia em suas histórias – e não por acaso, cada vez mais “para dentro” da casa –, notamos que Silvia e Jerusa não estão sozinhas. Alguns enquadramentos sugerem que há presenças ali para além das duas. O espectador também pode se localizar pela perspectiva dessas presenças. Não só como quem olha de fora, mas como é convidado a observar de perto. O contato com as presenças invocadas pela narração de Jerusa faz com que Silvia possa de fato ver – e nos dar a ver – imagens de vidas ancestrais, de resistência e criação.

Ao contar a história da avó e de como herdou seu nome, Jerusa versa sobre a oralidade como ferramenta de sobrevivência: “Anunciação era também o nome de minha avó. Maria Jerusa Anunciação. Ela não era registrada e nem letrada. Mas sabia enganar os letrados”. Ela continua: “Mãe contou” – e aqui Jerusa insere outra narradora que toma parte no tecer de sua vida – “que vovó era negra ladina. Fugiu do senhor que a tinha como propriedade e se apresentou para um outro que a marcasse como de aluguel”. Ela conta então que a avó se apresentou ao novo senhor como Maria Jerusa Anunciação: Maria, como a mãe de Deus, Jerusa, como em Jerusalém, e Anunciação, porque estaria destinada a anunciar o retorno de Jesus. Através da impressão de que compartilhava com o opressor da fé dos brancos, Maria Jerusa o convencera a pagar pelos serviços de lavadeira. Aqui, Jerusa repassa uma sabedoria dialógica –  que se mistura a uma subversão do feminino –, um saber do qual a avó se serviu para subverter o sistema escravista e forjar, aos poucos, a própria liberdade. Diante de momentos de inflexão, de encruzilhadas, mais que sobreviver ou resistir, as antepassadas que Jerusa evoca forjaram outros futuros :

“Os sobreviventes podem virar ‘supraviventes’: aqueles capazes de driblar a condição de exclusão, deixar de ser apenas reativos ao outro e ir além, afirmando a vida como uma política de construção de conexões entre ser e mundo, humano e natureza, corporeidade e espiritualidade, ancestralidade e futuro, temporalidade e permanência. (…) Mas o salto crucial entre a sobrevivência e a supravivência demanda um conjunto de estratégias e táticas para que saibamos atuar nas batalhas árduas e constantes da guerra pelo encantamento do mundo.”

Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino6

A supravivência marca todos os atos de narração de Jerusa. O filme não esconde, porém, a presença das ausências: Silvia e Jerusa compartilham, junto a inúmeras famílias negras brasileiras, a dor de perder um ente querido para a violência da polícia e do tráfico. Essas aparições perpassam o filme de forma repetida, como é repetido o luto. Não precisamos ver a violência que os vitimaram. Viviane Ferreira demonstra mais interesse em construir outro repertório imagético sobre vidas pretas.

Tomo como exemplo a bela prosa de Jerusa sobre o avô, o negro Pizzolato, que vemos através da tradução sensitiva de Silvia. Era um somali chamado Aberia, que se tornou assistente de um fotógrafo italiano em expedição no chifre africano. Após o falecimento do italiano, Aberia era o único que sabia manusear os equipamentos de fotografia. Passou então a ser chamado de Pizzolato e voltou para a Itália com a expedição. No início da imigração dos italianos para o Brasil, chegou ao país em condição bem diferente dos negros que mal tinham saído da condição de escravizados. Uma vez no Brasil, casou-se com Maria Jerusa, a avó de Jerusa. Ensinou-a a fotografar. “A sua avó era fotógrafa ou lavadeira?”, pergunta Silvia. “Vovó era tudo que precisava”, responde Jerusa. A estratégia de supravivência garantiu uma nova vida ao casal (os avós), em São Paulo, e marcou a família com a herança da fotografia, que preenche toda a casa de Jerusa – também herança dos ousados avós. A fabulação proposta pela roteirista e diretora Viviane Ferreira dialoga com o apagamento da ancestralidade de grande parte da população afro-brasileira, que em muitos casos não possui fotos ou registros dos antepassados, nem conhecem suas histórias.

