Esses dois filmes, selecionados para a temporada de premiações de 2016, trazem um pouco de alívio por suas temáticas: filmes focados em mulheres, coisa rara de se ver, e sem serem imersos em violência ou tramas mirabolantes. Brooklyn conta a história de uma garota irlandesa, Ellis, que imigra para os Estados Unidos e fica dividida entre permanecer por lá ou retornar à Irlanda. A Garota Dinamarquesa conta a história de Lili Elbe, a primeira pessoa no mundo a ser submetida à cirurgia de redesignação sexual.
O que esses dois filmes têm em comum é a busca das protagonistas em se encaixar no modelo vigente de feminilidade. Ou melhor, a busca dos filmes por encaixá-las nele, e mostrar como o sucesso delas depende da correta performance dentro desse modelo.
Em Brooklyn, Ellis vive com sua mãe e irmã na Irlanda, e trabalha esporadicamente numa padaria. Sua pequena cidade não parece lhe oferecer boas perspectivas de emprego nem estudo, mas um padre amigo da família lhe arranja um emprego nos Estados Unidos. Ellis embarca para a viagem até o novo país e no navio conhece sua colega de quarto: uma jovem dondoca que, além de não ser muito afável em sua primeira interação, faz questão de reparar na pouca importância que Ellis dá para a própria aparência. Supondo ser por causa de ingenuidade e pouca experiência, ela adota Ellis como amiga temporária e lhe ensina como se arrumar e se portar para parecer confiante na hora da vistoria da imigração. A dondoca é caracterizada como uma mulher mais experiente, tanto pelos conselhos como pelo jeito de se vestir e agir: usa roupas elegantes e maquiagem forte, além de ser confiante, falar sem rodeios e se vingar quando necessário, como quando dá o troco nas vizinhas de quarto que trancaram o banheiro. Ao desembarcar em Nova York, Ellis tenta seguir os conselhos e se arruma, mas com um vestido um tanto cafona, que era tudo que ela tinha, e uma maquiagem leve, marcantemente diferente do de sua conselheira. A maquiagem, aliás, será um aspecto distintivo de Ellis ao longo do filme.
Ao passar com sucesso pela imigração, Ellis se instala em um pensionato onde moram mais outras várias mulheres. O filme então nos mostra diversas cenas de jantar, onde todas comem juntas com a proprietária. As mulheres são todas bastante tagarelas, gostam de fofocar, se arrumar e falar de seus namorados, frequentemente irritando a proprietária, que as condena pelo comportamento e agradece por Ellis ser diferente delas (mais tarde, Ellis é recompensada com um quarto maior em detrimento das outras justamente por ser uma “moça direita”). Novamente, essas mulheres usam maquiagem forte e batons em tons mais escuros. Inicialmente caçoam de Ellis, mas logo ajudam a embelezá-la para que ela possa completar o último passo que falta rumo à feminilidade perfeita. Sim, porque é assim que Ellis é caracterizada, com o reforço de vários personagens ao longo do filme. Ela é diversas vezes chamada de diferente em um tom positivo, “você não é como as outras garotas”, marcando a diferença entre a feminilidade vulgar e indesejada das outras mulheres, e a pura e comportada de Ellis. Ela é uma pessoa afável, embora um pouco tímida, obediente, inteligente e estudiosa. A única coisa que lhe falta é um toque na aparência, que ela soluciona usando roupas mais elegantes, mas não extravagantes, e uma maquiagem discreta, e não chamativa como a das outras. Agora sim, ela está pronta para ir atrás do que a sociedade acha que uma mulher precisa: um homem.
As moças são todas encorajadas a irem aos bailes, onde há vários rapazes com quem dançar e, quem sabe, formar um par para a vida. Um dia Ellis recebe a incumbência de levar uma garota nova do pensionato a um dos bailes, mas a garota também é insuportável e Ellis não vê a hora de se livrar dela. Eis que surge um rapaz tímido e a chama pra dançar. Ela aceita, e eles acabam conversando no caminho pra casa depois de sair de fininho e deixar a outra garota sozinha no baile, coitada. Ellis e o rapaz continuam se encontrando nas semanas seguintes, e isso milagrosamente vai curando a saudade de casa com que ela sofria desde que chegou. Após começarem a namorar, isso também cura a timidez de Ellis, fazendo com que ela finalmente se saia bem no trabalho. Ela era vendedora em uma loja, e ao esperar a devolução do troco para as clientes, era encarregada de conversar com elas e fazê-las se sentir em casa. Porém, tinha muitas dificuldades com sua timidez, mas após o início desse namoro, isso finalmente é resolvido, para o espanto de sua chefe que vem perguntar o que aconteceu. A resposta: “estou namorando”. A chefe, que também é uma mulher elegante e fortemente maquiada, acaba dando mais dicas de beleza ainda para Ellis fisgar de vez o rapaz. E as do pensionato a ensinam a comer spaghetti corretamente para que ela não passe vergonha quando for jantar com a família dele, que é italiana. O sucesso de Ellis na vida se deve quase todo à sua capacidade de aprender a se comportar como o esperado.
