Era um domingo, a noite caindo, a casa bagunçada, os arquivos se acumulando na pasta do computador, a digitação frenética. A apuração das eleições presidenciais acontecia a todo vapor, mas nós não consultávamos os sites ou canais de televisão para acompanhar o espetáculo. O foco era em terminar o projeto para o edital de fomento cujo prazo de envio era a manhã seguinte. Diante da troca de governos iminente, a desesperança que tomava conta era canalizada na escrita de um projeto que pudesse ser selecionado no que chamávamos de “edital do fim do mundo”: talvez, quem sabe, a última chance de fazer o que sempre sonhamos — realizar o Verberenas com apoio financeiro, remunerando todas as colaboradoras, com exibição de filmes e debates.
Deu certo. Conseguimos. Os entraves burocráticos, políticos e, posteriormente, pandêmicos, fizeram com que o projeto enviado em 2018 só tomasse forma em 2021. O mal-estar geral e a desesperança com o futuro que se desenhava serviram, naquele episódio, como combustível. Continuam servindo. Glênis, na ocasião da escrita deste editorial, nos relembra um texto da jornalista Eliane Brum em que ela fala da importância de, “diante de tal conjuntura, (…) fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança” e “enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder”. Ou “lutar mesmo quando já está perdido”: “fazer como imperativo ético”. Algo como aprender com Ailton Krenak a seguir fazendo para adiar o fim.
Talvez só isso nos dê um vislumbre do sentimento daquela noite de domingo, sentimento esse que nos revisita no momento desolador que atravessamos hoje. Um ponto aqui é fundamental e deve ser destacado: para que seja possível essa teimosia, essa recusa à derrota sem luta, é necessária alguma relação, alguma comunidade, algum tipo de experiência de conexão. E isso, no que acreditamos, nos acompanhou nessa práxis do Verberenas: de um site que começou enquanto colaborativo, que se criou no tesão de dialogar e discutir e discordar e construir juntas, no agregar de pessoas e ideias e emoções. As conexões criadas em 2015 vieram nesse caminho que levou o projeto até aqui.
Um exemplo disso é a autora da capa desta edição, a artista Taís Koshino, que se formou em Audiovisual conosco e esteve presente no início do projeto, criando vinhetas para nossa antiga empreitada no YouTube do Verberenas, auxiliando no design do nosso primeiro site, junto conosco em todas as atividades. Ou a artista Lívia Viganó, que participa como ilustradora de um dos textos desta edição e que foi também autora da capa da edição nº 01. Ou a autora Manuela Andrade, que escreve nesta edição sua quarta colaboração para a revista. Nesse sentido, nos identificamos com as falas de Glenda Nicácio na entrevista feita por Lygia Pereira (também uma colaboradora perene e querida) publicada nesta edição: “Eu gosto de pensar que está tudo em casa, e por isso que gostamos de trabalhar sempre com a mesma equipe, o que é muito gostoso: se é pra contratar pessoas, vamos contratar as que já estavam com a gente, e passar pelos mesmos processos”.
Apresentamos, assim, o número 05 do Verberenas, uma edição entremeada por tantas questões que dialogam com a história e o fazer desse projeto. Começamos pela contribuição de Lorenna Rocha, um texto que trata dos aspectos relacionais da opacidade proposta pelas obras da artista Castiel Vitorino Brasileiro. Nessa mesma esfera do enfeitiçamento está o texto de Natália Reis, uma investigação sobre o cinema da diretora Nelly Kaplan e seu percurso de “pantera solitária” pela magia e o desejo.
O texto de nossa editora Glênis lida com erotismos de olhar e ser olhada se apoiando no filme Retrato de um Jovem em Chamas, de Céline Sciamma. Numa troca de olhares enquanto um ato de amizade e criação, temos as cartas entre Fernanda Pessoa e Adriana Barbosa, um exercício entre duas realizadoras que compartilham seus processos e pesquisas sobre cinema experimental. Há uma disposição de construir algo coletivamente que vemos também na carta de Ramayana Lira às cineastas sapatão, pensando a experiência da lesbiandade enquanto terreiro, um “espaço liminar do público e privado”.
A colaboração especial convidada fica por conta da entrevista conduzida por Lygia Pereira com a realizadora Glenda Nicácio. Sobre comunalidade, tanto Glenda quanto Manuela Andrade elaboram um pensamento. A primeira aborda seus processos fílmicos na feitura de seu primeiro longa-metragem na cidade de Cachoeira, na Bahia. Já Manuela discorre sobre o visionamento do filme da diretora mexicana Luna Máran sobre o próprio pai, um líder indígena oaxaca, e diferenças geracionais como ambientes férteis para o crescimento. Ingá Patriota desenvolve sobre o canal de YouTube de comédia de Faela Maya, um espaço compartilhado por uma dúzia de realizadoras do interior do Ceará que se utilizam de recursos inesperados de linguagem e a rivalidade como motor do humor e da criação.
Nesse momento de isolamento, com uma abundância de serviços de streaming e possibilidades de download que favorecem o visionamento individual — mesmo que sites como o Letterboxd permitam algum diálogo e um vislumbre de uma experiência comum com o cinema —, propomos que estejamos juntas. Juntas, assistindo a um mesmo filme, debatendo e lendo sobre ele. Juntas e dispostas a construir vizinhanças para furar a bolha da solidão.
Nosso último texto é inspirado pela escolha curatorial conduzida por Letícia Bispo para a primeira Sessão Verberenas: Porta para o Céu (1989) será exibido online entre os dias 19 e 21 de março de 2021. A pesquisadora em cinemas africanos Janaína Oliveira escreve sobre a obra da diretora, a marroquina Farida Benlyazid, que também será foco de debate no dia 21, às 18h. É a primeira vez que o filme tem exibição pública no Brasil e o Verberenas comissionou a produção das legendas em português. Este é um filme que nos convoca a ir além: de concepções fundamentalistas de mundo, de ideias fixas sobre o Islã, da paralisia do patriarcado e mesmo das limitações do feminismo ocidental.
Em Porta para o Céu, a protagonista Nadia, dividida entre suas múltiplas origens — francesa e marroquina, laica e muçulmana — decide criar um abrigo de mulheres na casa que antes pertencera ao pai. Há muita solidariedade nessa leitura feminina do sufismo islâmico, e há também contradições. Nadia é uma mulher abastada, ao lado de outras mulheres que não têm nada e vivem como criadas; ao mesmo tempo, o teto sob o qual constrói o abrigo não pertence verdadeiramente a ela, que nada pode herdar por ser mulher. Em meio ao sonho e ao transe, à solidão e à partilha, há momentos que podem fazer feminismos ocidentalizados revirarem os olhos. Janaína Oliveira, no entanto, chama atenção ao íntimo convite do filme: a travessia de uma porta rumo a “relações outras com as muitas encruzilhadas que Benlyazid nos proporciona. Sobretudo àquelas que cruzam nossas idealizações de um feminismo hegemônico”.
Amanda Devulsky, Glênis Cardoso e Letícia Bispo