Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Júnia Torres

Júnia Torres é colaboradora desde dezembro de 2021, é antropóloga e pesquisadora convidada da quarta Sessão Verberenas.

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CADA ŪHEX [MULHER, MENINA] TEM A YÃMIYHEX [MULHER-ESPÍRITO] QUE A ACOMPANHA

Conversa em torno ao filme Yãmiyhex1, as mulheres-espírito
(direção: Sueli Maxakali, Isael Maxakali, 2019).

Esta entrevista com Sueli Maxakali foi realizada pela documentarista e pesquisadora Júnia Torres, integrante da Associação Filmes de Quintal. Especialmente gravada para a revista Verberenas, foi integralmente transcrita e os termos usados originalmente em língua tikmun’un foram mantidos. Entre colchetes [ ] seguem traduções e algumas contextualizações.

Júnia Torres é também a pesquisadora convidada para o debate sobre Yãmiyhex, as mulheres-espírito (Sueli Maxakali, Isael Maxakali, 2019), filme exibido na Sessão Verberenas de dezembro de 2021.

Tikmun’un é como se autodenominam as pessoas historicamente conhecidas como povo Maxakali, hoje habitantes de quatro aldeias e uma área de retomada localizadas no Vale do Mucuri, na região norte de Minas Gerais, em áreas exíguas, em nada comparáveis às terras e aos territórios em que tradicional e originariamente habitavam e percorriam. Com a voz, Sueli Maxakali2:

Como a gente fez esse filme foi assim: quando morre um kitôko [criança] sentimos que elas, as Yãmiyhex [espíritos femininos] ficam perto de nós, mulheres e mães. Sempre a gente dando comida, sempre a gente fazendo os vestidos para elas. Cada uma daquelas meninas [que nos aparecem nas sequências iniciais do filme] elas têm sua Yãmiyhex. Por isso a gente escolheu filmar elas perto de nós, filmar esse ritual de presença delas. Porque as Yãmiyhex são muito importantes na nossa vida, quando a gente tem algum problema. 

Se acontecer alguma coisa, é yãmiy-kitoko [espírito-criança] quem avisa primeiro para nós. Aí vem, bate na porta e avisa. Antigamente, era esse yãmiy-kitoko quem avisava o pajé para fugir do não índio que ia vir para matar todo tihik [povo maxakali e demais parentes indígenas]. Aí explicavam e eles saíam fugindo assim, porque os filhos das Yãmiyhex-espírito, os kitôko que também são espíritos, avisavam os pajés. Por isso que Yãmiyhex é tão importante. Aí a gente escolheu para mostrar as Yãmiyhex e seus filhos. Porque antigamente não tinha filme, a gente não tinha oportunidade de mostrar nossos yãmiy [espíritos, encantados] e nem as Yãmiyhex [mulheres-espírito].

“Cineastas Maxakali tem outra visão”

Como as pessoas têm muito preconceito por nós, muita violência também, aí elas vão ver com o cinema, com o nosso cinema, que não é assim, não precisa dessa violência, desse preconceito. Então, para nós, foi muito importante para ver, mostrar que cineastas Maxakali tem outra visão. Eles fazem filmes diferentes sobre nossa própria vida, nossos rituais, nós vemos de outro jeito e nós nos vemos de outro jeito.

“Temos que respeitar, saber como filmar à distância. Não devemos chegar pertinho e filmar, filmar o rosto. Somos tihik, fazemos treinamento e respeitamos o pajé. Nós sabemos filmar com os pajés, aprendendo o que pode e o que não pode mostrar. Nós temos leis diferentes dos ãyuhuk [não-indígenas]. Por isso, somos cineastas indígenas. Sobre os rituais, a gente não vai contar tudo. Antigamente, tinha muito mato e os yãmĩy se escondiam dentro do mato. Hoje não, só há um pouquinho de mato e eles estão no nosso cabelo, nos acompanhando. Se disser alguma coisa errada, yãmĩy está me ouvindo. As Yãmĩyhex aguardam os vestidos em silêncio no interior do kuxex [casa tradicional de rituais]. Nem os homens nem as mulheres podem filmar ali. É um segredo nosso, um segredo que mantemos. Ele também faz parte da cura. Porque se vier um tempo em que não tem mais segredo, acaba nossa cura”3.

“Eu queria falar como é minha visão. Como Ūhex [mulher], eu tenho uma visão diferente”

Como eu sou Ūhex [mulher] eu tenho uma visão diferente do que um homem. O “cineasto” homem, ele vai filmar diferente. A minha visão como Ūhex, ela é diferente, é fora do kuxex [casa de rituais onde as mulheres não entram]. Eu vejo o ritual de outro lugar, de um outro ponto de vista, eu tenho uma visão diferente de filmar, de respeitar meu ritual, essa que é a minha visão. Eles [seu povo] têm muita confiança em mim, porque pelo nosso ritual, eu tenho muito respeito, sei que é um segredo para nós, sei que é o respeito pelas nossas filhas-Yãmiyhex. Era isso que eu queria falar, Júnia. E, tem uma base, que você sabe, que a gente tem o limite de responder, tem nossos segredos. E que nós não mostramos e nem queremos mostrar e nem falar, não é para todos. Isso é o nosso cinema. É assim. 