Com o tempo, apesar do casal não ter muita química e Ellis não ter certeza sobre seus sentimentos por ele, os dois acabam se envolvendo bastante. Porém, um acidente com sua família na Irlanda faz com que ela tenha que retornar ao país por uns meses. Lá, ela passa um tempo com sua mãe e seus amigos, e a comunidade acaba tentando arranjá-la com outro rapaz local, que em breve vai herdar a propriedade dos pais e parece ser um bom partido. Além disso, a colocam no emprego que sua irmã não ocupa mais. Ela mesma fica impressionada em ver como não havia nada lá para ela antes de mudar de país, e agora parece que todas as portas se abriram. Um importante signo visual é a aparência de Ellis. Seu amadurecimento e experiências ganhas são mostrados através das roupas arrumadas que ela agora usa, e também, claro, a maquiagem clarinha. Tudo parece se abrir para ela, talvez não só por coincidência, mas por causa de sua nova confiança simbolizada pela nova aparência.
Começa aí o conflito do filme (quase perto do seu final!) onde ela fica dividida entre ficar na Irlanda ou voltar para a vida que começou a construir no Brooklyn. Infelizmente, ambas as opções são representadas pelo envolvimento com um homem. Voltar pra um ou ficar com esse outro? Mesmo que aparentemente nos anos 1950 mulheres não tivessem tantas opções para fugir do casamento, existem muitas histórias de mulheres dessa época que não precisam focar necessariamente nisso. Vide, inclusive, filmes ótimos feitos nesse mesmo período como A Malvada, e talvez até mesmo Crepúsculo dos Deuses. Incrível pensar como alguns desses filmes parecem mais progressistas do que os que fazemos hoje!
Nem tudo está perdido, porém. Apesar de toda a performance de feminilidade que tem que aprender, Ellis é representada como alguém mais ou menos livre para fazer suas próprias escolhas. Até mesmo a mãe, apesar de não concordar sempre, a deixa livre para isso. Ela também faz um curso de contabilidade em que é a única mulher da turma, e não é repreendida ou desmerecida em nenhum momento por isso. Pelo contrário, suas boas notas são comemoradas e parabenizadas pelas colegas. Ellis também não se apaixona perdidamente pelo rapaz do Brooklyn, ela demora mais a desenvolver sentimentos por ele e tem dificuldade em expressar o que sente, dando uma representação mais realista e justa do que mulheres podem passar, e que tão raramente aparecem em filmes como este.
É uma pena que tantas mulheres do filme sejam concebidas como contrastes a Ellis. Com exceção da mãe, irmã e melhor amiga (que pouco aparecem), as outras mulheres do filme são retratadas como superficiais e vaidosas, e as mais velhas como megeras. A chefe da padaria é uma velha malvada e cruel, e a dona do pensionato é uma velha conservadora e moralista. O alívio vem pelo menos em perceber que na primeira meia hora não aparece quase nenhum homem no filme. As interações são todas entre mulheres, sobre suas vidas e seu cotidiano. Os homens só aparecem mais tarde. Isso é tão raro em filmes que chega nos dá uma alegria ao encontrar um assim, que foque na vida de mulheres e as mostre interagindo verdadeiramente umas com as outras.
A Garota Dinamarquesa, por sua vez, fala sobre feminilidade também como performance, mas sob o ponto de vista da quebra da norma binária representada pela transgeneridade. Ambos os filmes foram dirigidos por homens, mas isso se torna um problema muito maior em A Garota Dinamarquesa por diversos motivos. O primeiro, é que o diretor Tom Hooper parece realmente não saber muito sobre o tema que está retratando, a começar por escalar um ator cis, Eddie Redmayne, em um papel que poderia ter ido para uma mulher trans. Fala-se demasiadamente sobre a importância de minorias terem chance de contarem suas histórias e se verem representadas, portanto colocar um ator cis para representar a história de uma mulher trans é equivalente ao tempo em que mulheres eram interpretadas por homens no teatro shakesperiano porque eram proibidas de atuar, ou no começo da era hollywoodiana em que atores brancos faziam blackface enquanto proibiam negros de atuar. Colocar atores cis em filmes como esse é impedir que atrizes trans possam contar e interpretar suas próprias histórias. Homens e mulheres cis ganharam Oscars por esses papéis, vide Jared Leto e Hilary Swank, mas até hoje pessoas trans mal são consideradas nos castings. Só quando atrizes e atores trans tiverem espaço e reconhecimento suficientes é que isso deixará de ser um problema. Se Tom Hooper tivesse pesquisado suficientemente sobre o tema de seu filme, certamente saberia disso.