Água, correnteza, mpámbu anzila

Lá no início do filme, quando conhecemos Jerusa, escutamos o aviso: “eu acho que hoje as águas vão lavar tudo”. Em certo momento, realmente chove, e quando um sino revela que as águas do rio invisível subiram, Silvia é convidada a adentrar ainda mais a casa Jerusa. Na parte mais baixa da construção, há um poço. “Depois da canalização, vovô construiu esse poço e disse: ‘na minha casa, o rio tem como respirar”’, diz Jerusa. O apagamento e a submissão da natureza na cidade de São Paulo, aqui representado pela história de apenas um de seus dos rios canalizados, coincide com o apagamento e invisibilidade dos povos que habitavam suas margens e usufruíram de suas águas.

Jerusa narra: “A vovó contava que o velho Saracura era a salvação de quem buscava alimentar a liberdade. Fui batizada nas águas do Saracura. E nele, aprendi a nadar. Em suas margens, mamãe me ensinou a fotografar os pássaros de pernas finas comedores de goiaba. ” Na voz, o carinho pelo significado cosmológico e afetivo do rio. Na imagem, as águas transparentes e o peixe que nada mostram que o rio está vivo. Nos diz Makota Valdina:

“Então, existe o mundo visível, natural, onde nós habitamos, e o mundo invisível, sobrenatural, espiritual, o mundo habitado pelos ancestrais. Só que nesse nosso mundo natural que nos cerca está também o mundo sobrenatural. (…) vocês podem até não acreditar, mas tem mais gente além de nós aqui, nos ouvindo, nos olhando, tem energias aqui, conosco, interagindo. Então, todas as nossas interações ocorrem nesse mundo, nesse nosso plano natural. A gente interage com o mundo sobrenatural é nesse plano; a gente não tem que esperar para ter vida espiritual, nem estar em contato com o que é espiritual depois da morte, não.” 

Makota Valdina7

A interação com o sobrenatural mediada pela relação com a natureza é parte fundamental das cosmologias negras na diáspora de origem ioruba e banto. Fonte de vida e fonte de visão. Há na casa de Jerusa um poço e uma sala de revelação fotográfica. As águas revelam imagens. Jerusa, em mais um ato instaurador, compartilha através da câmara escura da sala uma outra imagem da cidade, uma em que rios e pessoas invisíveis coabitam. Mais do que contar a própria história, Jerusa ensina Silvia a entrar em contato com o que é “para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir”, como já disse Mestra Pedrina dos Santos8.

Retorcer a imagem, colocá-la de cabeça para baixo, para ver de outra maneira. Tal proposta diz respeito também às imagens do passado: ver de outra forma o passado, cultivar o presente e construir o futuro. Diz Jerusa: “O cultivo é o melhor professor. Se você cultiva o esquecimento, alimenta a lembrança da dor para se convencer que tem que esquecer. Se cultiva a memória, pode escolher alimentar a dor ou o impulso da liberdade.” 

Todo o discurso de Jerusa me parece um longo convite para que Silvia também habite o espaço-tempo da encruzilhada. O sangue que desce entre as pernas, a saia, o cabelo trançado: Silvia passa por uma espécie de iniciação em um tempo suspenso no qual Jerusa transmite o que ela precisa conhecer para seguir – no emprego, no relacionamento, na vida. Silvia abraça a encruzilhada. Para a Mestra Makota Valdina, mpámbu anzila.

“Estar em mpámbu anzila é estar numa encruzilhada, o que significa estar num ponto de tomada de decisão e isso vale para tudo. A todo momento estamos em situações de decidir o que temos que fazer, o que queremos fazer, que rumo tomar. Nem sempre as escolhas que cada um faz é a mais certa e adequada, e assim, tem-se que assumir as consequências das escolhas feitas.”