“Como sou cineasta mulher, realizadora, as Yãmiyhex me deram muito essa força”

E também eu acho que eu como cineasta, realizadora Ūhex [mulher] para contar as histórias das Yãmiyhex que são mulheres também, então eu acho que elas, as Yãmiyhex me deram muito essa força, me levantou. Toda vez que a gente fica triste, eu sei que eu tenho um filme, Yãmiyhex, e isso me dá uma força maior e o meu povo também sabe que o filme das Yãmiyhex foi muito importante pra nós, assim, do mundo inteiro vendo. Eu acho que o Brasil tem assim, essa violência contra nós… Eu não quero citar nomes, mas o Brasil tem muita violência contra criança, contra os filhos, contra a diferença. Não aceita assim a diferença do outro, essa classe média, classe alta… Acho que as Yãmiyhex é a diferença, elas são a diferença de nós,  elas são do outro mundo, elas são diferentes e nós as respeitamos, então eu quero citar isso pra você: ba’y [expressão Maxakali com sentido de conclusão do pensamento, entre outros significados, como bom ou bonito].

“Por isso que aconteceu dessa encenação: porque antigamente foi assim”

A encenação [procedimento fílmico que compõe as sequências iniciais], ela foi muito importante nesse filme porque mostramos que as Yãmiyhex [no tempo ancestral] se transformaram em Yãmiyhex [mulheres-espírito] por conta da violência machista dos homens, não é? Que antigamente, quando os homens foram caçar e não queriam dividir a caça, as mulheres comeram sucuri, e aí, eles não gostaram e mataram uma das Ūhex (mulheres).  O espírito da mandioca [Kotkuphi] flechou essa mulher e então, elas foram descontar, se vingar dos homens. 

E aí pra nós podermos mostrar esse filme e contar essa história, foram as próprias mulheres [Ūhex] que se transformaram. Nós falamos com as mulheres que agora elas iriam se transformar em Yiãmihex, porque antigamente foi assim que aconteceu, embora hoje não seja mais. Por isso que foi escolhido assim, de elas virarem Yãmihex no filme também. Por isso que aconteceu dessa encenação, porque antigamente foi assim. Porque quando elas foram nas batateiras [na roça], elas comeram a sucuri. Elas  comeram e os ūpit [homens] que eram machistas, não gostaram que elas tenham matado a sucuri. E então, os homens mataram uma das mulheres e queimaram. Foi assim que eles descontaram. Um deles matou e foi assim que ela se transformou nas primeiras Yãmihex. Foi assim.

“Então é isso que é o meu sonho”

É muito importante o nosso filme circular dentro do Brasil, pra todos conhecerem. E jovens, fora do Brasil também, eu acho, Júnia, que tem que circular sim, pro mundo inteiro saber que o povo maxakali precisa ter uma terra, ter um rio saudável para nós podermos praticar nosso ritual, que nosso ritual, ele precisa. Meu povo virou Yãmiyhex, no rio. E meu povo são donos do rio, a nossa mãe água, que é também onde nós transformamos em Yãmiyhex. Por isso é importante os não indígenas reconhecerem que nós precisamos da nossa terra, do nosso rio, nós precisamos. O Isael [Maxakali] fala: “Sem a terra, não tem cinema”. Porque sem terra, sem água, não tem ritual, sem ritual não tem filmagem. O que nós iremos filmar? 

Sonho com uma casa para nós estarmos mostrando nossos filmes, nós termos um lugar, não só fazer os filmes, mas também mostrar as filmagens. Ter um espaço como Yãy Hã Mĩy — Aldeia Escola Floresta, no nosso novo lugar, para nós termos uma casa agora, para nós fazermos só cinema, com computador, mostrar cinema a noite pras nossas crianças, para todos. Ter uma sala, espaço, só para fazer e mostrar cinema, então é isso que é o meu sonho: um dia a gente ver nosso espaço dentro de uma mata, nossa escola e uma sala de cinema. 

Fotos de Roberto Romero.

Notas de rodapé

  1. Vencedor do Prêmio Carlos Reichenbach, de melhor longa da Mostra Olhos Livres na Mostra Tiradentes 2020; recebeu Menção no 28º Festival de Cinema de Vitória, exibição no Doclisboa no mesmo ano e em diversos festivais e mostras nacionais e internacionais.
  2. Sueli Maxakali é professora, cineasta e fotógrafa, artista com obras presentes em diversas exposições, como a Bienal de São Paulo, 2021. É também, e principalmente, uma destacada liderança de seu povo. Mestra do curso Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais. Hoje, lidera seu grupo na conquista e construção de uma nova aldeia, recém retomada, a Yãy Hã Mĩy, Aldeia Escola Floresta.
  3. O trecho entre aspas foi acrescido à fala gravada. Originalmente publicado em Fragmentos de um cinema-jiboia Tikmun’un (forumdoc.bh.2019, catálogo).