O segundo motivo é que o filme foi claramente pensado para o público cis. Não poderia ser diferente, já que Hooper provou não ter feito o dever de casa mesmo (e não à toa muitas pessoas trans mostraram sua indignação com o filme). O filme começa com o casal feliz Lili e Gerda, ambas pintoras residentes de Copenhagen, mas antes da transição de Lili. Elas tem inclusive uma vida sexual ativa e proveitosa como casal heterossexual, e o trabalho de Lili é mais valorizado que o de Gerda, embora estejam na mesma profissão. Um belo dia, Gerda pede para que Lili substitua uma modelo para que ela possa terminar o quadro que está pintando, e Lili então se deleita silenciosamente com as vestimentas femininas. Isso evolui para brincadeiras em que Lili aparece assumindo a identidade feminina e indo como mulher a festividades. Logo, Lili mostra que isso não é só uma brincadeira, mas sua real identidade, para o desespero de Gerda.
Embora alguns diálogos entre o casal mostrem que Lili não foi uma coisa que começou agora, a trama é composta de forma que leva o espectador a interpretar dessa forma, de que um evento impulsionado por Gerda deu início à transição de Lili, e não que ela sempre foi assim, embora reprimida de se manifestar. E o pior: isso é mostrado por meio da performance da feminilidade padrão, associada a roupas e trejeitos. O filme mostra que Lili é uma mulher não porque ela se sente como tal, mas porque ela admira e acaricia roupas femininas, e observa cuidadosamente gestos femininos para imitá-los. Lili só passa a ser uma mulher quando ela pode performar feminilidade tal qual uma mulher cis. Ela começa a perguntar se está bonita o bastante, e a sorrir timidamente escondendo o rosto, enquanto busca por aprovação. Começa a largar a pintura sem nenhum motivo, ainda mais visto que era considerada uma boa pintora, e vai trabalhar numa loja vendendo artigos femininos. Além disso, ela passa a não ter mais interesse nas relações sexuais com Gerda, que magicamente antes da transição iam muito bem, o que é ou uma falha lógica do roteiro em não mostrar o desconforto que Lili talvez sempre tenha sentido nessa relação, ou não explica porque a partir da transição Lili começou a considerar sua relação com Gerda incompatível se antes ia tão bem.
O que é pouco discutido é o que leva as mulheres e homens trans a buscarem tanto o encaixe nessa performance, a fim de conseguirem o reconhecimento sobre seu gênero. Ora, não basta nem para pessoas cis nascerem com um determinado sexo para serem consideradas “mulheres de verdade” ou “homens de verdade”. As sociedades criam definições específicas e, de uma certa forma, bastante arbitrárias de como cada um deve se comportar a fim de performar seu gênero da forma esperada e considerada correta. Mulheres e homens são constantemente ensinados e policiados para se comportar e aparentar o modelo desejado, tal como vemos nas tantas lições de feminilidade dadas a Ellis em Brooklyn. Ellis não pode ser uma mulher tímida e desarrumada. Ela tem que aparentar e se comportar de uma determinada maneira ideal esperada de uma mulher, para poder funcionar em sociedade sem ser importunada. Para Lili e outras pessoas transsexuais, essa é uma tarefa duplamente árdua. As sociedades mostram pouca tolerância a alguém que nasceu com um genital mas não procura a performance associada a ele. É aí que surge a importância tão grande que é dada à cirurgia de redesignação sexual. No senso comum das pessoas cis, o que uma pessoa transexual mais quer é fazer a cirurgia e aí então poder viver como uma mulher ou homem completos. (Há uma entrevista bem interessante onde a cartunista Laerte fala sobre isso). Não é concebível nesse senso comum que uma pessoa se sinta plenamente confortável em um gênero e tenha um genital associado a outro. Só é considerado que uma mulher trans pode ser concedida o título de mulher de verdade se ela tiver aparência de mulher cis, comportamento de mulher cis e genital de mulher cis. Só passando por cirurgia para conformar seu genital é que a sociedade normativa pode pensar em reconhecê-la como tal. Apesar disso, como sempre, os filmes tratam esses assuntos como problemas internos dos indivíduos, nunca investigando o papel social nessa conformação.
E o pior pecado deste filme é desviar o foco de Lili para Gerda. Ao invés de focar em Lili e seus pensamentos e conflitos, o filme se preocupa muito mais em mostrar como suas decisões afetam sua esposa. Isso mostra claramente o ponto de vista do filme, por quem e pra quem ele foi feito, e com quem devemos nos identificar: a pessoa cis que é afetada pelas decisões da pessoa trans. Enquanto Lili se olha no espelho e sorri timidamente pelos cantos, é Gerda quem tem o arco narrativo do filme, que entra em conflito, aprende, cresce e se modifica. Em um momento, Gerda é até chamada de “uma garota dinamarquesa”, emulando o título do filme e nos fazendo crer que é ela a garota do título. O filme rouba Lili do protagonismo de sua própria história e a coloca sob o ponto de vista estrangeiro que ela nunca deveria ter.
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