Makota Valdina9

Silvia descobre, ao encontrar o quarto de Jerusa, que não foi a única que habitou aquele espaço-tempo. A coleção de fotos sobre a parede nos mostra que Jerusa fazia dos aniversários momentos em que driblava a solidão para formar laços inesperados. Movida por Exu ou mpámbu anzila, pela oralidade e pela história, Jerusa guia Silvia e espera as águas. Quando a jovem encontra o jornal com o resultado do concurso, vê que foi aprovada e corre para contar à nova mestra. Encontra o corpo de Jerusa, que repousa tranquilo, inerte. O esquecido formulário de pesquisa de sabão em pó fora preenchido. Uma foto de Jerusa com o misterioso jovem que vemos durante todo o filme é deixada, como uma carta de despedida. O dia de nascimento se torna o dia da morte – ou do renascimento para outro plano de existência. Silvia e Jerusa atuam, então, como facilitadoras dos caminhos uma da outra. Desfeito o nó, atravessada a encruzilhada, Jerusa pode seguir em paz. E eu, permeada de sentidos e sensações, posso seguir em frente, em busca de outros olhares para outros cinemas. 

 

5 JOVENS DIRETORAS NEGRAS DO CINEMA BRASILEIRO QUE VOCÊ DEVE CONHECER

O cinema é, além de uma forma de arte, uma ferramenta social e política. Ele pode ser uma ferramenta de opressão, de manutenção do status quo, mas também pode oferecer o contrário, resistência. Se a maior frequência de mulheres por trás da câmera é sinal de mudança, a presença de mulheres negras na cadeira de diretora é revolucionária.

Ao entrar nesse assunto, é impossível deixar de citar a primeira diretora negra a filmar um longa-metragem no Brasil, a cineasta Adélia Sampaio. Nos anos 70 e 80, Sampaio participou de diversas produções audiovisuais, dirigiu curtas-metragem, escreveu e co-dirigiu o documentário AI 5 – O Dia Que Não Existiu. Além disso, seu longa-metragem de ficção, Amor Maldito, foi o primeiro filme brasileiro com foco em um relacionamento lésbico. A narrativa do filme passa por questões de lesbofobia, saúde mental feminina, padrões de beleza — temas ainda hoje importantíssimos, ainda hoje negligenciados.

Desde então, a participação de mulheres negras que fazem cinema cresceu. Segundo a pesquisadora e curadora Janaína Oliveira, o cinema negro no Brasil atualmente é protagonizado por mulheres. Entretanto, resta ainda um longo caminho a ser percorrido: uma pesquisa que cobriu os longa-metragem brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2014 não apresentou nenhuma roteirista ou diretora negra. Os resultados da pesquisa sugerem que os filmes de maior orçamento seguem sendo realizados em sua maioria por homens brancos, o que nos lembra outro texto publicado aqui: Pague às mulheres [especialmente as mulheres negras e indígenas] o que elas precisam para construir a cultura.

Compilamos aqui uma breve lista com alguns nomes de jovens cineastas negras que reaparecem e têm se destacado pelos seus trabalhos audiovisuais e movimentado o cinema brasileiro contemporâneo acerca de suas questões. Elas têm curtas prestigiados na bagagem e estão sempre presentes nas mesas de debates, discussões, festivais. Muitas delas têm trajetórias e iniciativas artísticas para além do cinema. Esperamos que em breve tenhamos a oportunidade de assistir seus primeiros longas-metragens.

 

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Quantos Fulanos, quantos beltranos, quantos ciclanos estão na massa de uma multidão cotidiana contemporânea e que tem histórias de resistências e sobrevivências que não são reveladas?

A cineasta baiana Larissa Fulana de Tal homenageia já em seu nome artístico as pessoas comuns cujas histórias cotidianas se perdem no anonimato. Sua identidade e seu trabalho se misturam e se tornam afirmação. Mulher. Negra. Cineasta. Antes de dirigir seu primeiro filme, lhe perguntaram ‘você é cineasta sem filme?’ e ela percebeu sua insegurança: É possível fazer filmes quando se é negro? Viu a necessidade de ocupar os espaços ainda limitados, fundou o coletivo Tela Preta, dirigiu videoclipes e curtas-metragens. Em seu filme Lápis de Cor, falou de infância e pele, o cotidiano na criança negra, o que é, afinal, essa tal “cor de pele” na caixa de lápis de cor.

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O bairro em que moro (Getúlio Vargas, popularmente conhecido por “Caixa D’água”) tem poéticas particulares, eu sou composta dessa poética, sou resultado de seus atravessamentos mais agudos.

Nascida na Bahia e criada em Sergipe, Everlane Moraes carrega para o cinema sua formação em artes visuais em criações que discutem o cotidiano de uma forma existencial e social. Ela encontrou no documentário a possibilidade explorar perspectivas plurais e percebeu a tendência para abrir espaços de discussão e gerar debate. Realizou filmes em diversas funções, trabalhou com programas de TV e programas educativos e foi premiada em diversos festivais brasileiros por seus documentários autorais. Em 2015, foi selecionada no concorrido processo seletivo para o curso regular da Escuela Internacional de Cine y TV em Cuba, onde estuda o gênero documental.

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O cinema negro é transformado e transforma a cada contexto em que está inserido.

No curta-metragem O Dia de Jerusa, a também baiana Viviane Ferreira falou da solidão da mulher negra. Em um texto para o portal Geledés ela afirma: “uma representação justa das mulheres negras no cinema brasileiro depende do fortalecimento do pacto de sororidade entre as mulheres negras que fazem cinema”. Para Ferreira, produzir sozinha não basta. É necessário trazer outros negros, especialmente mulheres negras, para o cinema. Ela fundou sua própria empresa que tem como objetivo “realizar conexões entre as várias culturas”. Dividida em três núcleos, a Odun Filmes, Odun Formação e Odun Produção, a empresa produz filmes, projetos artístico-culturais ligados à música, ao teatro e às artes visuais e elabora conteúdos e metodologias pedagógicas para o ensino da arte e da cultura. Seu envolvimento com o cinema vai além da produção, abrangendo também a ideia de transmitir conhecimento para formar novos cineastas e a difusão do cinema feito por negros e negras.

Descobri que retratar toda pessoa negra em um lugar de opressão é enfraquecedor, deprimente e não combina comigo.

A cineasta Sabrina Fidalgo teve uma infância privilegiada: seus pais foram figuras emblemáticas do Movimento Negro e, além de ativistas, também artistas bem sucedidos no exercício de relacionar estética e política. Eles lhe deram a consciência e orgulho das suas origens africanas desde o início de sua vida. Sua filmografia vai do documentário à ficção científica afrofuturista, exibidos em festivais nacionais e internacionais. Recentemente, seu novo curta-metragem Rainha recebeu o prêmio de melhor filme pelo júri popular do Curta Cinema, um dos mais tradicionais festivais de curtas do Brasil.

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Precisamos criar um outro imaginário sobre o negro no Brasil. O cinema e a TV têm papel fundamental nisso.

O filme KBELA mal completou seu primeiro aniversário e já é um clássico. Lotou os quase 600 lugares da sala de cinema do clássico Cine Odeon por diversos dias seguidos, foi exibido em inúmeros festivais nacionais e premiado, levou a diretora a diferentes países para contar a sua história. O filme é uma experiência audiovisual experimental sobre “ser mulher e tornar-se negra”. Yasmin Thayná não pára. Esse ano já estreou o curta-metragem Batalhas, sobre a arte do passinho no Rio de Janeiro. Além disso, pesquisa sobre cinema negro e, percebendo a demanda e necessidade, criou o AFROFLIX, uma plataforma online que torna disponível o trabalho de cineastas negros. Thayná não está satisfeita em apenas fazer cinema, ela vê esse fazer como uma forma de pensar raça, gênero, arte, literatura, fazer conexões, gerar acesso, construir pontes.


Esta lista foi elaborada de forma colaborativa por Amanda D. e Glênis Cardoso.